XLVIII CENA
Nha Manézia e Susana entram na sala e encontram Nhu Seis ta djongo.
NHA MANÉZIA – Sr. António sa ta djongo?! Levante-se e vai deitar. A cama já está arranjada. Está a sentir-se melhor? Bebeu o chá todo?
NHU SEIS – Bebi tudo, sim senhora. E estou a sentir-me bastante melhor.
NHA MANÉZIA – Ainda bem. Então vai dormir o seu sono. (Para Susana) Susana, leva-o para o quarto e acende-lhe o candeeiro de vidro. Verifica primeiro se tem petróleo.
XLIX CENA
Cama estendida, várias maletas arrumadas por cima da outra, um gravador grande e muitas coisas de valor. Nhu Seis deita de costas, magicando à luz de um candeeiro de vidro. Levanta e revista todas as maletas. Apanha algumas coisas de valor, mete num saco, apanha o gravador e começa a andar em direção à porta. Para de repente, matuta um pouco, volta arrumar tudo como estava e deita-se de novo.
TOTINHO (entra devagar, falando baixinho) – Deixa-o dormir. Está com sono.
NHU SEIS (finge despreguiçar-se) – Eh!… Quem é?
TOTINHO – Oh!… Desculpa! Não queria acordar-te?
NHU SEIS – Por acaso estava numa modorra tão agradável! Estava a sonhar com aquela cena em França… em tua casa.
TOTINHO – Estavas a sonhar com Dominique?
NHU SEIS – Sim.
TOTINHO – Desculpa lá por ter-te acordado… por ter-te interrompido o sonho.
NHU SEIS – Eu tenho sono leve. Passos de barata me acordam.
TOTINHO – Então aproveita dormir porque eu estou sem sono.
NHU SEIS – Eu também… se me espantarem o sono… já não durmo mais.
TOTINHO – Se não tens sono deixa-me contar-te uma cena.
NHU SEIS – Podes contar.
TOTINHO – Estou a vir de ter com uma pequena… uma linda rapariga, como se não nascesse e crescesse riba deste kau ermo.
NHU SEIS – Desde que saíste daqui estavas ao relento com a coitada?
TOTINHO – Txuputi-m N konta-u! (Nhu Seis belisca-o) Não te pedi para me beliscares, Totinho. Txuputi-m N konta-u é uma comparação de conversa.
NHU SEIS – Oh! Desculpa-me. Eu pensei que me pediste para te beliscar.
TOTINHO – Não faz mal. Conforme te estava a dizer, depois que sai daqui, fui novamente para aquela festa de casamento. Essa moça estava no terreiro a dançar torno. Rebolava as ancas que nem um pião. Quando acabou de dançar, passou o pano a uma outra moça e saiu para fora do terreiro, olhei para ela e ela sorriu para mim, pisquei-lhe um olho e fomo-nos encontrar atrás de casa. Ela mandou-me dissimular para depois ir ter com ela a casa. Que deixava o portão encostado para que quando eu chegasse, empurrasse e entrasse. Ela dorme na despensa. Mas quando cheguei o portão estava fechado.
NHU SEIS – Ela enganou-te? Passou-te o pau?
TOTINHO – Ela disse que o seu pai ainda não tinha deitado, não sentiu coragem de deixar o portão encostado.
NHU SEIS – Então como é que ela te contou isso se vocês nem se viram?
TOTINHO – Vimos sim. Não te estou a contar? Fui guindar pela parede do quintal e, estando já em cima do muro a preparar-me para saltar, um cachorrão que estava amarrado mesmo onde eu ia saltar, atirou-se a mim. Rapaz… vim de costas, cai e lá fiquei. Cerca de meia hora depois reanimei-me, voltei para o portão e estava aberto. Entrei e só sai agora.
NHU SEIS – Não tens noção da sina que estás a procurar? Se de repente o pai dela resolvesse ir a despensa e te encontrasse lá?
TOTINHO – Já agora deixa-me contar-te uma cena que ela me contou. Ela disse-me que a sua irmã mais velha, que antes de se casar, todas as noites metia o namorado no quarto e só saía de madrugada.
NHU SEIS – As raparigas quando estão na idade de namorar… aprontam sempre coisas!
TOTINHO – Ela disse que, um belo dia, como fazia calor, a irmã e o namorado despiram-se e deitaram completamente nus.
NHU SEIS – Ordinário! Foi ele quem fez a casa!
TOTINHO – Era na época de as águas. Depois do servicinho feito, ficaram a contar partidas, cochichando-se ao ouvido, beijando-se até que o sono os governasse. Começou, então, a chover levezinho. O brejeiro apanhou uma modorra e pôs-se a ressonar com volume no máximo.
NHU SEIS (admirado) – Jesus-Maria!
TOTINHO – Nha Candinha, a mãe delas, ouviu o ressonar na despensa, acordou Crispim, seu marido, pediu-lhe que fossem ver o que se passava com as filhas, porque elas não tinham hábito de ressonar, a não ser que estivessem doentes.
NHU SEIS – Fogo! O homem apanhou o gajo nunpriti?
TOTINHO – Ela disse que Nhu Crispim ficou fulo, brigou com Nha Candinha, chamou-a de chata e pediu-lhe que o deixasse dormir em paz, porque àquela hora ele não ia levantar-se da cama para sair no meio daquela chuva.
NHU SEIS – Tiveram… foi sorte.
TOTINHO – Mas, rapaz… uma mãe para seus filhos?! Então ela morre. A minha ménbra disse-me que Nha Candinha levantou-se e saiu, mesmo dentro daquela chuvarada toda, foi à despensa. Que quando entrou, olhou para cima da cama e viu um brejeiro nunpriti, destapado, assoado e a ressonar.
NHU SEIS – E o que é que Nha Candinha fez?
TOTINHO – Ela disse que Nha Candinha saiu, trancou a porta à chave e foi chamar o marido.
NHU SEIS – Agora ele vai, sacana!
TOTINHO – A minha namorada disse que Nhu Crispim levantou-se logo e saiu em ceroulas. E Nha Candinha atrás dele. Entraram na despensa e fecharam a porta à chave. Nhu Crispim tirou uma vara de marmeleiro que guardava no teto da casa e sovou o macho-velho, nha mai pari-m segu.
NHU SEIS – Costuma-se dizer que dipos di sábi mórti e ka nada, mas há prazeres que nos amargam a boca seriamente!
TOTINHO – A minha namorada disse que ela era ainda criança.
NHU SEIS – Coitadinha. Empurravam-na lá para o canto da parede e faziam da noite o pertence exclusivo deles.
TOTINHO – Ela disse-me que quando Nhu Crispim deu a primeira bordoada ao rapaz, a irmã acordou, levantou-se assustada e tapou com lençol. Que o moço saltou da cama, tentou abrir a porta para fugir mas a porta estava trancada à chave. Tentou meter-se debaixo da cama, mas Nha Candinha pegou-lhe num pé, arrastou-o para o meio da casa e Nhu Crispim sovou-lhe à maneira dele.
NHU SEIS – O desgraçado passou como aquela Raposa no galinheiro.
TOTINHO – Ela disse que quando Nhu Crispim destrancou a porta e abriu-a um bocadinho, o rapaz tentou sair. Que quando a cabeça já estava fora, Nhu Crispim voltou a fechar a porta e o desgraçado ficou preso com a cabeça de fora e o rabo dentro da despensa. Nhu Crispim pediu Nha Candinha que lhe desse uma navalha de barba para o capar.
NHU SEIS – Credo! Olha como fazes-me o corpo arrepiar!
TOTINHO – Ela disse que Nha Candinha queria capá-lo ela mesma, mas que Nhu Crispim não a deixou. Nhu Crispim só queria meter ferete ao rapaz. Mas se fosse Nha Candinha capava-o mesmo a sério. Nhu Crispim tomou a navalha e Nha Candinha foi segurar a porta. Ele meteu a mão por entre as pernas do moço, botou-lhe a mão nos tomates e espremeu-os até ficarem a reluzir. passou-lhe o reverso da navalha pelos tomates e, ao sentir a sensação da navalhada nos colhões… o coitado cagou todo.
NHU SEIS – Eu também me cagava. Uma navalha de barba a roçar-me nos tomates?
TOTINHO – Ela disse que Nhu Crispim mandou Nha Candinha abrir a porta, que o rapaz saiu a correr que nem um doido.
NHU SEIS – Filho de nacho! Ele há-de aprender!
TOTINHO – Ela disse-me que, depois de a irmão e o rapaz estarem casados, este contou que só parou a correria quando já estava em Figueira Moita.
NHU SEIS – A afronta não vem só da água ou do fogo não.
TOTINHO – Que ao sentir-se que tinha o traseiro molhado, passou a mão, cheirou e exclamou: «Caguei-me?!» Do meio do sisal respondeu-lhe a voz de um homem que estava a fazer necessidade: «Ainda perguntas?!»
NHU SEIS – Se calhar pensou que era Nhu Crispim que ainda o perseguia!
TOTINHO – Exatamente. E voltou a correr, só parou em Figueira das Naus.
NHU SEIS – E ainda ele teve a coragem de casar com a filha daquele homem?!
TOTINHO – A filha não tinha culpa! E eles se amavam!
NHU SEIS – E se te apanhar também e correr-te a navalha nos tomates?
TOTINHO – Por acaso ela disse-me que desde aquela altura, o seu pai ficou desconfiado e qualquer reboliço no quintal ele levanta e vai dar fé.
NHU SEIS – Tu tens é coragem. Não tens medo de encrenca?
TOTINHO – Estou a pensar se a mando pedir em casamento. Se os pais não aceitaram, tiro-a de casa e levo-a para França. Ela não é lá muito bonita mas é educada e muito respeitadora. (Olha para o relógio) Só são 4:00h ainda?
NHU SEIS – Que horas são?
TOTINHO – Quatro horas ainda.
NHU SEIS – O primeiro galo só cantou há bocado.
TOTINHO – É verdade, António: não trouxeste carro da Holanda?
NHU SEIS – Por acaso trouxe. Só que ainda não os tirei da Alfândega.
TOTINHO – Não os tiraste da Alfândega? Trouxeste mais do que um?
NHU SEIS – Trouxe dois. Um Toyota basculante e um Peugeot 405.
TOTINHO – Então para ai, porque vamos já fechar negócio.
NHU SEIS – Que negócio?
TOTINHO – Eu dei grande barraca não ter trazido nenhum. Não pensava que já havia estrada que vinha até a minha porta. Mas pronto… felizmente os amigos valem para servirem amigos. Já que trouxeste dois, vendes-me um.
NHU SEIS – Apesar de que os trouxe para as minhas necessidades, mas como entre nós não há como porfiar, cedo-te um, sim. Mas tens que esperar que o tire da Alfândega ou, se quiseres, faço-te um preço bom, preço que o comprei na Holanda mais o custo de passagem que paguei, tu vais fazer o despacho.
TOTINHO – O que me vais vender eu é que vou tirar da Alfândega. Diz-me só o preço e fechamos o negócio.
NHU SEIS – Depois falamos. Aliás, tens que ir ver o carro primeiro.
TOTINHO – É agora que vamos falar. Diz-me o preço e se quiseres avanço-te já uma parte do dinheiro. Depois vamos à Praia e tratamos o resto. Para quê é que tenho de ir ver o carro primeiro? Eu não confio em ti?
NHU SEIS – Peugeot eu posso vender por 300 contos. É novo em folha. Toyota já, como é basculante, também novo, vendo por quinhentos contos.
TOTINHO – Prefiro Peugeot. Até por que é uma marca francesa.
NHU SEIS – O despacho do Peugeot custa cento e vinte contos.
TOTINHO – Compro-te o Peugeot.
Totinho despendura uma bolsa velha da parede, por cima da cama, despeja dinheiro em cima do colchão e conta. Essa bolsa tinha sido ignorada pelo Nhu Seis quando revistou as coisas no quarto.
NHU SEIS – Tu guardas dinheiro em lugar tão simples assim?!
TOTINHO – Aqui não há ladrões. O único que rouba é Bujú, mas todo o mundo já o conhece e fica de olho nele. Basta qualquer coisa desaparecer aqui na zona, a gente vai logo buscar nele.
NHU SEIS – Não entendo por que é que as pessoas não trabalham e ficam a roubar coisa dos outros!
TOTINHO (dá-lhe um maço de notas) – Vai tomando estes 250 contos…
NHU SEIS – Não, Totinho. Não precisas de dar-me o dinheiro ainda.
TOTINHO (deixa o dinheiro cair-lhe na mão) – Quando chegarmos à Praia, vou ao Banco, troco franco e dou-te os 50 contos que faltam.
NHU SEIS – Devias ir primeiro ver o carro.
TOTINHO – Iremos à Alfândega depois, vou conhecer o meu carro. Ou estais com medo se não te dou o resto do dinheiro?
NHU SEIS – Não é isso. Também preciso de pensar. Embora estou zangado com a patroa, tenho que falar primeiro com ela.
TOTINHO – O quê?!
NHU SEIS – Mas não te preocupes. Ela não me vai impedir de vender-te o carro. Só lhe vou dizer pelo respeito e consideração. Somos casados, mas para vender um carro não é como vender uma casa ou um terreno que implica a feitura de uma escritura pública em que ela teria que assinar também.
TOTINHO – Não tens nada que pensar, pá. Crianças é que pensam muito. E entre negócio do homem a mulher não se imiscui. Quem manda na mulher é o marido. Ou és daqueles homens-bostas que se submetem às mulheres? Que até as lavam calcinha? (Dá-lhe o dinheiro) Guarda o dinheiro.
Nhu Seis conta o dinheiro e mete-o na pasta.
NHU SEIS – Tens razão. Desculpa.
TOTINHO (volta a olhar para o relógio) – Como já são quatro e meia, vamos descendo pela ribeira e apanhamos o carro que vai à Praia. Vou ver se trago o meu ainda hoje, antes do fim da festa.
NHU SEIS – Vais só pagar o despacho e levantas o teu carro. As outras papeladas já estão todas destratadas.
TOTINHO – Daqui para Praia só vai esse carro que vamos apanhar agora. Hoje ainda é um pouco melhor porque é dia de festa. Vêm mais carros de Santa Catarina, da Calheta e de outras localidades. Mas nos dias normais só vai esse que arranca daqui as cinco da manhã e sai da Praia as três da tarde.
NHU SEIS – E se o perdeste!…
TOTINHO – Tenho que andar a pé até a Vila… ou até Assomada, tentar a sorte de encontrar algum que ainda não tenha partido. Viste a falta que um carro me faz? Se eu tivesse um meu agora, dormíamos mais um coxi.
NHU SEIS – É por isso que te estou a fazer esse favor. Já vi que um carro faz-te muito jeito aqui. Tenho esperança de que ainda hoje voltarás no teu carro.
TOTINHO – Eu não sei conduzir, António? Se fosse burro ou cavalo… ah, isso agora… sei montar muito bem. Sou campeão.
NHU SEIS – Hoje eu posso vir contigo, trago-te o carro. Depois arranjas um condutor e eu vou-me embora.
TOTINHO – Tenho um sobrinho que tirou a carta há pouco tempo. Conduz mariado ainda… mas vai treinando. (Apanha uma mala diplomática) Vamos.
NHU SEIS – Não dá para me despedir da tua família?
TOTINHO – Elas ainda estão a dormir. Mas como vais voltar outra vez, não precisas de despedir-te delas. Se não conseguirmos despachar o carro, e não vieres, quando eu voltar despeço-me delas por ti.
Saem os dois.
L CENA
Dentro da Alfândega, Nhu Seis mostra Totinho um Toyota e um Peugeot 405.
POLÍCIA (passa simplesmente por eles) – Granda carro! Tenho um primo que trouxe um igual da Holanda.
O Polícia não para.
NHU SEIS (depois de o Polícia ter afastado um pouco) – Ele conhece-me bem. Somos amigos. Este carro está na moda cá em Cabo Verde.
Totinho dá-lhe um abraço e vão à rua. Apanham um táxi até à porta do Banco.
LI CENA
Totinho troca franco e dá Nhu Seis 50 contos.
NHU SEIS (guarda o dinheiro) – Deixa-me ir à casa de banho e já volto.
Totinho fica à espera mas Nhu Seis nunca mais aparece.
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