Questionar o mapa cognitivo imperial e os legados do colonialismo implica tocar fundamentalmente na educação. Por isso, entendemos que é preciso ir mais longe: reformar e atualizar os conteúdos históricos dos currículos, dos programas, dos manuais escolares e outros recursos educativos e pedagógicos usados no ensino em Cabo Verde. O ensino e, sobretudo o ensino da História e da Cultura Cabo-verdianas, tem sido feito com base numa narrativa de glorificação colonial e de romantização dos vários enfrentamentos irreconciliáveis e contraditórios entre si que deram origem à sociedade cabo-verdiana (a escravidão, o racismo, o tráfico, as fomes, as repressões, a violação de mulheres negras por colonizadores brancos que deram origem a nativas/os mestiças/os, etc.). O currículo e vários conteúdos adotados no ensino da História e da Cultura Cabo-verdianas têm sido marcados por uma visão luso-tropicalista, influenciando diretamente a interpretação e a cultura histórica das nossas e dos nossos estudantes.
No passado dia 11 de agosto de 2021 foi entregue à Assembleia Nacional de Cabo Verde uma petição intitulada: “Remoção de Monumentos pró-escravagistas e coloniais em Cabo Verde”. Elaborado por Gilson Varela Lopes, contando já com cerca de 2000 assinantes, o documento apela à remoção de estátuas de traficantes de pessoas Africanas e de exploradores coloniais como Diogo Gomes, Alexandre Albuquerque, ambas situadas no Plateau, Cidade da Praia e dos bustos dos colonizadores como Serpa Pinto, situados na ilha do Fogo, Sá da Bandeira, Diogo Afonso no Mindelo.
A petição aparece num contexto de luta pela descolonização de narrativas e de espaços. Este tipo de luta tem gerado protestos nas ruas de África de Sul, Reino Unido, Portugal, Brasil, França, Alemanha, Estados Unidos, sobretudo após a execução sumária de George Floyd, nos Estados Unidos, por um polícia branco. As ondas de protestos culminaram no derrubamento e decapitação de algumas estátuas de esclavagistas e colonialistas como Cecil Rhodes, Cristóvão Colombo e outros vultos masculinos brancos associados ao genocídio, às razias imperialistas, ao racismo e outras predações coloniais.
Esta petição já circulava há um bom tempo nas redes sociais, provocando reações tanto contra como a favor. As pessoas que são contra a demolição de estátuas coloniais fundamentam o seu argumento na ideia de se querer fazer o “apagamento da história”, o que consideramos uma resposta despida de crítica histórica. Pois, entendem a interpretação da história como preservação e/ou mumificação em vez de contestação crítica, dado que a narrativa histórica colonial e imperial sempre foi usada publicamente para despersonalizar a história das populações subjugadas e renovar o dia-a-dia das relações de poder nas colónias. As estátuas erguidas são grandes manifestações de poder, fazem parte de um projeto de dominação e narram a história dos colonizadores, nunca dos colonizados.
A tese de se “querer apagar a história” é usada de forma arbitrária e unilateral, silenciando o facto de que a estátua de Diogo Gomes, que a petição propõe remover, foi derrubada com o advento da independência. Vale a pena recordar que é, também, no contexto da chamada “abertura democrática” que se removiam os nomes e símbolos ligados à luta pela independência. O caso mais paradigmático é o do bairro Kwame Nkrumah, líder anticolonial, pan-africanista e primeiro presidente da República do Gana, que hoje tem o nome do Presidente da ditadura fascista portuguesa, Craveiro Lopes.
Congratulamo-nos e felicitamos a iniciativa, que vem dar seguimento a um debate que já acontece há anos em Cabo Verde e nas suas diásporas, embora silenciada pela imprensa mainstream cabo-verdiana, subvalorizada pela academia cabo-verdiana, ignorada pelos decisores públicos da política educativa e cultural.
Nós os subscritores desta carta entendemos que, embora a petição estremeça o edifício da dominação ao refutar os mitos criados pelo imperialismo, será preciso ir muito mais além disso. Frantz Fanon, um dos principais teóricos anticoloniais, escreveu que “o colonialismo não se contenta em apertar nas suas redes o povo, em esvaziar o cérebro colonizado de qualquer forma e conteúdo. Por uma espécie de perversão da lógica, orienta-se para o passado do povo oprimido, distorce-o, desfigura-o, aniquila-o”.
Questionar o mapa cognitivo imperial e os legados do colonialismo implica tocar fundamentalmente na educação. Por isso, entendemos que é preciso ir mais longe: reformar e atualizar os conteúdos históricos dos currículos, dos programas, dos manuais escolares e outros recursos educativos e pedagógicos usados no ensino em Cabo Verde. O ensino e, sobretudo o ensino da História e da Cultura Cabo-verdianas, tem sido feito com base numa narrativa de glorificação colonial e de romantização dos vários enfrentamentos irreconciliáveis e contraditórios entre si que deram origem à sociedade cabo-verdiana (a escravidão, o racismo, o tráfico, as fomes, as repressões, a violação de mulheres negras por colonizadores brancos que deram origem a nativas/os mestiças/os, etc.). O currículo e vários conteúdos adotados no ensino da História e da Cultura Cabo-verdianas têm sido marcados por uma visão luso-tropicalista, influenciando diretamente a interpretação e a cultura histórica das nossas e dos nossos estudantes.
Ainda, é importante que seja dito que esse ensino “latificado”, que atribui o monopólio de pensamento ao homem branco ocidental, participa de forma substantiva na reprodução de hierarquias das humanidades, inclusive hierarquias linguísticas, inventadas desde a chegada das velhas caravelas, canhões, espadas.
Não é por acidente que a suposta morabeza cabo-verdiana é bastante seletiva e hierarquizante. As imigrantes e os imigrantes do continente africano nunca conheceram essa tal “morabeza”, pelo contrário têm ouvido tantas aberrações que fazem lembrar o que as cabo-verdianas e os cabo-verdianos escutam dos racistas em Lisboa e noutras tantas capitais europeias.
Também entendemos que a descolonização de narrativas e de espaços não deve se resumir a um mero exercício intelectual ou a um jogo cosmético de terminologias e conteúdos, mas deve ter um caráter de transformação social e material. Em 1972, Amílcar Cabral, em conversa com ativistas dos Estados Unidos tocou nesse ponto dizendo algo como isto: “se um ladrão assaltar a minha casa e eu tiver uma arma, não vou disparar contra a sua sombra (...) Temos de combater a realidade material que produz a sombra”. Nesse sentido, a possível reforma nos conteúdos e programas escolares tem de andar de par com políticas concretas que facilitem o acesso gratuito dos jovens ao ensino superior em Cabo Verde.
Por fim, apelamos à participação de todas e todos neste momento histórico, principalmente aos estudantes e professoras/professores.
A Luta Continua
OS SUBSCRITORES
1 ABEL DJASSI AMADO
2 ALAN ALAN
3 ALEXANDRA FERREIRA
4 ALEXSSANDRO ROBALO
5 APOLO DE CARVALHO
6 ARLINDO STONI
7 ASTRID UMARU
8 BRUNO MONTEIRO
9 CHULLAGE
10 CLÁUDIA SANTOS
11 DJUNTAMOH AFRIKANU
12 EDYOUNG LENNON
13 FLÁVIO ALMADA (LBC)
14 GILSON LOPES
15 ILDA VAZ
16 IOLANDA ÉVORA
17 IVA CABRAL
18 JAKILSON PEREIRA
19 JO MUHAMMAD
20 KWAME GAMAL MONTEIRO
21 LUMUMBA SHABAKA
22 LUÍS BAESSA
23 LUÍS FONSECA
24 MAX RUBEN RAMOS
25 NILTON MASCARENHAS
26 PAULO UMARU
27 REDY WILSON LIMA
28 RUI ESTRELA
29 SUZANO COSTA
30 VICTOR BARROS
31 YURI QUEITA
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