O chauvinismo, o despotismo, a tirania e o desprezo pelos tidos como os mais fracos, começaram a imperar a partir da forçosa permuta de badanas auditivas entre Vicente e o Cavalo Trump Leão, tiranicamente perpetrada pelo rei da selva. Instalaram-se a corrupção, a injustiça, as arbitrariedades, a perseguição e prisão aos adversários, apartidários e desfavorecidos do sistema. A regra da desproporcionalidade, da irresponsabilidade e da loucura se institucionalizou. O respeito ou a consideração; a decência ou a compostura; a vergonha ou o pudor; os bons hábitos, costumes ou tradições consuetudinárias entraram em declínio de forma flagrante e exponencial. Os Homens-Bichos passaram a usar brinco e as suas fêmeas vestindo calças; os Tubarões que antes comiam Homens-Bichos, passaram a ser comidos por estes; o matrimónio entre dois Homens-Bichos passou a ser permitido; a nomenclatura paneleiro deu espaço ao termo homossexual ou guei; os ladrões passaram a ser diferenciados no Código Penal.
Tela era filha de Martinho Monteiro e de Maria da Veiga. Nasceu em Achada Ponta, na freguesia de Santiago Maior, no ano de 1879. Ainda jovem e casta amancebou-se com Honório Mendes Varela, conhecido por Nana, no início do século XX e tiveram 7 filhos. A Searinha, uma menina que nasceu em 1903 e faleceu aos 18 anos de idade, no fastígio da fome de 1920; o Aníbal nasceu em 1909 e faleceu em 1939, aos 30 anos de idade; A Mimi, também uma menina, nasceu em 1912 e faleceu em 1944, já na agonia da 2ª Grande Guerra e no decurso da dizimadora fome de 1947; o Manuel, conhecido pela alcunha de Siosinho, nasceu em 1915 e faleceu em 1992; em 1918 terá nascido uma menina que foi batizada com o nome de Francisca, tendo sido chamada para a eternidade em 1924; um outro menino, cujo nome já não se recorda, terá nascido em 1921 e falecido com 4 anos de idade, isto é, em 1925; e em 1924 havia nascido a caçula, herdando o nome da irmã falecida nesse ano. Foi registada como Francisca Mendes e era comummente conhecida por Fidja. No seu assento de nascimento consta ter nascido em 1925, mas entretanto, foi um lapso. Terá falecido em 2014, aos 90 anos de idade.
As 5 primeiras proles da Tela e do Nana nasceram em Achada Ponta de Santiago, e a penúltima na cidade da Praia. Já Fidja nasceu em Renque Purga, na localidade de Chã de Níspre, freguesia de Santiago, depois de terem regressado da Praia. Pois, com a fome de 1920, a fim de se escaparem com os 5 filhos da grande fome, severa seca, dolorosa miséria e impiedosas doenças, que ceifaram vidas de milhares em todo o arquipélago, Tela e Nana mudaram-se para a cidade da Praia onde hospedaram durante 2 anos. E nesse curto período, três dos 6 filhos ficaram sepultados no Cemitério da Várzea, por não resistirem a trabuzana da fome.
Regressados definitivamente da Praia, a família da Veiga Monteiro Mendes Varela já não foram instalar-se em Achada Ponta. Construíram uma habitação e fixaram a residência em Chã de Níspre, onde veio a nascer a última filha, a Francisca Mendes. Havia aí uma única casa que pertencia à Eugénia Vieira, mãe de uma tal Joana Vieira. E esta, por sua vez, pariu César Vieira, que veio a casar-se com uma outra Joana, de quem teve uma filha que pôs o nome de Benvinda. Já separada do César Vieira, a Joana se amancebou com o Aníbal, o varão mais velho da Tela e do Nana, tendo nascido, dessa amancebância, o Benvindo, conhecido por Vindo. Este veio a casar-se com a Lalá, filha da rememorada batucadeira do Espinho Branco no concelho do Tarrafal, Nha Mita Pereira. Aníbal faleceu aos 30 anos de idade, tendo deixado três filhos de três mulheres diferentes: Vindo, com a Joana de Chã de Níspre; Nha Mioda, com a Palmira de Porto Santiago e; Isaura, com Manhanha de Achada Igreja.
Honório Mendes Varela, o Nana, era filho de Joaquim Varela e de Tomásia Mendes Correia. Era neto materno de Leandro Mendes. Era pastor de gados, entre os quais, muitas Cabras. Tinha uma irmã que se chamava Nhamá Varela e que se casou com Pinote Barreto, também pastor de gados, montador de Cavalo e tocador de gaita. Do casamento entre Nhamá Varela e Pinote Barreto nasceram alguns filhos, dos quais o Antão Barreto, famoso e conhecido tocador de gaita de Achada Ponta, que foi o mentor do imortal Codé de Dona, o autor de várias músicas que retratam as sagas mortíferas dos anos de 1940 e as odisseias para as terras do Sul [São Tomé e Príncipe]. Por seu turno, Matilde da Veiga Monteiro tinha duas irmãs, todas mais novas do que ela. A Jacinta da Veiga, conhecida por Nhanhã da Veiga, que rumou para o Sul em 1919, enquanto contratada, para ir trabalhar nas Roças, carregando pesados coales [tinas] de cacau, suportando desaforos e abusos dos capatazes e patrões brancos e desumanos. A bordo do navio que a levava para o Sul, nasceu o seu primogénito, Inácio Cruz da Veiga, que responde pela alcunha de Nhonhó Paduco. A Evarista Costa Monteiro, que era conhecida por Bina Monteiro depois de emancipada foi morar para Ribeira Seca, na casa onde mais tarde, nos finais da década de 1960, ou princípios de 1970, veria morar a batucadeira, Nha Nácia Gomi, quando se instalou na freguesia de Santiago Maior, vinda de São Miguel, depois de ter casado com Paulino.
Nhanhã da Veiga regressou ao arquipélago 9 anos mais tarde, enferma de uma doença que se chamava algumina [anemia], tendo-lhe roubou a vida em 1928. O filho, Nhonhó Paduco, com 9 anos de idade, ficou aos cuidados da tia Tela, em Chã de Níspre, crescendo com os primos Aníbal, Mimi, Siosinho e Fidja. Estando já, maior e vacinado, constituiu a família e escolheu morar-se em São Cristóvão. Teve como filhos a Eliza, que era esposa do Ratinhos de São Lourenço dos Órgãos; da Tetina e da Conceição da Veiga. As filhas eram todas professoras de profissão, à exceção da Eliza que, após se reformar, formou-se em Direito e inscreveu-se na Ordem dos Advogados para exercer a advocacia.
Nha Bina era mãe de Maria Josefa Monteiro, a conhecida rabidante Pandónga. Esta casou-se com João Lopes, um dos filhos do Lourenço Lopes de Macati, o ancião carinhosamente conhecido por Lorém Lopes. Tiveram alguns filhos, dos quais o Salvador e o Engenheiro Florentino.
João Lopes era irmão da Germina, casada com da Cruz de Porto Abaixo. Germina é mãe da Ema, que, com Zito Monteiro, filho da Vinda Alves e do José Benício Monteiro pariu Rider, que, com Zoraima Varela Martins engendrou Emelly Lally Martins Monteiro e Kemelly Lally Martins Monteiro. Zoraima é filha de Armindo Martins Tavares e de Isaura Mendes Varela, esta conhecida por Clarice de Nhéntxa.
Especula-se que Tela tinha uma terceira irmão, a Camila Soares, conhecida por Cubemba, que morava em Monte Negro. Mas sobre isso muito pouco se sabe.
A Fidja, última prole da Tela e do Nana, namorou um rapaz cuja tez era acentuadamente branca, olhos esverdeados e falar fanhoso, de nome Armando Fernandes Martins ou Armando Martins Cardoso, conhecido por Armando de Nha Fidjinha, que morava na Cruz de Borralha em Renque Purga. Defronte à Igreja de São José Carpinteiro. Fidja e Armando veriam a ter uma filha que registaram com o nome de Ilda Mendes, filha de Francisca Mendes e de Armando Martins Cardoso. Mas é conhecida pela alcunha de Zita. Dois anos mais tarde veria a nascer Antónia Mendes Varela, conhecida por Zina. Eram todas brancas como o pai que era neto de um português que que aportou no arquipélago como Mestre-de-obras e acabou-se como grande proprietário de sequeiros e regadios. Armando veio a falecer em 1947, aos 29 anos de idade, no Tarrafal de Santiago onde era funcionário da Câmara Municipal, vítima de uma febre ruim. Deixou mais duas mulheres grávidas. A Bia que veio a parir Fátima, sendo esta, uma das mães de filhos do Antoninho Zebedeu, da família Macedo; e Nhanhinha, que pariu Ricardito, que foi professor e funcionário dos Tribunais em Santa Cruz, Sal, Fogo, Assomada e Praia. Hoje é reformado.
Armando era o caçula de Nha Fidjinha e tinha como irmãos: Ildo Martins Cardoso; Antónia Martins Cardoso; Djin, mãe do falecido Álvaro de Fazenda, que era empresário e conhecido por Jibóia; e Armindo Mendes dos Reis, o Sr. Armindo Enfermeiro que dava consulta numa enfermaria na Rua onde agora é Pedonal, no nº 55, no Platô. Aliás, Armindo era o mais velho, filho de um outro pai, isto é, da primeira relação.
Antónia Martins Cardoso, vulgarmente conhecida por Tó, era mãe do Carlos Alberto Silva Martins, o Katxás, que foi fundador e dono do Conjunto Bulimundo. A alcunha «Tó» foi alterada para «Tó Martins», logo após a sua morte, pelo seu filho Katxás e o Conjunto Bulimundo que, na melodiosa voz do jovem Zeca de Nha Reinalda, ficou imortalizada na canção «Tó Martins». Katxás era filho também do Domingos Tavares Silva, conhecido por Lelenxo ou Nhu Léla, de Porto Santiago. Nezinho Lobo Tavares era sobrinho do Lelenxo. E era conhecido por Nezinho Lelenxo, porque este o criou desde pequeno, depois da morte do pai, José Tavares Silva, num acidente de cavalo. Nezinho era o emissário que levava os recados à To em Renque Purga. E nessas missões, ele e a Zita se conheceram. Tó Martins era tia e madrinha da Zita. Nezinho e Zita se pecaram e, não muito mais do que 9 meses nasceu Armindo Martins Tavares e mais 7 consecutivos, sendo 2 falecidos quando ainda era bebés.
– A Vaca desceu do carro em Chã de Níspre e o condutor seguiu a sua viagem em direção ao Porto Santiago – voltou Peru a explanar. – Em Achada Fazenda o carro parou e a Zeza desceu. Em vez de se dirigir à cabine para pagar ao condutor, pôs-se em fuga e entrou nas bananeiras, não sei se de Chã de Oril, na horta do Beja Alves ou do outro lado, na do Ernesto Sanches ou do Djonzinho de Bibí.
– Estupora! – disse Manel Mangradu [Garça Branca]. – Por isso é que ela foge sempre que vê um carro a passar! Deve pensar que o condutor lhe irá cobrar!
A Cabra Mãe sentiu um aperto terrível no lado esquerdo do peito e uma profunda angústia no seu ser. Limpou as lágrimas e seguiu-se um intrínseco monólogo: «Por este vergonhoso momento que ela me fez passar, quando eu chegar à casa nós conversamos. Vou pôr a Coruja dormir nos dorsos dela». Sentiu receio de já não estar à altura de enfrentar as picuinhas de suas cabritinhas, mesmo tendo sido, em tempo, demasiada exigente, uma exaurida encenadora e cultora de bons costumes, intransigente transmissora de atos decorosos como troféus para suas beldades. Pôs uma expressão pesarosa, que permitia ler nos seus olhos o desejo de retratar tudo o que havia dito em defesa das filhas, mormente, da Zeza, que afinal era uma grande Thug. E o Pato guaguaxou:
– Essas estórias encaixam-se. A Cabra foge para não pagar; o Cão corre atrás para receber o troco; e a Vaca, como não deve e nem lhe é devido, não sai do caminho. Se marimba nas pedaladas no acelerador e nas buzinadelas do chofer!
A deputada Coruja que estava quase cega por causa do sono e da luz que a incomodava, por causa do barulho e dos risos exagerados, levantou-se meia estonteada e piou:
– Por isso é que os franceses dizem: Je suis en vacances. Estou de férias. Ou seja, em sentido figurado: Estou nas calmas, ando em passos de Vaca. En vacance. Vaca, vacance. Andar descansada. Ir de férias para descansar-se. Estar-se nas tintas. Na mansu-mansu.
O Leão mudou do assunto e retomou a conversa com o deputado Cão para lhe ditar a sentença. E naquele sotaque fanhoso, ou seja, com sons nasalados, foi lendo o veredito:
– Por esta brilhante argumentação com que sustentaste a tua defesa, pelos testemunhos abonatórios dos teus colegas que, depois de dirimida a confusão de que não foste tu o autor daquele fus fede e te foram abraçar, à exceção do Chico que, entende-se perfeitamente o porquê, e pela douta eloquência da oratória do Bastonário da Ordem dos Advogados Macacos, julgo o processo improcedente, ordeno e determino o seu arquivamento. Fica em paz, que o Senhor te acompanha.
Todos se congratularam com a sentença, exceto aquele que já poderíamos, de antemão imaginar. O renegado Macaco. Manel Mangradu intrometeu, não para elogiar a decisão, mas como era muito chegado à Vaca, tendo-se falado tanto desta e por bons motivos, quis felicitá-la pela sua importância. Ele e a Vaca eram bué amigos. Estava sempre no meio das suas manadas, às vezes sobre os seus dorsos catando-lhes parasitas, como os impiedosos carrapatos.
– A Vaca é tão importante que quando o marido morre, este é condecorado com a grande medalha da vacaria. Passa a ser tratado, no talho, por Vaca e não pelo Boi.
Sem querer, do rosto barbudo do Leão escapuliu um sorrisinho pouco habitual ou, simplesmente inautêntico. E como se por contágio, toda a sala se riu e aplaudiu a sentença que absolveu o Cão. E o Periquito que estava empinocado sobre a janela, não deixou dúvidas de que era a favor da sentença produzida.
– Tadinho! [Coitadinho] O pai dele tinha morrido de uma forma bué dramática. Foi fazer xixi na empena de uma casa que estava velha, toda definhada, a urina escorreu e a enxurrada esgaravatou o alicerce, a casa ruiu e caiu-lhe em cima. Morreu na hora. Então os filhos ficaram com medo e, doravante, sempre que fazem xixi levantam a pata traseira e seguram a parede para não lhes cair também em cima.
Digeridas as espetaculosas risadas que encheram a sala, o Leão decretou um intervalo de 15 minutos para tomarem uns copitos e refrescarem a cabeçorra. Os machos foram quase todos beber uns grogues, umas cervejolas ou umas taças do vinho Manecom de lá dos despenhadeiros dos Mosteiros na ilha do Fogo. As fêmeas, essas aí, sem exceção, foram beber uns pirolitos, limonadas, chalalá e sumos de tamarindo ou da calabaceira. E como acepipes serviram-se de torresmos, postas de moreia ou txetxetxi [chicharrinho] fritos, filhoses de banana e pão com manteiga. Concentraram-se na taberna do Nezinho Lobo e da Zita Branca, a primeira empreendida em Achada Fátima.
O único Bicho que ali se encontrava, pensando, propositadamente em pendurar nos outros, era o Lobo. Mas não teve a sorte, ninguém lhe deu trela. Todos o conheciam e sabiam que ele era um pendura, um comilão, intrujão, preguiçoso, mentiroso, presunçoso e que cheirava à catinga. E quando se apercebeu que estava sozinho no meio de tantos Bichos, bocejou, apertou o estômago, contorceu-se e caminhou em direção à rua, desesperançado.
O chauvinismo, o despotismo, a tirania e o desprezo pelos tidos como os mais fracos, começaram a imperar a partir da forçosa permuta de badanas auditivas entre Vicente e o Cavalo Trump Leão, tiranicamente perpetrada pelo rei da selva. Instalaram-se a corrupção, a injustiça, as arbitrariedades, a perseguição e prisão aos adversários, apartidários e desfavorecidos do sistema. A regra da desproporcionalidade, da irresponsabilidade e da loucura se institucionalizou. O respeito ou a consideração; a decência ou a compostura; a vergonha ou o pudor; os bons hábitos, costumes ou tradições consuetudinárias entraram em declínio de forma flagrante e exponencial. Os Homens-Bichos passaram a usar brinco e as suas fêmeas vestindo calças; os Tubarões que antes comiam Homens-Bichos, passaram a ser comidos por estes; o matrimónio entre dois Homens-Bichos passou a ser permitido; a nomenclatura paneleiro deu espaço ao termo homossexual ou guei; os ladrões passaram a ser diferenciados no Código Penal. Para certos Bichos, como o Rato dos gabinetes, o termo furto ou roubo passou a ser designado de forma mais elegante: desvio ou extravio. Só é ladrão, aquele que roubar um cacho de banana ou uma galinha para dar de comer aos filhos pequenos e famintos. Os palhaços tornaram-se deputados e o ministro fez-se de músico no Parlamento. O caço-body oficializou-se na governação, nas Forças Armadas, na Segurança e entre os magistrados numa simbiose ou conivência do poder com a traficância. Quem está no poder recebe uma renda por morar na própria casa. Ajustes de conta desmesurados, bichocídios sem investigação, tráfico de Homens-Bichos semelhante à escravatura na idade média, rapto de crianças tal qual dos javalis nas matas de África no período escravocrata. Daí o aforismo: A esquerda virou pela direita e a direita virou pela esquerda. E o mundo entrou num desespero sem precedente, com inflação de Doutores e Pós-Doutores fabricados na Universidade nacionais e por correspondências, com diplomas adquiridos como se numa China Shopping, exercendo cargos de Comissários do Partido que os contrata sob o vergonhoso epíteto de Diretores ou PCAs das grandes Agências (Des)Reguladoras, ganhando balúrdios. Inautênticos doutorados, charlatães incompetentes, intriguistas travestidos e bagunceiros sem caráter.
Chinoquinha sonhava ser doutor com «D» maiúsculo. Inscreveu-se no curso da língua portuguesa do Centro Cultural Português, Polo de Santa Cruz, em Achada Fátima. Nos primeiros tempos ia às aulas montado no Burro que o pai comprara para utilizar como meio de transporte nas suas idas às casas das raparigas [Amantes, concubinas]. Durante as aulas, Chinoquinha amarrava o burrico numa acácia que ficava a escassos metros, defronte à janela da sala onde a aula era ministrada. Numa das aulas, o Professor estava irritado com os alunos, porque havia mais de três meses que lhes vinha ensinando, todos os santos dias, quais eram as cinco vogais que constituíam o abecedário português, mas a cachimónia dos pupilos recusava, teimosa e insistentemente, retê-las e conservá-las no compartimento azevieiro da memória. Fulo e completamente fora de si, o ilustre pedagogo resolveu subverter a didática, ignorando, por alguns instantes, a ciência que tem como objeto de estudo a educação, o processo de ensino e a aprendizagem, ou seja, a Pedagogia. E disse de forma perentória:
– Hoje não vou tolerar. Já é demais. Quem não souber quais são as cinco vogais vai levar 24 palmatoadas. Seis em cada uma das mãos e seis em cada sola dos pés.
A turma ficou quieta, calada como um mausoléu recentemente erigido. O Professor lançou um olhar feroz para o fundo da sala e perguntou a um aluno que, não só respondeu errado, como também se expressou num tom bastante gélido. E a palmatória foi zimbrando [Batendo, espancando] de mão em mãos, carteira em carteira, até chegar ao Chinoquinha sem que ninguém tivesse acertado, ou respondido. E quando já ia a chegar a sua vez, como se de propósito ou combinado, o Burro zurrou bem alto e num cadenciado tom: – Aaaah – Eeeeh – Iiiih – Ooooh – Uuuuh – Inchado de orgulho, Chinoquinha virou os seus oblíquos olhos para o Professor e respondeu; A-E-I-O-U, como se, na verdade, não existisse por perto nenhum ex-Vicente. O Professor desencarquilhou a franzida testa com um breve sorriso e congratulou-se com a contribuição do Burro a favor do menino chinês, enaltecendo a sua habilidade mimética, quanto a capacidade cognitiva:
– Este Burro é fenomenal. E o chinês não é exceção. Ele aprende com um Burro mais do que com o Professor! Só visto!
Um outro aluno cuja vez, também, não havia ainda chegado, não se conteve e interveio com a sua já habitual e escabrosa casquinada:
– Este burrico é um perfeito Professor Doutor, Pós-Doutorado e especialista em cozinhar Txepe na Avenida Cidade de Lisboa. E o Chinoquinha também é campeão. Aliás, é por isso que na China, até conseguem fazer arroz de plástico.
Após esse conturbado momento, o Professor escreveu o sumário: Os Géneros Gramaticais. E ensinou-lhes que para passar uma palavra do masculino para feminino, ou vice-versa, em certos casos, bastava mudar «O» para «A» ou o «A» para «O», respetivamente. E deu alguns exemplos, como os que vimos atrás no caderno do Chinoca.
Naquele intervalo de 15 minutos, decretado pelo Leão, o deputado timorense também não participou no convívio com a malta. Pensando que a reunião seria presidida pelo Elefante, ele compareceu vestido completamente com roupas da cor da bandeira das Nações Unidas, desde os sapatos ao chapéu, como pretexto para provocar e humilhar o Leão. Ele tinha sido um dos organizadores do abaixo-dedo-na-tinta e, um dos ativistas que votara e fizera campanha ao lado das Nações Unidas para a emissão do mandado de captura internacional contra Leão. Porém, ao verificar que quem presidia à reunião era precisamente o Leão, aproveitou no intervalo e foi comprar um par de fatos igual ao que o Leão trajava, nos lotes de roupa «Ya», roupas usadas vindas dos Estados Unidos e que Nhaluca de Doutor de Ditosa e Cisa de Tote Nana vendiam baratos, isto é, quando as vendiam aos saldos. E pôs uma gravata no toutiço em vez de pô-lo ao pescoço, tentando imitar a juba do Leão. Tinha vindo do Timor Lorosae. Seu pai era da ilha da Brava e sua mãe da Indonésia, cidade de Jacarta na ilha de Java. O pai fora para Díli como chefe dos Correios, conheceu ali a sua esposa que era uma bailarina do estilo Kotxi-Pó, casaram-se e nasceu esse bichinho vaidoso e de múltipla faceta.
Muito tranquilamente, o Leão dirigiu-se para o tablado, ostentando com exuberância toda a sua vaidade, outrora tida como arrogância. Tinha uma pele da cor de uma mistura de café com leite, com mais leite do que café, uma imensa crina negra e uma cauda que ultimava numa adensa felpa igualmente negra. Antes de se sentar no seu cadeirão real, açoitou o ar, umas quantas vezes, com a felpuda cauda, quiçá, para dispersar o fétido ar anal que expelira. E já sentado, levantou bem alta a cabeçorra, abriu as narinas e insuflou o peito com uma boa lufada de ar antes de retomar os trabalhos. E o deputado de Díli foi sentar-se mesmo ao lado dele, totalmente disponível para a subserviência. Adorava bajular tudo quanto era chefe e não vacilava em mudar de roupagem ou de caráter, conforme fossem as circunstâncias. Com um leque da China ele abanava suor ao Leão permanentemente. Não lhe era conhecido o nome. Sempre que lhe perguntavam como se chamava, respondia apenas com um alegre sorriso. A sua despudorada subserviência era mais do que notória. Houve uma altura em que o Leão bocejou, de imediato ele tirou uma banana do saco, descascou-a e, com toda a delicadeza, meteu-a na boca do seu rei. E quem não se mostrou lá muito simpático, menos ainda delicado com esse ato do deputado timorense, foi o outrora Macaco. Pois, ao ver a banana sair do saco, o deputado Chico deu um pulo de satisfação e uma risada de agradecimento antecipado, deixando à mostra toda cárie da sua dentadura desconjuntada. Mas essa efémera alegria começou a desmoronar-se logo de seguida, tendo-se transformado num autêntico pesadelo quando ele viu o Leão a devorar, com muito apetite, a amarelinha banana que mais parecia lua nova no esplendor de um Céu noturno. Era uma banana denominada de Banana-Macaco. Porém, Chico nutria ainda a esperança de que o deputado bajulador atirasse a casca para o chão. E estava já preparado para efetuar um salto mortal ou acrobático. Não se encontrava muito distante da mesa. Mas dececionou-se logo após às congeminações, depois de ver o bichinho lisonjeiro postado de joelhos a engraxar as enormes garras do Leão, usando para o efeito, a desejada casca de banana como graxa ou pomada. Houve uma altura em que o Leão aparentava bué exausto, de vez enquanto piscava os olhos em sinal de uma lânguida sonolência. O bichinho saltou do banco, estendeu-se no chão e disse:
– Eu sou cama, Leão. Venha deitar-se em cima de mim e descanse as suas pestaninhas.
Todos se riram, alguns não por acharem piada, mas por vislumbrarem tanta idiotice, tanta pouca vergonha num animal tão baixo como descarado. E como não lhe conheciam o nome, batizaram-no de «Cama», com o sobrenome «Leão», que, fundindo os dois vocábulos, transformam-se em «Camaleão». Daí, adveio o nome para o bichinho que viera de lá do Timor Lorosae.
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