A empreendedora
Cultura

A empreendedora

Já muito antes de pensar na mudança para Longueira a ideia de ir pescar baleia já o prendia a vontade de ir, mudar para outros arres, olhares os mares e marés. Nunca foi homem de parar num lugar só ou ficar sem gastar a sola da bota num forró, coisa dos outros tendo em conta que funaná perturbava a terra e levantava o fumo até suores molharem o corpo. Ainda que a sua esposa o acusava de ter gosto demasiado abrasileirado.

-Agô foró! Dizia ela.

O mundo andava em saltos altos quase frágil, a própria esposa usava salto alto gastada e quase a quebrar, o que obrigava-os a parar de vez em quanto para remendar tão amado sapato, ao consertar os seus sapatos logo vem a cabeça de que o mundo mesmo estava em remendo quase a despedaçar. É a guerra meus filhos, reparar esses saltos altos, tem sido uma guerra é preciso ter garras e vontade de tê-las nos pés. Meio mundo estava para quebrar. Muito antes da guerra, eles que nasceram na época do território ultramarino, os mais jovens podiam ir pegar nas armas, ir ajudar os ingleses através deles. Os primos portugueses.

Sempre teve essa ideia. Ele só queria a guerra, a guerra com as baleias jubartes e brancas, ou um cara a cara com tal Moby-Dick. Ainda que as elevações de terra desuniam Longueira das restantes regiões habitadas de Tarrafal, tinha especial atenção nos dois jogos de palitô, e no vestido de noiva. Quase a chegar em Longueira descontinuaram a viagem para relaxarem e se atualizarem sobre os últimos acontecimentos ouvindo a radio América.

A guerra não estava tão longe de chegar. A sua senhora nunca teve língua presa, sabia que a qualquer dia ele desaparecia por dias ou talvez anos. Seria a nona vez que iria partir.

-se desta vez fores embora sem nos casarmos, não precisas voltar. Informou por essas palavras ao marido vagamundo.

-mulher, eu vou embora, mas sempre volto, eu fui feito para conhecer o mundo, eu não sou vagabundo, não me trates assim mulher. Eu só sou vagamundo.

-veja bem, se fores embora sem nos casarmos, juro-te que jamais te esquecerei, jamais te esperarei, jamais te perdoarei. Mas serei só a mãe desses sete filhos e a dona de uma outra norma. Vê o mar? Pois, é só fingimento. Nós os cabo-verdianos não fomos inventado para viajar, nós somos os restos das viagens e do degredo forçado, somos o acidente das viagens, ainda que há muito andamos a fugir para outras partes.

Chateado pela ração da mulher, ele perguntou.

-norma? Qual norma? Eu não sou preso e nem serei prisioneiro dessas ilhas e nem conivente com o mar.

-então estas decidido a ir embora, fica a saber que serei só mais mulher, e vais ouvir sobre mim. Olha que estarei aqui te amando, estarei aqui te desprezando. Claro, só se tu fores embora desta vez.

-olha, daqui a três dias estará um baleeiro na ilha do Fogo e vai sair um barco na cidade da praia para lá, eu preciso ir, preciso matar-me dessa gana de conhecer. Tu sabes que morro aos pedaços quando entro em pausa por aqui, o interior de Santiago estará sempre no meu interior. Mas tem só norte, badius sem livros na mão, mais nada.

Depois de terem ganhado o descanso, a mulher arrumou as coisas ordenou as sete crianças para pegarem as coisas que o marido tinha trazido até aquele momento. Por dois eternos minutos ele despediu do Tubursiu pé na estrada.

-não sou eu é que vou-te prender, vá, que aqui temos essa seca para enfrentar, vá ao encontro do mundo que aqui tenho tudo, esses nossos sete filhos para educar sem esses vícios de serrem badius de fora, aliás irão ser um dia badius com esporas na mente. O marido em silêncio arrumou a sua bolsinha de restos de trapo velho pendurou e voltou a cara em direção à cidade. Antes pegou num jumento que estava os acompanhando na mudança. A mulher o impediu de levar, apesar de aceitar a recusa, perguntou.

-então é assim? Desta vez tu despediste.

-sim, ainda tu tens a chance de voltar. Não esqueça que te amo longe daqui sendo tu ainda presente.

Foi-se o homem, foi embora partindo com a certeza que aquela partida seria só de ida. Um ano depois enviou uma carta à família informando do seu estado e a vida na América, a sua participação nas pescas de baleia e dando conta que também tem forró e há homens de preto e pretos nas ruas de corneta na boca soltando folgo ao abrigo de uma melodia que o lembrava o seu avô de corrente nos pés a chegar a cidade do mais antigo nome[1]. Como encomenda enviou mais dois pares de palito e dois vestidos de noiva com a ideia de que um dia os filhos e filhas poderão usa-los para os seus casamentos. A chuva teimava em não vir, e quando vinha era só uma ou dois vezes num mês só para aliviar a teimosia daquelas gentes num bom ano de azagua, naqueles dois anos a situação se tornou terrível. Em longueira as pessoas já morriam a conta-gotas devido a seca e a fome, o boato da guerra já não se fazia só por boato era uma certeza confirmada, Hitler desafiava a todos assim como a seca em Cabo Verde.

-gentes a morrerem a fome nesta seca ele me envia palitô e vestido de noiva, resmungou a fecunda. Entre a deceção e raiva do ex. marido na América a senhora teve a grande ideia.  Quilómetros de terrenos estavam a ser abandonados pelos donos, muitos já não tinham dinheiro e nem meios de aguentar a propriedade. Os que eram de Portugal fugiam para a Europa, américa e outros lugares, os que eram da terra tiveram alguma sorte, sobretudo os adultos e anciões, não iam para a guerra, somente os mais novos.

Os jovens queriam casar, mesmo que por fingimento, ao saber disso, o pároco impediu muitos casamentos e ordenou que os casamentos tinham de ter certos arranjos, como vestuários por exemplo. Depois daquela imposição houve desespero, já que tinham de ir para a guerra. O padre todas as sextas feiras vinha até Longueira confessar pessoas e conceber celebrações de casamentos que raras vezes acontecia tendo em conta que as pessoas não tinham posses de terem um bom palitô e vestido de noiva branca que restasse pelo chão.

A senhora fecunda respondeu ao seu marido a carta dois anos depois de a guerra ter iniciado.

“Meu ex. e amado marido, te peço. Não me envia, cartas e nem saudades nas assas de quem vem. O palito e o vestido de noiva que enviou e aquela que serviu a nossa deceção de não casarmos, me deu a outra norma e forma. Aluguei os todos em troca da realização de sonhos. Os jovens de Longueira que não foram para a guerra casaram-se com os trajes que aluguei. Em troca das suas terras e restos dos animais que não morreram de fome e seca. Agora a totalidade de Longueira é minha. Só minha. Eu sou a fecunda e norma com a outra forma. A minha própria norma. A maior laboriosa de Cabo Verde. Agora, nas sextas já não vem os padres depois do início da segunda guerra mundial ter iniciado no dia 1 de Setembro de 1945. Os teus filhos te amam. Eu também, mas, mais as minhas, minhas terras.

[1] Emprestado no título do livro do grande poeta Tarrafalense José Luís Tavares

[1] Emprestado no título do livro do grande poeta Tarrafalense José Luís Tavares

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