No primeiro liceu de Cabo Verde, em São Nicolau, já não há azáfama de alunos pelos corredores, mas há memória dos deportados da Madeira, enquanto o padre Eliseu vive e cuida de um dos mais históricos edifícios do arquipélago.
“Sim, é uma responsabilidade pessoal que tenho, de zelar pelo espaço”, começa por explicar, em conversa com a Lusa, o padre Eliseu Lopes, que há cinco anos lidera a Paróquia de Nossa Senhora do Rosário e da Lapa, no concelho da Ribeira Brava, ilha de São Nicolau.
Conhecido como Seminário-Liceu de São Nicolau, construído na vila da Ribeira Brava, centro da ilha de São Nicolau, atualmente propriedade da Igreja Católica através da diocese do Mindelo, o espaço serve hoje de apoio à catequese local e algumas das suas imponentes salas também recebem sessões de explicações para os alunos mais necessitados ou outras reuniões pontuais.
Funções que, não fosse a placa que resumidamente recorda o passado do edifício, reduzem o interesse de qualquer um que por ali passe. É que o espaço foi, durante 50 anos, o primeiro liceu de Cabo Verde, de 1866 até ao ano letivo 1917/1918, quando foi transferido oficialmente para a ilha São Vicente, mas manteve até 1931 funções ligadas ao ensino em São Nicolau, como Escola Primária Superior e depois como instituto de instrução.
Contudo, praticamente no verão de 1931, conheceu a sua mais escura função em 150 anos, ao receber os deportados da revolta da Madeira, em Portugal, nesse ano, algo que mudaria para sempre o destino da ilha e do edifício.
“É um desafio, é uma responsabilidade estar aqui neste espaço, nesta ilha, em que o espaço em si é emblemático, fala por si. Toda a história que carregamos é uma responsabilidade, mas ao mesmo tempo um desafio, por saber porque podemos não mudar a história, mas podemos valorizar ainda mais a história hoje”, afirma o padre Eliseu Lopes, que vive no edifício, na companhia de outros párocos da ilha.
Um espaço que, recorda, chegou a ser o “celeiro intelectual” de Cabo Verde: “Homens e intelectuais passaram por aqui, da música, à arte, à cultura”.
Entre os anos letivos de 1866/1867 e de 1917/1918, de acordo com dados oficiais, matricularam-se no Seminário-Liceu de São Nicolau cerca de 3.500 alunos, incluindo alguns da Guiné-Bissau, de São Tomé e Príncipe de Angola e até de Moçambique, o que para o padre e zelador do edifício, mostra a sua importância, mesmo para o continente africano.
“Não só de Cabo Verde, de toda a costa de África. Vinham os seminaristas e os alunos que iam para o sacerdócio e também os outros, para a universidade (…) Então, podemos dizer que o centro da intelectualidade começou aqui, nesta ilha e neste seminário, os grandes homens ilustres de Cabo Verde passaram pelo seminário e depois daqui foram para várias partes do mundo”, afirma.
Apesar de algumas obras pontuais que recebeu ao longo dos anos, o centenário edifício apresenta hoje problemas de falta de conservação, depois ainda ter funcionado também como externato. A presença de algumas crianças nas explicações dadas por voluntários numa das salas no seu interior, faz, ainda assim, manter a imagem da sua função inicial.
“Continua a ser um espaço do saber, um espaço útil, uma referência. Precisa de facto de ser aproveitado de melhor forma”, admite o padre, reconhecendo a necessidade de obras de valorização, desde logo tendo em conta o seu passado.
Da mesma forma pensa o presidente da Câmara Municipal da Ribeira Brava, José Martins, que ainda sonha em ver os alunos de volta às salas do antigo Seminário-Liceu: “A história não se pode nem se deve tentar apagar. Devemos projetar o futuro com base com base nisso”.
Para o autarca, a ilha, com os seus dois municípios (Ribeira Brava e Tarrafal de São Nicolau), teria a ganhar com o aproveitamento do edifício para a formação ou ensino, cuja inexistência atual obriga os mais jovens a partirem para São Vicente ou Santiago.
“Pensamos que seria importante para São Nicolau”, afirma José Martins, pedindo para aquele edifício um “polo de formação, voltado para a educação”.
Já o historiador José Cabral, de São Nicolau, passou praticamente metade dos seus 59 anos a investigar a instalação naquela ilha do presídio para os deportados políticos da revolução da Madeira, inicialmente instalado no seminário e depois partilhado com um campo de concentração, e lamentou à Lusa o desinteresse em conservar a memória do que ali aconteceu, apesar de décadas de alertas.
“A verdade é que 20 anos depois não aconteceu rigorosamente nada. E, confesso, até de algum modo desgostoso, estar a repetir a mesma história”, desabafa.
Cabo Verde recebeu na altura, estima, cerca de 400 deportados políticos da revolução na Madeira, rapidamente abafada pelo regime, metade dos quais foram concentrados em São Nicolau, mudando a vida daquela ilha.
“Até à revolta da Madeira, em 1931, as ilhas eram prisões, eram o degredo. Porque a coisa não correu bem na Madeira, com os deportados, como é sabido - fizeram a revolta, prenderam o governador e estiveram à frente dos destinos da Madeira durante cerca de um mês - disseram, ‘bom, vamos arranjar um outro tipo de prisão’. E não havia. Lembraram-se do seminário da Ribeira Brava”, explica.
“Um edifício muito grande, naquela altura o muro foi abatido, mas era um muro alto, com três e quatro metros de altura. Era um edifício propício para o encarceramento de presos. E experimentou-se lá esse novo modelo em regime fechado: uma prisão dentro da ilha”, detalha.
Durante cerca de um ano e meio, até final de 1932, o seminário, juntamente com o campo de concentração no município vizinho de Tarrafal de São Nicolau, funcionou como presídio para esses deportados.
“Alguns portugueses que estiveram na I Guerra Mundial estiveram presos no Tarrafal de São Nicolau. Eles deixaram uma vasta descendência nestas ilhas”, recorda José Cabral, um dos mais dedicados investigadores cabo-verdianos a este tema, que já valei distinções em Portugal.
“Eu entrevistei um dos alunos que estava em aula quando os deportados chegaram em maio/junho de 1931 e foram mandados embora e fechou-se definitivamente o espaço”, recorda ainda.
Como o antigo Seminário-Liceu foi pequeno para o número de deportados que o regime de então ali pretendia colocar, em “várias levas” a partir de Portugal, os mesmos foram divididos e edificado um campo de concentração de raiz em Tarrafal de São Nicolau, antecessor do campo do Tarrafal, na ilha de Santiago.
“Estamos perante uma história profunda, interessantíssima da lusofonia e do regime salazarista, que é pouco conhecida”, desabafa José Cabral, inconformado com o “desinteresse” geral com a importância de São Nicolau, que recebeu estes deportados, muitos dos quais nunca chegaram a regressar à Europa, participando ativamente no desenvolvimento cultural e económico da ilha.
“Promoveram uma espécie de revolução cultural na ilha de Santa Nicolau”, conclui.
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