Acordos de mobilidade. Incapacidade de traduzir problemas do povo em políticas públicas das migrações
Colunista

Acordos de mobilidade. Incapacidade de traduzir problemas do povo em políticas públicas das migrações

1. A análise desta retoma da questão da “mobilidade” exige uma pergunta de partida: em algum período da sua História, os caboverdeanos ficaram conhecidos como um povo que enfrenta o problema de não conseguir vistos para ir passar férias no estrangeiro? Não, pelo simples facto de a pobreza do país não permitir este tipo de procura de lazer em larga escala, a ponto de passar a ser um problema. A História dos caboverdeanos pelo Mundo é largamente conhecida como sendo de um povo trabalhador que sai em busca de uma vida melhor. Acontece que por não ter a devida garantia e proteção dos seus direitos desde a sua saída de Cabo Verde, então vê-se obrigado a sujeitar-se a duras condições de trabalho, mal remunerado, nos setores económicos menos desejados e no limite da exploração e da marginalidade. É este quadro de questões que deveria ser objeto de acordos desde a saída e não a preocupação com a isenção de vistos para 30 dias que só servem para turismo!

2. É fundamental ver que todas as principais razões por que o caboverdeano sai do seu país exigem um visto para além de um mês! São os dados do Inquérito Multi-Objetivo Contínuo do Instituto Nacional de Estatística, referentes ao período 2008-2013, que nos mostram que a saída para o estrangeiro pelo motivo de férias – ou qualquer outra razão de curta duração – está longe de aparecer entre as principias razões de saída: estudos (36%), agrupamento familiar (21,4%), procura de trabalho (17,6%) e saúde (16,7%) são os principias motivos para ir para o estrangeiro. Face a estes dados, qual a razão da aposta na assinatura de acordos que, em matéria de emigração, não dão nenhuma resposta aos principais problemas da vida das pessoas enquanto migrantes? No olhar atento de José Casimiro de Pina, só pode ser porque as autoridades caboverdeanas estão a apresentar uma proposta que, na verdade, é ideia de um outro membro da CPLP – num subterfúgio para ajudar Cabo Verde a ficar “bem na fotografia” da sua presidência da CPLP e, igualmente pior, afirmamos, para ajudar as autoridades de Cabo Verde a ludibriar os caboverdeanos que, por sua vez, vão continuar na penúria à frente do Centro Comum de Vistos!

3. No passado mês de março, saiu um estudo da Afrobarometer a confirmar que 57% de caboverdeanos têm pensado em emigrar. Os Censos de 2010 dão conta de cerca de 496 mil nacionais a viverem no país e estima-se que haja o dobro espalhado pelo Mundo! Um país que tem mais cidadãos e seus descendentes a viverem fora do território nacional, deveria ter como uma das suas principais prioridades o acompanhamento e a melhoria desse processo de saída de seus cidadãos e, só muito mais tarde, a preocupação com acordos de saídas para férias. Exigência que se coloca ainda mais nesta altura em que, por um lado, há notícias de ameaça de redução ou até corte de vistos para cidadãos caboverdeanos para os EUA e, por outro lado, há um número crescente de caboverdeanos que procuram o mercado de trabalho da Alemanha, duas situações que exigem a cobertura rigorosa do Estado;

4. Há uma tragédia social silenciosa de efeitos inimagináveis que é a situação provocada pela desestruturação familiar resultante da emigração forçada de apenas um dos progenitores, na sua larga maioria, o pai, com todas as consequências advenientes, entre as quais, seguramente, estará a contribuição para a mais de metade de crianças – são 56% – que no ano de 2017 estão a crescer só com a mãe e cerca de 1300 crianças que não são registadas pelo pai (13,6% do total de nascimentos registadas em 2015). É o que nos revelam os dados do INE. Até que ponto esta situação poderia ser minimizada caso houvesse uma aposta na criação de um contexto com reais possibilidades de emigração legal e do casal no seu todo? Importa relembrar de que a saída para o reagrupamento familiar – entre os quais, filhos que vão ter com os pais – é a segunda maior razão de saída!

5. Parece impensável que as autoridades de um país, como Cabo Verde, que tem na emigração a sua mais importante válvula de escape social, tanto através do alívio que provoca no problema de desemprego; como por meio de remessas de emigrantes que são a única fonte de recursos financeiros para a alimentação de muitas famílias; pagam as despesas de saúde e os gastos com a escola de vários parentes que ficam; afigura-se mesmo impensável que são estas mesmas autoridades que o mais longe e criativo que conseguem ir, é negociar acordos de 30 dias para esse mesmo povo ir passar férias a uma meia dúzia de países estrangeiros?! É a inversão do foco! Esses mesmos dados da Afrobarometer do passado mês de março indicam que 64% dos caboverdeanos inquiridos quer emigrar para ir trabalhar! Mais uma razão para defender que a aposta deveria ser em garantir a assinatura de acordos para a emigração de trabalho, uma vez que a ausência desses acordos tem causado imensos desgastes e frustrações para a estrondosa maioria que se vê em processos torturantes na busca de um visto de saída – de centenas de contos – que representa o investimento e a decisão de toda uma vida ou de uma família inteira!

6. Cabo Verde vai continuar a ser motivo de riso em matéria de negociação na área das migrações por que há uma impreparação confrangedora que, neste caso, leva as autoridades nacionais a caírem na armadilha linguística de deixarem de falar de “emigração” – que é o problema do seu povo! – e passarem a falar em “mobilidade” que permite serem presentados com propostas vagas e incertas; e, pior ainda, a continuarem incapazes de reconhecer a potencialidade da emigração como o maior motor para o desenvolvimento de Cabo Verde. Daí a continuidade na aposta em acordos que nunca abordam a emigração, mas apenas férias!

(i) INE-CV, Inquérito Multi-Objetivo Contínuo 2013, Estatísticas das Migrações (2014)

http://ine.cv/wp-content/uploads/2016/10/IMC-2013-Migracoes.pdf

(ii) In search of opportunity: Young and educated Africans most likely to consider moving abroad frobarometer Dispatch No. 288 (26 março 2019)

http://afrobarometer.org/sites/default/files/publications/Dispatches/ab_r7_dispatchno288_looking_for_opportunity_africans_views_on_emigration1.pdf

(iii) Cabo Verde pode ver suspensos vistos para Estados Unidos, RFI Português (29 abril 2019)

http://pt.rfi.fr/cabo-verde/20190429-cabo-verde-pode-ver-suspensos-vistos-para-estados-unidos?fbclid=IwAR3E-EwKuDGFRQIMXcbdrpjdGA8w5NX8xZrM-Zk6RgU9AtL6fIXcvly2MKI&ref=fb

(iv) Cabo-verdianos procuram mais o “mercado de trabalho excelente” da Alemanha

https://noticias.sapo.cv/economia/artigos/cabo-verdianos-procuram-mais-o-mercado-de-trabalho-excelente-da-alemanha

(v) INE, Brochura Dia Internacional da Criança (2017)

http://ine.cv/wp-content/uploads/2018/06/dia-da-crianca.pdf

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SOBRE O AUTOR

Francisco Carvalho

Político, sociólogo, pesquisador em migrações, colunista de Santiago Magazine

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