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Sobre um contributo crítiuco do Dr. João Santos no caso AMADEU OLIVEIRA
Ponto de Vista

Sobre um contributo crítiuco do Dr. João Santos no caso AMADEU OLIVEIRA

O Dr. João Santos afirma que para a Constituição da República só está dispensado o pedido de autorização para prender um Deputado fora de flagrante delito nos crimes puníveis no seu máximo com prisão superior a oito anos pelo que, para o crime de atentado contra o Estado de Direito Democrático tal autorização não estava dispensada já que aí a pena prevista não excede oito anos. Esta posição é, com o devido respeito, errada. Para a prisão fora de flagrante delito do deputado é sempre necessária a autorização, ainda que a mesma seja dada indiretamente através da suspensão do mandato daquele, pedida depois de proferido o despacho de pronúncia (nunca no início ou para o início do processo).

Acabo de ouvir um áudio em que o jurista João Santos, depois de discordar dos argumentos de Rui Araújo, Advogado de Amadeu Oliveira perante o Tribunal Constitucional, afirmou que nem este, nem ninguém, se apercebeu da argumentação correta, ou seja, de uma novidade que ele João Santos vinha trazer pela primeira vez para o caso e critica fortemente a Assembleia Nacional pelo erro cometido que, a seu ver, consistiu (apenas) em que foi a Comissão Permanente e não o Plenário a autorizar a detenção.

Precedendo autorização tácita do Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados, direi o seguinte:

Ignoro de onde o amigo Santos colheu a minha posição, pois ela só está no processo, que, presumo, ele não terá lido. Ao processo não me referirei aqui, mas reputo ser de interesse da defesa e meu pessoal evidenciar que a “novidade” trazida está baseada, total e expressamente, em legislação revogada há quase doze anos.

O Dr. João Santos afirma que para a Constituição da República só está dispensado o pedido de autorização para prender um Deputado fora de flagrante delito nos crimes puníveis no seu máximo com prisão superior a oito anos pelo que, para o crime de atentado contra o Estado de Direito Democrático tal autorização não estava dispensada já que aí a pena prevista não excede oito anos.

Esta posição é, com o devido respeito, errada. Para a prisão fora de flagrante delito do deputado é sempre necessária a autorização, ainda que a mesma seja dada indiretamente através da suspensão do mandato daquele, pedida depois de proferido o despacho de pronúncia (nunca no início ou para o início do processo).

Realmente no art. 169.º, n.º 2, da Constituição antes da revisão de 2010, estava dispensada a autorização para prender um Deputado fora de flagrante delito nos casos de crime puníveis, no seu máximo legal, com prisão superior a oito anos; e a primeira frase do n.º 3 do mesmo preceito excluía expressamente esses casos do caminho de autorização a seguir para os restantes.

Mas na revisão de 2010 o art. 169.º passou a ser art. 170.º, com um texto diferente, cujo n.º 2 não prevê qualquer dispensa de autorização para prisão fora de flagrante delito e, por isso, no n.º 3 já não existe a exclusão referida no parágrafo que antecede.

Assim, o n.º 3 do art. 170.º, referindo-se a todos os casos de prisão fora de flagrante delito, diz: “Movido procedimento criminal contra um Deputado e pronunciado este (sublinhado meu) a Assembleia Nacional, a requerimento do Procurador Geral da República, decidirá se o respectivo mandato deve ou não ser suspenso para efeitos de prosseguimento do processo, sendo obrigatória a suspensão quando se trate de crime a que corresponda pena de prisão, cujo limite máximo seja superior a oito anos”.

Claro que essa é uma disposição só para os casos de prisão fora de flagrante delito, sendo que em se tratando de prisão em flagrante por crime punível no seu máximo legal com prisão superior a 3 anos o Deputado já estará suspenso, pois que nos termos do art. 166.º, n.º 4, da Constituição a simples comunicação dessa prisão à Assembleia Nacional provoca a automática suspensão do mandato. O que é lógico, pois seria, no mínimo, um contrasenso um deputado estar preso, mas sem mandato suspenso.

Note-se, em simples à-parte: o citado jurista refere também, no quadro do seu equívoco, a prisão em flagrante delito por crime punível no seu máximo legal com prisão superior a 2 anos, o que realmente estava previsto em três artigos diferentes da Constituição anterior à revisão de 2010 (arts. 29.º, 165.º e 169.º), mas desde a revisão os correspondentes artigos (30.º, 166.º e 170.º) referem o máximo superior a 3 anos.

Porém, e voltando ao que interessa - a prisão fora de flagrante delito -, a Constituição não prevê nenhum caso em que o PGR pede autorização à AN para deter um deputado para iniciar um processo ou fazer a instrução do mesmo. Isso pura e simplesmente não existe.

O que se passa e pode confundir as pessoas é que o Estatuto dos Deputados não foi alterado até hoje na sequência da revisão constitucional de 2010 e continua a repetir o conteúdo constitucional revogado. Mas o Estatuto dos Deputados tem de se subordinar à Constituição e não o contrário!

Adiante:

Tudo o que o PGR pode fazer quando tem suspeitas de crime por parte dum Deputado é pedir autorização para o ouvir como arguido num processo, pois de acordo com o art. 12.º do Estatuto dos Deputados estes não podem ser sequer ouvidos como arguido sem autorização da AN, ou da Comissão Permanente.

Autorização para ouvir como arguido não é autorização para deter e apresentar a juiz para ser ouvido como arguido. O Deputado não é detido e se o for a detenção é inconstitucional (haja ou não uma autorização da Assembleia Nacional). Se isso pudesse acontecer teríamos a situação de um Deputado com mandato não formalmente suspenso, mas preso.

Autorizada a audição do deputado como arguido o processo corre normalmente contra ele, ouvido como arguido em liberdade, sem suspensão do mandato. Depois ele é (se for) acusado pelo Ministério Público e, se o juiz aceitar a acusação e proferir despacho de pronúncia, então o PGR pode pedir autorização à Assembleia Nacional para supensão do mandato do deputado a fim de o processo prosseguir.

Se o mandato do Deputado é suspenso, então ele fica “livre” para ser detido ou preso, embora o Tribunal não seja obrigado a prender e por isso nem sequer há uma autorização direta para prender. O juiz limita-se a aplicar a lei em relação a um deputado que tem o mandato suspenso desde antes da eventual prisão.

A única especificidade do n.º 3 do art. 170.º da Constituição é que se a pronúncia for por crime punível com pena de prisão superior a oito anos no seu máximo legal, a Assembleia Nacional é obrigada a suspender o mandato.

Antes de terminar, permitir-me-á o Dr. João Santos mais um apontamento: Se bem o entendo, ele considera que basear-se no despacho de pronúncia não é correto, pois segundo o Código do Processo Penal esse despacho nem sempre existe, já que ele é proferido apenas no âmbito duma “ACP” e a ACP é facultativa.

A Constituição não define o despacho de pronúncia por se tratar dum conceito tradicional e sedimentado de longa data entre nós e não só. Sabe-se que é o despacho pelo qual um juiz aceita uma acusação e abre caminho para o julgamento do caso. Ora, esse despacho existe no Código do Processo Penal e não depende da existência duma ACP. Fora da ACP será o chamado “despacho equivalente ao de pronúncia”.

Salvo melhor opinião, equivocou-se pois, caro Santos, a um ponto que não é normal em si, pelas análises a que nos tem habituado. Talvez por ter lido sobre a hora, por lapso, um texto constitucional desatualizado.

Não espero voltar a qualquer pronunciamento público até o processo terminar.

 

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