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A Febre das Casas
Colunista

A Febre das Casas

Sempre ouvi dizer que ter uma casa é algo de grandioso que dignifica o ser humano. Toda a gente procura ter o seu cantinho onde reclinar a cabeça com os familiares, onde se sente à vontade para rir, chorar, debruçar a cabeça, tirar uns peidos, mijar, despir, gritar, bocejar, falar alto, dar ordens, enfim, ser natural e não representar no teatro que é a sociedade.

Evoluímos muito em termos de tipos de casas: dos funcos às casas de palha, das casas de pedra e telha (ou lusalite, não sei se esteja bem escrito) e mais recentemente às casas de betão.

Todavia, a febre de construir uma casa que grassa a nossa ilha, tornou-se uma tara que pode ser catastrófica a nível de ordenamento de território, saúde pública e pessoal dos seus cidadãos.

É justo que toda gente anseie por ter um teto onde reclinar a cabeça. É adequado que toda gente sonhe ter um lar condigno, a gosto. O que não é nada realista, é a forma como está a acontecer a procura de casa, ultrapassando todos os limites dos razoáveis.

Primeiro vejamos o cenário: muitas casas, algumas que são verdadeiros palácios, construídas e desabitadas, ou porque os proprietários não estão ou porque delas não precisam. Segundo, muitas outras iniciadas por acabar ou semiacabadas, algumas que nunca serão acabadas. O que torna as nossas ditas cidades cinzentas e disformes. Sem contar com os problemas de saneamento que trazem nomeadamente acumulação do lixo, refúgio dos animais e dos marginais, prostíbulos, esconderijos dos gatunos e outras coisas mais, verdadeiros atentados à saúde publica. E custos aos governos, central e locais, na procura de organizar.

Do outro lado da barricada encontramos pessoas, nomeadamente mulheres, as ditas mães solteiras que penhoram a própria vida na procura de uma casa! Tiram areia nas ribeiras, não comem nem dão de comer convenientemente aos filhos, não investem na educação porque têm que construir uma casa! Pedem sacos de cimento na Câmara, alguns ferros noutras instituições, uns blocos nos amigos aqui e ali, para construir uma casa! E os políticos jogando com isso durante as campanhas eleitorais. São ferros que se oferecem, sacos de cimento que são prometidos em troca de votos, acusações dos lados de uns e de o, enfim, uma zoeira sem nome.

A obsessão por uma casa é tanta que, em situações em que há necessidade de se fazer algumas análises clinicas, ponderam entre o número de sacos de cimento que podem conseguir e o custo dos exames.

E as casas não devem ser pequenas, quanto maiores, melhor. Se forem de andares que ótimo! E as pessoas são avaliadas em função das casas. “Quem é a Ana? – Oh, é a fulana que mora na zona tal, junto da sicrana. Aquela que tem aquela casa enorme, com um quintal grande”. – “Conheces a Domingas? Aquela que tem aquele primeiro andar cor-de-rosa?” conheces o José?  Qual José? – Oh, Aquele que fez aquele 2º andar perto da do Joaquim.”  – E assim sucessivamente.

Soube de uma pessoa que teve um desaire no trabalho e foi demitido. Suspeitas de roubo. Na conversa com um familiar, ele disse: felizmente conseguiu construir a sua casa. E uma grande casa, graças a Deus! Conclusão: surripiou dinheiro que não era dela, na visão das pessoas foi esperta por ter investido na casa (não importa a forma, o importante é ter uma casa).

Tanta é a mania que algumas pessoas começam o rés-do-chão, antes de terminar iniciam o primeiro andar, com escadas que são verdadeiros “imbipos” (armadilhas, entenda-se), como diz a minha a mãe: ferros à mostra, escadas por terminar e sem corrimão, e la em cima, desprotegido! E no entanto, a casa de banho e a cozinha, são relegadas ao último plano (enquanto há rol de mar e kobon…). Conheço pessoas que, de tanto lutar para terem uma casa, hoje já não servem para nada: a coluna está toda quebrada, não conseguem estar de pé. Outras há que já morreram sem poder usufruir da casa e nem os familiares também, pois naquela procura de se fazer mais e maior, não conseguiram fazer uma condigna. Ou seja, as pessoas se foram, e a casa também.

Ilustro as minhas reflexões sempre com casos verídicos. Cá vai um: no ano passado visitei uma zona onde tenho alguns familiares e amigos. Numa das famílias, encontrei as crianças, por volta das 10hrs a comerem arroz. Tudo normal. Não é desprezo nenhum. Todos nós comemos manxeda. Acontece que a mãe daquelas crianças é vendedeira. Estivemos a falar, sugeri-lhe que em vez de arroz cedo, meio dia e noite, arranjasse umas bolachas e chá ou leite para as crianças de manhã, umas coisinhas mais suaves, principalmente para as crianças de 2 a 4 anos (a mais velha que tem 7 anos e que toma conta das outras, me tinha confidenciado que comem arroz de manhã, ao meia dia e à noite). Expliquei-lhe que, alimentar bem não era apenas ter barriga cheia, mas alguma variedade. Ela disse que não poderia fazê-lo porque estava a poupar dinheiro para ampliar a casa, que a vizinha já tinha levantado o primeiro andar, que se ela não fizesse, passava a imagem de diskudada. Para ela, bolachas, frutas e essas coisas, são “fatiotas”, e não estava disposta a gastar com os filhos, para poder amealhar algum dinheiro e ampliar a casa (nota-se que é uma mãe solteira, com menos de 30 anos, sem emprego fixo, mas já tem uma casa com 5 quartos, tem 3 filhos e vai continuar a fazer mais casas). A criança mais pequena estava com indícios daquilo que chamamos de “petu fitxadu” (infeção bronco-respiratória). Aconselhei-a a trazer a criança ao hospital. Disse, “kredu saltu lugar! Não vou perder tempo no hospital, já sei, a primeira coisa que vão fazer, é mandar-me fazer as análises. Não quero tirar nenhum dinheiro agora que vou começar a trabalhar a minha casa.” Claro que tive que fazer uma denúncia para os serviços de saúde, pois a criança estava em risco. E a mãe recusando levar ao hospital para poupar. E tudo por causa de casa!

Pode-se ainda falar daqueles que se endividam, têm a casa dos sonhos mas passam por apertos económicos que lhes tira o sono. E têm problemas de insónia, stress e toda gama de complicações de saúde advenientes de preocupações que poderiam ser evitadas. Há os ainda que não resistem, quando conseguem ter a casa, a vida já se esfumou.

A cisma pela casa traz conflitos sociais graves, na procura de espaço para construção, na azáfama de se conseguir meios e mesmo no processo de construção: vizinhos não se falam por causa de metros ou centímetros de terreno, familiares se desentendem, pais e filhos se confrontam, irmãos que brigam, enfim, ninguém se conhece, tudo por causa de casa.

As praias são “peladas”, os cutelos arrebentados, a orla marítima destruída!

Sou frequentemente abordada, nestes termos: “Ainda não construístes uma casa, com tantos anos de serviço (a mesma coisa que dizer, “bo e un diskuidadu JJ).

Casa, casa, casa, casas e mais casas! Ficamos felizes quando vimos tantas construções nas nossas pseudocidades. Estamos a crescer. Mas e a qualidade? E as casas que são armadilhas? Onde acontecem acidentes existem outros potenciais perigos? E as pessoas que constroem estas casas???    

Neste momento, as casas que foram construídas há 10-20 anos atrás por nossas bandas estão todas a ser demolidas (quebradas) para serem cobertas de novo. As casas que não podem ser refeitas correm o risco de ser abandonadas, pois são improprias para habitar. Quando chove, todo mundo em cima das casas no célebre “tra agu”, algo deprimente! Conclusão? Construções mal feitas, acumulado de blocos de cimentos a “embelezar” os nossos aglomerados.

Não sou perita em matéria de construções, mas pelo que pude constatar, temos um deficit enorme concernente às construções e à fiscalização na ilha de Santiago, que urge combater, que está intimamente ligado à obsessão de ter casa. Esse deficit infelizmente, é extensivo aos edifícios públicos (é só constatar in loco).

O badiu (Santiaguense) em geral tem uma aversão enorme ao pagamento de renda (aluguer de casa) e acha um desperdício. Perguntam: “Quantos anos tens a pagar renda? A pessoa responde: 20. E fazem logo as contas: 20 anos? Podia dar uma casa”. Mas se esquecem de um pormenor: a pessoa usufruiu de uma casa que não construiu e pagou o preço por este usufruto. E ponto final utilizou, pagou! Sem nenhum custo ou investimento inicial. Estamos num processo de evolução, é normal que haja quem tenha casas a mais que pode alugar a quem não tenha ou tenha insuficiente. Nem toda gente pode ter tudo.

A aversão é tanta que em muitos casos, não pagam as rendas. E acham natural. Tudo na busca de acumular dinheiro para fazerem uma casa delas.

E não pensem que essa obsessão é só na camada mais baixa: em todas as camadas sociais! Conheço ditos intelectuais que preferem andar a emprestar livros, mendigar outras coisas essenciais para estudo, para poupar, pois está a contruir uma casa. Não adquirem um computador para os trabalhos do dia-a-dia porque estão poupando para ter uma casa. E assim por diante.

E temos os emigrantes! Trabalham duro, moram mal, não dormem esforçam-se e fazem a casa na terra. Muitas vezes antes de habitarem já precisam de intervenção. Outras nunca são habitadas. Algumas são utilizadas para armazéns de pastos de animais ou para os próprios animais (vacas, porcos, cabras, carneiros e galinhas).

O estranho de tudo isso é que a casa não é tanto para usufruir com a família, é mais uma ostentação para os outros: para quando houver um caso, para receber as pessoas para as festas, e para a morte. Para se gabar com os amigos, com os vizinhos. Enfim, sinal de orgulho e exibição exterior. Não importa como se consiga tê-la, o importante é ter uma casa.

É claro que temos muitos bons exemplos de construção racional e uso coerente de casas que são verdadeiros exemplos. Todavia, queria ressaltar estes aspetos para chamar a atenção da sociedade santiaguense para o fenómeno que de forma silenciosa e com a conivência de nós todos, mina o espirito das pessoas transformando a ideia de casa/lar apenas em mais um objeto de consumo frio, sem vida, que pode ser adquirido de qualquer forma, mesmo que para isso se hipoteque a vida, a felicidade, a amizade e outros sentimentos nobres que existem e devem ser preservados.

Calheta, outubro de 2017

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Redação