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Simili e a sua arte de proteger os oceanos
Ambiente

Simili e a sua arte de proteger os oceanos

Da paixão pelo mar nasceu uma marca de artesanato made in Cabo Verde, onde nada se perde e tudo se transforma. Simili foi idealizada há vários anos durante uma conversa de amigas, entre Débora Roberto e Helena Moscoso. Hoje, pelas mãos de artesãos locais, e das próprias sócias, o lixo que dá às costas nas nossas praias converte-se em belas peças: bolsas ecológicas, óculos de sol, bijuterias, brinquedos alternativos, lonas, tecidos, tangrans, brindes institucionais e souvenir para os turistas. Uma startup que aposta na arte genuinamente crioula como uma forma de consciencialização para a proteção e preservação da vida marinha. Nesta semana do Dia Mundial do Ambiente, celebrado a 5 de junho, Santiago Magazine foi à fala com as duas amigas que, em 2019, venceram a primeira edição do concurso “Empreender Azul”, promovido pela Pró Empresa em parceria com a Direcção Nacional dos Recursos Marinhos.

Simili é um nome emprestado ao mascote da marca, o Pamané de Rabo Branco, um peixe endémico e exclusivo às ilhas de Cabo Verde. Refere-se às três primeiras sílabas do nome científico “Similiparma Hermani”.

 

Todos os anos cerca de 25 milhões de toneladas de lixo – materiais sólidos fabricados ou transformados - vão parar nos oceanos, segundo um relatório divulgado em 2018 pela Associação Internacional de Resíduos Sólidos (Iswa, na sigla em inglês). E nesse cenário, os plásticos são o principal detrito encontrado no ambiente marinho: pelo menos metade desses resíduos - cerca de 12,5 milhões de toneladas - é plástico descartável.

Um número muito acima do calculado pela Organização das Nações Unidas (ONU), que diz que todos os anos cerca de oito milhões de toneladas de plástico acabam nos oceanos. É como se a cada minuto um camião abarrotado de plástico fosse lançado ao mar.

Os dados apontam ainda que um terço do lixo marinho são equipamentos de pesca, como redes abandonadas, e que apenas 20% são outros resíduos que não o plástico.

Uma situação preocupante, porque, ao contrário dos materiais orgânicos, os plásticos podem levar 500 anos para decomporem-se. Eles afetam diretamente a fauna marinha, pois são confundidos com alimentos e ingeridos pelos animais, causando a sua morte e a contaminação de cadeias alimentares.

Mais do que uma inquietação, eles representam uma ameaça para os animais marinhos, para a economia, para o clima e também para a saúde humana. E se nada for feito, de acordo com as previsões da ONU, em 2050 teremos um volume maior de plástico do que de peixes nos oceanos.

A conversa de há alguns anos, entre Débora e Helena, girava à volta desses números assustadores. Que solução para este problema de âmbito global? O que poderia ser feito para amenizar o impacto do lixo nas praias de Cabo Verde? Passa por evitar a entrada de mais resíduos no mar? Ou por limpar o lixo que já lá está?

 

E se o mar lhe devolver o lixo, faça arte!

Helena e Débora chegaram então à conclusão de que a melhor forma de estimular a consciência para este problema seria apostar em algo com que toda a gente se identifica. Para as duas amigas, estava no artesanato a resposta que procuravam.

Afinal, “a arte é o elemento que compõe e expressa a identidade cabo-verdiana. É através dela que se exprime a criatividade individual”.

Idealizaram um projeto cujo objetivo é criar plataformas de coleta, processamento e reciclagem de dejetos e transformá-los em valiosos produtos nacionais. Queriam agregar valor ao lixo que, dia após dia e ano após ano, amontoa nas orlas marítimas de Cabo Verde.

Da vontade de fazer alguma coisa a ganhar coragem e criar a Simili, passaram-se alguns anos. Porém fulcrais para ganhar experiência profissional e competências. Era o ano de 2019. Era o momento de colocar no papel a ideia lançada lá atrás durante aquela conversa de amigas e começar a aplicar na prática os 4R’s da Sustentabilidade.

Repensar, Reduzir, Reutilizar e Reciclar

Elas, que sempre participavam em campanhas de limpeza e que nos seus passeios pelas praias de São Vicente catavam os desperdícios que achavam pelo caminho,  passaram a recolher os resíduos do mundo todo trazidos pelas correntes, já pensando no futuro luxuoso que dariam a eles.

E, de um pequeno pedaço de madeira de paletes criaram a primeira peça da marca Simili: um tangran, que é um tipo de quebra-cabeça geométrico de origem chinesa composto por sete peças, chamadas de “tans”. Hojé é um dos produtos de maior sucesso da Simili, conforme garantem as sócias.

Das redes de pesca, cordas e muitos outros tipos de lixo plástico nasceram também outras peças de artesanato como as suas famosas ecobags e mochilas, além de produtos de merchandising para empresas nacionais bem como lembranças para alimentar a principal indústria das ilhas: o Turismo. A marca quer ainda criar uma linha de óculos.

“Cabo Verde carece de produtos nacionais. Quase tudo que encontramos aqui é importado, não há indústria nacional relevante e também não há usina de reciclagem. Temos várias ideias em carteira, que esperamos concretizar em breve”, anuncia.

Criar uma rede de artesãos

Helena e Débora logo perceberam que precisavam trabalhar com pessoas que entendiam e tinham experiência com o artesanato. Contactaram alguns artesãos de São Vicente e descobriram fantásticas peças de arte, trabalhos produzidos por homens que também possuem essa ligação com o mar e com a cultura cabo-verdiana.

A proposta era unir os artesãos não só através da arte, mas também através de programas de preservção da vida marinha: “Basicamente, propomos com o nosso projeto a construção de uma rede de artesãos e, partir daí, fornecer-lhes ferramentas para que possam abrir o seu leque de produtos”.

A Simili queria dar voz e espaço aos artesãos e fornecer-lhes um outro tipo de materiais para trabalharem. Aqueles que de outra forma iriam parar ao mar, mas que antes de se transformarem em lixo ou microplásticos podiam ter uma segunda vida. Descobriram, então, que eles já tinham essa mesma preocupação de trabalhar com resíduos.

“Em Cabo Verde, a reutilização de materiais é natural e inato. Enquanto que na Europa a economia circular é um conceito novo, nos países africanos a reciclagem é muito comum por causa da escassez de recursos. Aqui, muitos artesãos já faziam esse tipo de trabalho de reutilizar garrafas, potes, pedaços de madeira, etc.”, frisa Helena Moscoso.

A ideia da Simili é alargar a rede de artesãos para outras ilhas de Cabo Verde.

Sensibilizar os que têm a lida diária com o mar e empoderar as comunidades

Na perspectiva de chamar atenção para uma maior consciência sobre a preservação da vida marinha, Helena e Débora instalaram um pequeno atelier na comunidade piscatória de Salamansa. Ali, juntamente com algumas mulheres, tecem redes de pesca que são recolhidas nas praias.

Elas receberam formações em tecelagem e outros tipos de artesanato, e hoje produzem bolsas, mochilas com redes, cordas, restos de tecidos e outros tipos de materiais recolhidos nas praias. Um trabalho que garante áquelas mulheres o sustento para as suas famílias.

Salamansa, explica Débora Roberto, surgiu como um destino natural para o início do projecto: “É uma comunidade piscatória com poucas oportunidades de trabalho, principalmente para as mulheres. Optamos por agregar mulheres que realmente quisessem embarcar connosco nesta aventura. E o mais incrível é que a maior parte do design das bolsas é imaginado e criado por elas”.

Envolver também as insituições

Além dos artesãos e das comunidades piscatórias, Simili trabalha em parceria com algumas instituições e empresas nacionais. Tem aproveitado o lixo das indústrias locais, como é o caso de restos de tecidos, potes, latas entre outros desperdícios, que depois servem de matérias-primas para a confecção de bolsas e brindes.

“Temos trabalhado também com associações que já conhecem a Simili e nos procuram para irmos juntos efetuar limpezas às praias” No último fim de semana, juntamente com a organização Djêu d'Merka - Culture Ideas English fizeram uma limpeza à orla do Norte da Baía. Entre quase uma tonelada de lixo recolhido, a Simili levou para Salamansa seis bolsas grandes cheias de redes de pesca.

Numa outra ação de parceria, desta feita com a escola de Natação Txiluf e que contou com o apoio da Enacol, instalaram contentores para depósito e coleta de lixo na Laginha, evitando assim que os cães e o vento espalhem o lixo pela praia. Aos contetores, desenhados pelo designer e artista David Leone Monteiro, a Simili aplicou redes recolhidas das praias de São Vicente.

Brevemente, contam instalar novos contentores em Salamansa e posteriormente noutras praias da ilha e, quem sabe, do país.

Fomentar a economia azul circular

Trabalhando de perto com os moradores e artesãos, bem como com as empresas e organizações, a Simili quer sensibilizar para o problema dos resíduos e criar uma indústria circular nacional com produtos disponíveis para os locais e com a qualidade garantida para a exportação.

“É o nosso contributo para tentar amenizar esta problemática e provocar a discussão e a consciencialização para o tema da poluição e das alterações climáticas que nos afectam cada vez mais”, sulinha Helena Moscoso.

“Para além disso, queremos mostrar também que é possível agregar valor a materiais que de outra forma teriam um tempo de vida muito mais limitado e cujos restos provocam danos imensos ao nosso meio-ambiente mundo fora”, completa a Débora.

Simili, que tem sido convidada para vários eventos e feiras, tem levado uma mensagem de  pertinência da mudança de comportamentos e de formas de consumo: “Fomentar a preservação do ambiente através do desenvolvimento de uma economia azul é o motor da nossa empresa”.

Mas admitem, há um trabalho muito grande a ser feito nas comunidades e no país em geral.

Que o Pamané nunca pare de nadar!

Enquanto lutam por esta nobre causa, seguem questionando através de um vídeo de apresentação da marca.

“Cabo Verde é mar, Cabo Verde é Cultura, Cabo Verde é Desporto! Mas o que dizer do lixo que continua a dar às nossas praias? O que acontece ao lixo que continua chegando às nossas praias? Queremos realmente que ele faça parte do nosso país? Que nosso Pamané nunca pare de nadar!”.

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