Saída de pároco de Órgãos tem a ver com contas e xenofobia. Cardeal aceitou transferência vinda do Vaticano sem ouvir o padre Justine
Sociedade

Saída de pároco de Órgãos tem a ver com contas e xenofobia. Cardeal aceitou transferência vinda do Vaticano sem ouvir o padre Justine

O cardeal e bispo de Santiago, D. Arlindo Furtado, confirmou a transferência do padre nigeriano Ekene Justine de São Lourenço dos Órgãos sem nunca ter falado com ele sobre o que aconteceu. A carta da transferência veio do Vaticano, a pedido do sacerdote, que não estava a ser bem acolhido pelas missionárias da Igreja dos Órgãos por ter instituído um Secretariado Paroquial e da Família para controlar as contas da Paróquia, há anos gerenciada por essas mulheres. Os números do relatório, a que Santiago Magazine teve acesso, são surpreendentes (6 mil contos de receita anual, numa comunidade eclesiástica pequena) e revelam como entram e saem dinheiro da Igreja – só em Renúncia Quaresmal (autorização por via de pagamento para o crente poder cometer o pecado de comer carne nas sextas-feiras da quaresma e que geralmente é aplicada em ajudas e benesses) foram mais de 170 contos. O padre vai agora para Holanda.

Um comunicado assinado pelo Vigário Geral, Saturnino Freire Afonso, aligeirou o conflito de interesses na Paróquia de São Lourenço dos Órgãos, afirmando tratar-se de uma mera transferência corriqueira de padres para missões em outras latitudes. Esse posicionameno da Diocese escondeu o busílis da saída abrupta do padre e chefe dessa Paróquia do interior de Santiago.

Na realidade, foi o padre Justine quem pediu para sair, de acordo com informações recolhidas por Santiago Magazine junto de fiéis e pessoas do staff dessa Paróquia. A carta foi endereçada ao superior do padre Ekene Justine na Nigéria que, por seu turno, encaminhou o pedido ao Vaticano, de onde veio a nota à Diocese de Cabo Verde, tendo o Cardeal e Bispo de Santiago D. Arlindo Furtado aprovado de pronto.

O padre Justine, que foi colocado nesse concelho ao cuidado pastoral dos Missionários do Espírito Santo, estava há dois anos nos Órgãos, conquistou a comunidade católica local, mas não obteve igual amparo das missionárias a serviço da Diocese nessa Igreja.

Crentes, jovens e velhos, contaram ao Santiago Magazine que o sacerdote nigeriano suportou a antipatia das beatas de São Lourenço dos Órgãos até se ver impotente ante o grupo que, segundo dizem fiéis contactados por Santiago Magazine, “fez vida negra ao padre”. Isto até a relação entre eles estalar, quando o padre ora transferido decidiu tirar das mãos das missionárias o controlo e gestão das contas da Paróquia, criando, para o efeito, um Secretariado Paroquial e da Família.

Pela primeira vez, a Igreja passou então a prestar contas aos seus fiéis e benfeitores e pela primeira vez se passou a conhecer os números que a Igreja Católica nunca quis partilhar com os seus (revelamos mais em baixo os valores).

“O padre, a partir daqui, ficou ainda mais indesejado pelas missionárias, que não gostaram da ideia e se opuseram com vigor. Fizeram vida negra ao padre, tanto que, como elas é que geriam tudo, chegaram a cortar a conta de água. Aliás, elas nem o cumprimentam. O clima ficou crispado”, aponta uma crente e membro dessa Igreja, para quem “houve também atitudes xenófobas e racistas, por o padre Justine ser da Nigéria”.

A mesma fonte acrescenta que a continuidade do clérigo estava insustentável, daí o próprio ter pedido para sair. Mas não fica por aqui. “Eu e mais um grupo de jovens fomos falar com o bispo na passada semana, numa Conferência pedida por nós e ele nos confirmou que não pensou duas vezes para assinar a transferência do padre Justine. Aí percebemos que o bispo estava do lado das missionárias, por isso acabamos por aceitar que o melhor para ele e para a nossa Paróquia era a sua transferência”.

Ao Santiago Magazine, o padre Justine, cuja manifestação de apoio dos católicos laurentinos teve repercussão nacional, disse preferir ficar no silêncio, por enquanto, aguardando a poeira assentar para fazer uma comunicação oficial e formal “para contar toda a verdade sobre o que se passou”. O sacerdote não confirmou e nem desmentiu a crispação existente com as missionárias, tidas como pivot da sua saída de Órgãos, mas deixou implícito o seu desapontamento em relação à postura da cúria catolicista.

É que, de acordo com pessoas da sua entourage, o padre achou estranho o comunicado da Diocese e, muito mais que isso, o facto de o Cardeal, D. Arlindo Furtado, ter assinado a sua transferência sem o ter ouvido uma única vez. Na verdade, sabe Santiago Magazine, o padre teria enviado uma carta ao cardeal na sexta-feira a solicitar um encontro de esclarecimento antes de seguir viagem para a Holanda, onde já esteve, para nova acção missionária.

Até à hora em que editávamos este artigo não tivemos resposta do cardeal ou da Diocese sobre o nosso pedido de reação. Na sexta-feira, SM foi à residência do Cardeal, mas nos informaram que ele estava a descansar e, por termos deixado contacto, esta segunda-feira, a sua secretária nos chamou a dizer que o chefe da diocese de Santiago não estava e que não tem informação para nos dar.

Este jornal também quis ouvir a versão das missionárias, mas num primeiro momento uma das beatas, Edite Moniz, nos encaminhou para a presidente, Domingas Baessa, que, minutos mais tarde, mandou nos informar com a sua colaboradora que não estava interessada em prestar esclarecimentos.

Contas para católico crer

O padre Ekene Justine inaugurou uma modalidade inédita no seio da Igreja Católica: transparência e prestação de contas. E os números a que Santiago Magazine teve acesso, através do relatório e contas dessa Paróquia, podem causar algum espanto.

Já na sua missa de despedida, o padre nigeriano anunciara uma receita de 6 mil contos, que levou os seus fiéis dos Órgãos a levar as mãos à cabeça a questionar onde foram parar então os lucros de há mais de 50 anos dessa Paróquia.

Sem resposta, vale então perceber como entram e saem valores monetários da Igreja (pelo menos a dos Órgãos). A Paróquia fechou o ano 2022 com um total 5.323 mil contos, com os valores transitados do ano anterior, chegam a 7 mil e 500 contos. Mil contos são do Fundo Paroquial. A paróquia facturou 161 contos com a venda de folhetos, 60.200$00 com a comercialização de livros e documentos técnicos e 19 contos com a venda de mangas – sim a Paróquia possui uma horta que vende produtos horículas, mas só aparece a venda de mangas no relatório, ficando omitido o registo das receitas do comércio de animais, propinas do seu jardim infantil e da padaria.

Cerca de 957 contos entraram como ofertório de missas, 916 contos em intenções de missa, mais de 300 contos em ajudas de amigos benfeitores (incluindo emigrantes), 598 contos de Primícias (primeira parte de algo que deve ser reservada a Deus) e 173 contos de Renúncia Quaresmal, uma forma antiquíssima de o crente pagar para poder comer carne em vez de peixe nas sextas-feiras da Quaresma, uma prática centenária na Igreja Católica desde sempre no mundo e que hoje passou a ser percebida apenas como ajuda, já que essa verba geralmente é aplicada nas acções de caridade da Igreja.

A Paróquia dos Órgãos pagou 250 contos à Diocese, gratificação de 180 contos ao padre Justine (em 12 meses) e estipêndio, ou seja, vencimento (a Igreja não gosta deste termo, por isso usa a palavra estipêndio para designar o trabalho pago ao padre) ao mesmo sacerdote também em um ano de 144 contos.

Só em vinhos e hóstias foram pagos 58.500$00! Detalhe, na folha de pagamentos aparece o nome de Edite Moniz, sim a missionária com quem falamos e que nos empurrou para a sua superior, que recebeu de gratificação 96 contos.

 

 

 

 

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine

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