O lugar da memória*
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O lugar da memória*

É preciso ir aos fundamentos da memória para que se possa perceber o atual posicionamento deste atual MPD que sem pejo, nem pudor, chumba a comemoração do centenário de Amílcar Cabral. É um grau de irracionalidade e insanidade tal que vai a ponto de querer separar o fundador de um partido político da história e memória desse mesmo partido político. Ou de ainda querer separar o fundador de um Estado da história e da memória desse próprio Estado. Mas, esta postura não iliba também quem teve a oportunidade e responsabilidade da reposição histórica e da construção da memória coletiva e não o fez.

1. Por estes dias, a Nação caboverdeana está a ser confrontada com um profundo problema ligado à sua memória. Trata-se do tratamento que foi dado à proposta de comemoração do centenário do nascimento de Amílcar Cabral. No desenrolar deste processo, há duas situações que me têm causado um enorme espanto. Ambas igualmente graves: por um lado, a forma como tem escapado a muitos esta dimensão da memória – mas a memória como este atual MPD lida com a história de Cabo Verde – e, por outro lado, os discursos que procuram assumir como de um coletivo a negação da comemoração do centenário, esquivando-se na referência ao “parlamento nacional” quando é sabido muito bem que apenas e somente um único partido votou contra. Porquê transpor para o “todo” “parlamento nacional”? Com que intenções? Porque motivos?

2. Preocupa-me, igualmente, uns tantos que se têm desdobrado na apresentação de formas alternativas de comemoração, como que justificando a dispensabilidade da aprovação pelo MPD, categorizando essa aprovação de “oficial”. Como se o cerne da questão fosse a existência de formas alternativas de comemoração e não o chumbo do MPD. Essas iniciativas alternativas de comemoração nunca deixariam de existir, independentemente da aprovação de uma comemoração oficial, da República. Contudo, o contrário já não se aplica! Não são as formas alternativas que, por mais diversas e expressivas que possam ser, que substituem uma aprovação da República que só não aconteceu pelo voto contra do partido político MPD;

3. Contudo, se recorrermos brevemente à memória sobre a forma como o MPD lida com a história de Cabo Verde, encontraremos factos bastante ilustrativos que, no geral, demonstram uma obsessão em apagar toda a história deste país que esteja ligada ao PAICV: chegados ao poder em 1991, elimina todos os símbolos da república: o hino, a bandeira e as armas. Elimina também nomes de ruas e praças que prestavam homenagem a Amílcar Cabral e ao período de luta pela independência. É assim que a praça central no Plateau deixa de ser “Praça 12 de Setembro” – dia de nascimento de Amílcar Cabral, o “dia do centenário” – e passa a ser “Praça Alexandre Albuquerque”. O mesmo acontece com a localidade antes denominada de “Bairro Kwame Nkrumah”, líder anticolonial ganense, que passa a ser “Bairro Craveiro Lopes”, entre vários outros exemplos. Sempre com o foco de apagar a história e a memória de Amílcar Cabral e a luta pela independência, desvalorizando tudo: Amílcar Cabral, a luta pela independência e a própria independência. Não é por acaso que nos dias de hoje a figura de Amílcar Cabral foi banida de toda e qualquer nota ou moeda em circulação neste país! Não é por acaso que no ano de 2002, no Parlamento Nacional, o MPD defende que o PAICV deveria ser ilegalizado enquanto partido político;

4. É preciso ir aos fundamentos da memória para que se possa perceber o atual posicionamento deste atual MPD que sem pejo, nem pudor, chumba a comemoração do centenário de Amílcar Cabral. É um grau de irracionalidade e insanidade tal que vai a ponto de querer separar o fundador de um partido político da história e memória desse mesmo partido político. Ou de ainda querer separar o fundador de um Estado da história e da memória desse próprio Estado. Mas, esta postura não iliba também quem teve a oportunidade e responsabilidade da reposição histórica e da construção da memória coletiva e não o fez;

5. Vamos comemorar Cabral, por todas as razões, mas também por dever de memória coletiva e verdade histórica.

* Artigo original publicado pelo autor no facebook

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SOBRE O AUTOR

Francisco Carvalho

Político, sociólogo, pesquisador em migrações, colunista de Santiago Magazine

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