XCVII CENA
No gabinete do Diretor da Cadeia, este está sentado e os restantes de pé.
DIRETOR – Ligaram do Tribunal a pedir para prepararmos uma cela exclusiva para uma reclusa.
DUDÚ – Cela exclusiva! Por que é que ela não pode ficar junto com as outras?
DIRETOR – O Tribunal quer que ela fique sozinha.
DUDÚ – Mas a cela de reclusas é espaçosa e há camas vazias. Leva dez reclusas e estão lá apenas três.
DIRETOR – Ela não pode ficar na mesma cela com delinquentes e criminosas vulgares.
DUDÚ – Ela não vem pra aqui como Reclusa?
DIRETOR – Sim. Mas ela é diferente. É esposa de um ex-ministro. (Para Carcereiro) Manda limpar uma cela na ala dos Reclusos e ela vai ficar ali. Manda pintar, desenfetar bem e pulverizar com desodorizante. Liga para o Tribunal e pede para perguntar a senhora qual é a sua cor preferida.
CARCEREIRO – Vai ficar na mesma ala com esses Reclusos perigosos?
DIRETOR – Numa cela individual. Sozinha. O Tribunal vai mandar um jogo de sofá e uma mesinha para pôr na cela dela. Enquanto não vierem, ela recebe as visitas na receção da Secretaria. Ela não pode receber visitas no mesmo espaço com os delinquentes.
MARCOLINO – Desculpe-me por este atrevimento, Sr. Diretor. Mas o que é que ela fez?
DIRETOR – Não foi coisa grave. Não matou nem roubou. Foi um pequeno desvio de dinheiro do ministério que ela fez para a sua conta num banco suíço.
RUI – Muito dinheiro, Sr. Diretor?
DIRETOR – Não! Só quinhentos mil contos. (Todos se entreolham pasmados) Ela vai trazer a sua empregada para lhe fazer as refeições e tratar-lhe de higiene na cela. As suas visitas, ela pode recebê-las na sua cela como entender e quando quiser. Pode trazer televisão, se quiser, e a porta da sua cela, ela é que a tranca por dentro. Os guardas não podem incomodá-la. A empregada, os familiares e as visitas dela não podem ser revistadas. Ela é doutorada e os amigos dela são pessoas que exigem de nós particular respeito.
RUI – Os outros reclusos não vão mandar bocas, Sr. Diretor?
DIRETOR – Para quê é que vocês têm um cassetete pendurado ao lado? Acho que, sobretudo, é para malhar os mandadores de boca.
CARCEREIRO – Vamos, rapazes. Rui, vai tu e Fefé, tragam seis presos para virem preparar uma cela para a senhora.
XCVIII CENA
Punoi prepara uma corda com um grampo numa ponta e atira-a para o terraço do 2º andar do prédio de Antonona. Trepa até ao terraço e desce pelas escadas ao quintal. A uma distância relativamente curta, é surpreendido com a presença do Antonona.
ANTONONA (muito tranquilo) – Olá!… (Punoi assusta-se) Boa noite. Não respondes?
Punoi recua e Antonona aproxima-se dele. Punoi leva a mão ao cós das calças para tirar a pistola, Antonona agarra-o com muita violência.
PUNOI – Não me faça mal, por favor, senhor. Não me faça mal.
ANTONONA – Não te vou fazer mal, meu anjinho de Cristo. (Retira-lhe a pistola) Mas tu agora querias fazer-me mal… ou pior; querias-me matar!
PUNOI – Desculpe… desculpe-me, por favor.
ANTONONA – Não há problema.
PUNOI – Então deixa-me sair, por favor.
ANTONONA – Podes sair. Estou a espera que saias.
PUNOI – Abra a porta então…
ANTONONA – Abrir a porta? Para quê?
PUNOI – Para eu sair.
ANTONONA – Para tu saíres?! Entraste foi pela porta?
PUNOI – Não!
ANTONONA – Então por que é que queres sair pela porta?
PUNOI (chorando) – Eu quero sair!
ANTONONA – E por onde é que entraste?
PUNOI – Pelo terraço!
ANTONONA – Pelo terraço?!
PUNOI – Sim!
ANTONONA – E como é que subiste até ao terraço? (Punoi fica a tremer) Diz-me! Não te vou fazer mal.
PUNOI – Então deixa-me sair.
ANTONONA (um pouco exaltado) – Como é que chegaste ao terraço? Ou és a coruja, voaste por cima do terraço e vieste parar ao meu quintal! Só as corujas é que voam à noite. (Olha para o relógio) São três horas da madrugada.
PUNOI – Subi por uma corda.
ANTONONA – Por uma corda?! Então vai-me mostrar.
Punoi vai à frente até onde a corda se encontra presa.
PUNOI – Foi por esta corda.
ANTONONA – Não há problema. Não te vou fazer mal, mas tens que descer por onde subiste. (Punoi fica a chorar cheio de medo) Não te faço mal, menino. Só quero que saias daqui.
PUNOI – Então deixe-me sair pela porta!
ANTONONA – Isto é que não faço. Tu não entraste pela porta, não podes sair pela porta. Tens de sair por onde entraste. (Dá um berro) Estás a ouvir ou não?
Punoi começa a descer, Antonona corta-lhe a corda, ele cai e parte o osso da bacia. Completamente inconsciente, Antonona mete-o na carroçaria de Hilux e vai deixá-lo numa ribeira. Um jovem que faz caminhada matinal, encontra-o e comunica a Polícia.
XCIX CENA
No Hospital da Praia, Punoi está ligado ao soro. Uma Médica fala com a Bia.
MÉDICA – O seu filho… infelizmente, não vai poder andar. Fraturou o osso da bacia e teve uma lesão grave na coluna. Ficará paraplégico e com Amnésia retrógrada.
BIA (muito sentida) – O que é isso?
MÉDICA – Não se lembrará de nada que lhe aconteceu no passado… antes do trauma. Nem mesmo como lhe aconteceu este episódio, não vai lembrar.
BIA – Não há forma de o tratar, Doutora?
MÉDICA – Infelizmente, não.
BIA – Mesmo não?
MÉDICA – A medicina costuma fazer milagre, mas não nestes casos.
BIA – E ele vai morrer?
MÉDICA – Tudo indica que não. É muito novo… que idade tem?
BIA – Vai fazer quinze.
MÉDICA – Meu Deus! Uma criança ainda!
ENFERMEIRA (entra com um envelope na mão) – Aqui estão as análises do paciente.
MÉDICA – Obrigada, Srª. Enfermeira. (Abre o envelope e começa a ver, abanando incredulamente a cabeça) Afinal, existe ainda outro problema com o menino.
BIA – Que problema, Doutora?
MÉDICA – Este menino fazia o quê, senhora?
BIA – Doutora, para lhe ser franca… ele tinha cabeça um bocadinho rija.
MÉDICA – Vê-se!
MÉDICA – Que doença mais é que ele tem?
MÉDICA – Está infetado com o HIV. (Bia arregala os olhos) E hepatite B.
BIA – E agora Doutora?…
MÉDICA – Vou mandar repetir as análises. Se se confirmar… não há mesmo nada a fazer. Ele não terá defesas que o permitam reagir a possíveis recaídas e infeções… terá no máximo 6 meses de vida.
Bia chora, a Médica abraça-a e leva-a à rua.
C CENA
Um grupo de Reclusos vai ao Hospital a pé, acompanhado pelo Guarda Rui. Pouco depois, um Jeep Top Gama para à porta da Cadeia, a mulher do Ex-Ministro entra acompanhada da Guarda Dudú que está à paisana. O Jeep arranca, passa pelo grupo de Reclusos e vai parar à porta do Hospital da Praia. A Reclusa entra no consultório e senta-se à frente de uma Médica, depois de se cumprimentarem amavelmente.
MÉDICA – A minha amiga precisa de fazer uns exames que, de momento, só se fazem em São Vicente. Na situação em que se encontra não sei se terá a possibilidade. Se lhe irão permitir!
RECLUSA – A Doutora pode dar-me uma carta com a requisição dos exames, eu levo ao Sr. Diretor. Ele não vai brincar, com certeza, com a minha saúde!
A Médica escreve uma carta e dá-lha. Despedem-se e ela sai.
CI CENA
Os Reclusos que tinham ido ao hospital estão no gabinete do Diretor.
DIRETOR (com receitas na mão) – Aspirina, Vitamina C, Antibiótico, Cálcio, Betadine, Lamisil para kurumixu… (olha para os Reclusos) Não. Não há dinheiro para isso. (Olha novamente para a receita) Exame à próstata… ressonância magnética… nem pensar. Esses exames não se fazem cá. Podem ir para a vossa cela, rezem e peçam a Deus que vos aguente vivos até saírem daqui.
Os Reclusos saem e entram de seguida a Guarda Dudú e a mulher do Ex-Ministro.
DUDÚ – Dá licença, Sr. Diretor!
DIRETOR – Olá Doutora! A médica lhe disse que a saúde está “nos conforme?”
RECLUSA – Não, Sr. Diretor.
DIRETOR – Ave-maria! Não me diga? O que se passa então?
RECLUSA – A Médica disse que preciso de fazer uns exames que só se fazem em São Vicente.
DIRETOR – Oh, Doutora! Quem me dera se todos os problemas fossem esse! Para quando é que quer ir?
RECLUSA – Por mim… o mais rápido possível.
DIRETOR – Então está bem. (Liga o telefone) Sr. Carcereiro! (Pausa) Chega aqui num instante! (Para Reclusa) Quer ir já amanhã?
RECLUSA – Pode ser.
Entra o Carcereiro.
DIRETOR – Prepara para acompanhar a mulher do Ex-Ministro, amanhã, para ir a São Vicente fazer uns exames urgentes.
CARCEREIRO – Sim, senhor.
DIRETOR (preenche um cheque) – Manda o Condutor levantar duas passagens nos TACV e faz a reserva de hotel por uma semana. (Para Reclusa) Uma semana… é suficiente, doutora?
RECLUSA – Acho que sim.
CARCEREIRO – Eu vou para o hotel… ela fica na cadeia da Ribeirinha?
DIRETOR – Mas, que despautério, Carcereiro?! Ela também vai para o hotel.
CARCEREIRO – Ok.
DIRETOR – E tu não precisas de ir fardado, nem armado de forma que ultraje a reputação da mulher do Ex-Ministro. Percebeste?
CARCEREIRO – Sim, senhor.
CII CENA
Enquanto Bia faz tratamento ao Punoi, depara que ele fez diarreia na roupa.
BIA – Fizeste diarreia, filho?
PUNOI – Eu não!
BIA – Fizeste sim. Tens a roupa suja.
PUNOI – Mas eu não estava com diarreia.
BIA – Mas agora estás.
PUNOI – Então foste tu.
BIA – Fui eu… o quê? Eu é que fiz diarreia na tua roupa?
PUNOI – Eu não estava com diarreia!
BIA – Deve ser o leite em pó que bebeste…
PUNOI – Então tu é que me puseste algo no leite para me provocar diarreia.
BIA – Achas que eu ia pôr algo no leite para fazeres diarreia e eu vir limpar-te?
PUNOI – Para poderes ficar fanfarrona e dizer que me limpaste a diarreia. Tu não prestas.
Bia fica a sorrir e não lhe responde.
CIII CENA
Os visitantes compram bilhete, passam pela revista e entram na visita. O Diretor chega, vai para o seu gabinete e o Carcereiro vai ter com ele.
DIRETOR – O que é que se passou?
CARCEREIRO – O Guarda Marcolino mandou-me chamar ontem à noite, disse que o telefone tinha desaparecido da Secretaria.
DIRETOR – Não viram ninguém a entrar, nem a sair da Secretaria?
CARCEREIRO – Acho que não. Estavam a fechar as celas e a preparar para ordenar o silêncio…
DIRETOR – Manda suspender a visita e vêm cá todos para uma reunião.
Carcereiro ordena aos Guardas que mandem os presos para as celas e os visitantes embora. Alguns visitantes reclamam o dinheiro do bilhete que compraram.
DIRETOR – Como foi que o telefone desapareceu da Secretaria?
DJEDJE – Eu não sei, Sr. Diretor. Tinha acompanhado dois Reclusos para irem despejar o lixo da cozinha que tinham acabado de limpar, depois fui fechá-los nas suas celas e, quando vinha para camarata, encontrei Nhu Marco aflito a dizer que o telefone teria desaparecido da Secretaria.
RUI – Eu também estava na cela das Reclusas para lhes apagar a luz e ordenar o silêncio… fui fechar os presos que estavam a fazer faxina, vi Nhu Marco preocupado a dizer que tinham roubado o telefone.
MARCOLINO – O telefone desapareceu de uma forma muito estranha, senhor Diretor. Saí da Secretaria e fui só fazer xixi atrás do portão, quando voltei, já o telefone não estava lá.
DIRETOR – O que é o almoço hoje?
CARCEREIRO – Feijão pedra com carne de porco salgada.
DIRETOR – Se o telefone não aparecer até a hora do almoço, não distribuem o almoço a ninguém. E se não aparecer até a hora do jantar… não dão o jantar também… e assim por diante. E as coisas que vêm de fora não podem entrar.
DJEDJE – A Empregada da senhora Reclusa não pode entrar também?
CARCEREIRO – Ela é exceção. A Doutora pode continuar a receber as visitas na sua cela e a Empregada vem cá fazer-lhe o comer. Ela não roubou o telefone.
CARCEREIRO – Sim, senhor.
DIRETOR – Só devem receber o mínimo de água para beber. Não podem apanhar sol, nem tomar banho enquanto não disserem quem foi esse larápio.
DIRETOR-GERAL (entra nervoso) – O que se passa?
DIRETOR – O Sr. Carcereiro mandou-me dizer, logo cedo, que roubaram o telefone da Secretaria.
Diretor-geral olha para o Carcereiro.
CARCEREIRO – Também foi Nhu Marco que me mandou dizer ontem à noite.
DIRETOR-GERAL – Enquanto o telefone não aparecer não vai haver visitas. E todos os direitos ficam à partida suspensos.
DIRETOR (para funcionários) – Ouviram. E é para se cumprir.
DIRETOR-GERAL – As saídas daqui da Cadeia, só se forem para irem ao Tribunal ou Hospital. Sendo que, para o Hospital, só se o Recluso estiver muito mal. Se estiver mesmo a morrer.
Diretor-geral sai e vai embora.
CIV CENA
Paulito sai de cadeia depois de cumprir 15 anos de prisão. Está entre amigos, vizinhos e familiares que vão chegando e vão se cumprimentando.
NHA DOMINGAS (entra e abraça Paulito) – Ah meu filho! Já saíste de vez?
PAULITO – Graças a Deus, Nha Domingas. Já saí de vez.
NHA DOMINGAS – Ah… Deus é grande; Ele é pai.
PAULITO – Amém!
NHA DOMINGAS – Tinha tantas saudades tuas! Quantos anos passaste lá?
PAULITO – Quinze anos.
NHA DOMINGAS – Toda a tua mocidade!
PAULITO – É verdade Nha Domingas.
NHA DOMINGAS – Mas Deus tem. Agora é trabalhar para recuperar o tempo perdido.
PAULITO – Já não sei se vou conseguir, Nha Domingas. Quinze anos perdidos… muitas coisas já não se realizam.
NHA DOMINGAS – Não perca a tua fé. Cá se faz, cá se paga. Alguém que te fez cumprir todo esse tempo, que te roubou a juventude, há-de um dia morrer de remorsos. Não tenhas dúvida.
PAULITO – Disto também, tenho eu a certeza.
BIA (de lá do quintal) – Paulito, anda lavar os pés antes de ires deitar. Já esquentei a água.
DJUCRUCO – Pessoal, vamos para a nossa casa porque hoje Bia está cheia de sono.
Os visitantes riem-se e saem todos.
CV CENA
Bia e Paulito estão deitados a conversar.
BIA – Imagino o quanto sofreste, Paulito!
AULITO – Muito. E o meu sofrimento era ainda maior, quando pensava em ti e sentia que estavas a sofrer por minha causa.
BIA – Ao princípio, custou-me muito. Aí é que sofri! Pensei até que ia morrer. A minha vida era chorar dia e noite.
PAULITO – Eu também pensei que não ia sair de lá com vida. A comida era uma porcaria; por tudo quanto era sítio cheirava fede. Os carrascos daqueles Guardas não tinham dó de ninguém. Nem sei quando é que serei capaz de esquecer completamente de tudo o que passei durante esse tempo.
BIA – Nem quero imaginar o que passaste quando soubeste que Punoi tinha morrido.
PAULITO – É uma das coisas que nem quero me lembrar. E aquele sacana do Diretor não me deu licença para ir ao funeral.
BIA – Agora que já saíste, vou contar-te uma coisa. Um dia, o Rui… aquele guarda preto, alto, e que tem barba cheia na cara, pediu-me para namorar com ele, que se tu armasses em atrevido ele dava-te porrada e metia-te no Segredo. Que tinhas muitos anos de cadeia por cumprir, se eu tinha paciência para te esperar. Como não lhe dei confiança, ele proibiu-me de entrar na Cadeia para te ver se não fosse nos dias de visita.
PAULITO – O Rui é assim com todos. Mete-se com mulheres dos presos e, também, tem hábito de experimentar Reclusas lá dentro.
BIA – Também connosco ele já descansou. Agora ele vai pedir à mãe dele. Gardion!
PAULITO – O Diretor é que lhes dá abuso. Tu não sabes o que é que o Diretor anda a fazer?
BIA – O quê?
PAULITO – Aqueles presos refilões, ou que fogem da Cadeia, ele manda os Guardas malhá-los até se desmaiarem, e ele a presenciar tudo. E estando o preso desmaiado, em vez de o levarem para o Hospital, ele manda dar-lhe banho com água fria e metê-lo no Segredo todo nu.
BIA – Estupor. E ele que era pedreiro antes de ser Diretor. O meu pai disse que ele foi um dos pedreiros que fez a nossa casa.
PAULITO – Mas já se esqueceu de tudo.
BIA – Feio como um gorila.
PAULITO – O Lagartixa e o Buba, foram os guardas que lhes bateram, a mando do Diretor, até morrerem. O Betinho Manco foi o ele que mandou dar-lhe de pau, depois mandou molhar o chão no Segredo, meteu-o lá dentro, sem roupa, sem nada para estender no chão nem para se tapar. Mandou apagar-lhe as luzes e autorizou a dar-lhe durante 15 dias, um pão e um litro de água. Quando saiu do Segredo, sentiu febre, passou três dias em cima da cama a tremer e a gemer, sem ninguém para o acudir. Só quando viram que estava mesmo a morrer é que o levaram ao Hospital. Mal deu entrada nas Urgências, foi-lhe declarado cadáver e o óbito passado. O Diretor telefonou para o Hospital, o enterro foi no mesmo dia, sem autópsia, pior que o enterro do inteligente, o cachorro do Sr. Fernando que tinha morrido um mês antes.
BIA – Mas Betinho Manco não fugia da Cadeia!
PAULITO – Ele não fugia da Cadeia, mas era um dos três que não se safavam. Ele escrevia demais, falava muito bem e num português muito fino. Por isso o Diretor tinha medo dele e os Guardas o odiava. Era daqueles que era considerado refilão.
BIA – Não me tinhas dito que Duco saiu cego da Cadeia porque levou tanta porrada?
PAULITO – Que o cegou foi uma bastonada que Rui lhe acertou atrás da nuca.
BIA – Coitadinho do Duco. Hoje ele anda de carrinho de rodas a pedir esmola.
PAULITO – Na nossa terra não há justiça. As leis não funcionam.
BIA – E naquela altura que vocês tiveram um mês e tal sem visita!
PAULITO – Sem visita, tu o dizes! E três dias sem direito a comer nada!
BIA – Sem direito a comer nada porquê?
PAULITO – Foi triste demais. Na cadeia, todos os dias dão canja para o almoço e cachupa no jantar. O prato leva menos do que um pires da nossa casa. O telefone desapareceu misteriosamente, de noite, da Secretaria. Dia seguinte era domingo, dia de visita. Normalmente, nos dias de visita o almoço era diferente, que o Diretor chamava, com orgulho ou ironia, de almoço remediado. Nesse dia era feijoada com carne salgada de porco. A visita já tinha começado quando o Diretor chegou, depois de lhe terem comunicado o sucedido. Mandou de imediato suspender a visita, cerca de dez minutos depois de os visitantes terem comprado o bilhete de entrada. Muitos tinham vindo do interior, pagando o transporte de ida e volta. Ordenou o recolher de todos os presos nas suas celas e mandou suspender o almoço e disse que se o telefone não aparecesse até a hora do almoço, que a feijoada ficaria para o jantar. Que enquanto o telefone não aparecesse para não nos derem nenhuma refeição. Três dias depois, aquela panela de feijoada com toucinho, já a ferver de azedo, foi deitado ao mar.
BIA – Lembro-me disso perfeitamente.
PAULITO – Escrevemos carta para o Ministro da Justiça, nem resposta tivemos. O Diretor-geral disse pela sua boca, que enquanto o telefone não aparecesse, ninguém comia e não contactava com familiar. Mandou fechar-nos um mês e tal, sem vermos o sol, sem visita nem direito a tomarmos banho. Um preso, ainda jovem, tinha 25 anos na altura, encheu-se de coragem e escreveu uma carta ao Diretor, com conhecimento ao Sr. Primeiro-ministro, ao Sr. Presidente da República, ao Sr. Ministro da Juventude, dado que, mais de noventa por cento dos reclusos tinham menos de 30 anos de idade. Ainda, deu conhecimento ao Psicólogo da Cadeia, que parecia amigo e defensor dos direitos dos presos, mas que no fundo, era tudo fachada, ou campanha a seu favor. Pois, mais tarde foi nomeado Diretor-geral, começou a mandar bater nos presos descaradamente.
BIA – Sem vergonha! Certamente, ele não é melhor de muitos que por infelicidade, ou por injustiça foram lá parar.
PAULITO – Quando o Diretor recebeu a carta, mandou chamar aquele preso e, no meio de quatro Guardas e de um Polícia, conhecido por Pila Ku Nha Boi, de pistola em punho, insultaram-no, procurando pretexto para lhe tratarem da saúde. Mas como o gajo não era parvo, não respondeu pau nem pedra. Mesmo assim, acabou castigado na Alpina, um lugar onde os Reclusos respiram através de tubo na parede.
BIA – Paulito, já chega. Não me conta mais nada.
Comentários