Quando uma Moção de Censura se transforma numa Moção de Confiança...
Ponto de Vista

Quando uma Moção de Censura se transforma numa Moção de Confiança...

"O governo sai vencedor deste processo de apresentação da moção de censura por a ver recusada, e por verificar o seu apoio e confiança parlamentar reconfirmado. Vitória mitigada pelo facto de não ter sabido conduzir o debate para o terreno que o próprio governo tivesse escolhido e definido, não entrando no jogo da oposição".

Ainda estou por compreender a razão ou as razões que levaram o PAICV, de repente, a apresentar uma moção de censura ao governo.

Direi de repente, porque um pouco inesperado, e acredito que ninguém estaria à espera de uma moção de censura às vésperas do debate sobre o Estado da Nação que seria, em regra, o palco propício para “ajustes de conta”, onde, habitualmente, os partidos utilizam as suas principais munições para fechar o ano político.  

Procurei, no entanto, fazer um exercício hipotético que me permitisse perceber quais foram os eventuais objetivos delineados por PAICV que pudessem sustentar a escolha de um instrumento de intervenção política dessa natureza. Para isso procurei fazer um exercício especulativo onde coloco várias hipóteses, nomeadamente se havia a intenção de provocar a queda do governo, se se pretendia provocar fissura no apoio parlamentar ao governo, se o que animou a apresentação da iniciativa era provocar maior desgaste ao governo junto da opinião pública, se com a moção de censura se pretendia criar um espaço para apresentação de propostas e soluções alternativas de governo ao país, ou se o PAICV encarou a possibilidade de não aprovação da moção de censura e de o partido não conseguir concretizar nenhum dos outros objetivos já citados.

É a partir dessas hipóteses que passarei a analisar esses pontos elencados, partindo de princípio que o PAICV trabalhou com base em cenários, e que, para cada um deles, projetou os resultados possíveis.

Cenário 1: Derrubar o governo? Este cenário era o mais otimista de entre todos elencados. Curiosamente também, parecia, com os dados disponíveis, o mais improvável que acontecesse. O próprio PAICV admitiu em vários momentos que a moção de censura não visava derrubar o governo;

Cenário 2: Minar a confiança parlamentar no governo com factos novos e irrefutáveis? Também não foi possível identificar, neste cenário, nenhum facto novo relevante apresentado pelo  PAICV que pudesse pôr em causa a confiança parlamentar no governo. Considerando todo o argumentário do PAICV,  durante o debate, creio que o partido não conseguiu introduzir nenhum fator surpresa que pudesse desequilibrar o confronto a seu favor;

Cenário 3:  Colocar o governo em dificuldades face à opinião pública? Neste cenário, analisando as armas que cada um dispunha, assentes especialmente na exploração de “casos e casinhos”, também, me pareceu que o PAICV não conseguiu superar o seu adversário, nem de impor a sua narrativa. A falta de novidade e a repetição dos casos conhecidos não me pareceram, por si sós, terem constituídos em ingredientes suficientemente impactantes para produzirem moldagem na opinião pública, uma vez que esta não teve mais informação do que já tinha, pelo que, a meu ver, não foi pela apresentação da moção de censura que a opinião pública terá mudado de posição ou o seu sentido de voto, quer seja para um lado quer para o outro;

Cenário 4:  Servir-se da moção de censura para apresentação de soluções alternativas de políticas setoriais ou globais? Claramente o PAICV não se preocupou em falar do que tem para oferecer ao país em termos de propostas e soluções, e, nesse particular, a apresentação da moção de censura falhou o que poderia ser um dos seus objetivos. Contrariamente ao que seria expetável, o PAICV concentrou as suas baterias nas críticas ao governo, algumas muitas antigas, outras menos antigas, sendo a mais recente a venda de um património público, em Nova York, matéria, manifestamente, que não goza, do meu ponto de vista, de dignidade para fundamentar uma moção de censura. O PAICV esqueceu-se que, enquanto partido com responsabilidade, e por ser do arco do poder, terá, por causa deste estatuto, de apresentar, sempre, propostas e soluções alternativas de governação, sob pena de aparecer a criticar só por criticar, e de correr o risco de se transformar em partido meramente de protesto.  

Cenário 5: Rejeição da moção de censura? Este seria o cenário, em termos teóricos, o mais pessimista, mas, curiosamente, também era aquele com maior probabilidade que pudesse acontecer, aliás, acabou por, na prática, se concretizar.

Das cinco hipóteses colocadas, como eventualmente estando na base dos objetivos traçados pelo PAICV, em quatro delas, quando aferidas com o teste da realidade, não se revelaram assertivas, facto que sugere que, em todos esses cenários hipotéticos, o PAICV não terá, nesse exercício, conseguido atingir os seus objetivos.

O único cenário que se concretizou foi o 5º, e que, de todo, era o indesejável.

Assim, em jeito de questionamento direi: Mas, afinal, o que o PAICV conseguiu com a apresentação da moção de censura?

Não tendo conseguido aprovar a moção de censura, a sua rejeição, pela bancada da maioria, não poderá ser encarada como uma transformação da moção de censura na de confiança ao governo?

Pois, obviamente, não tendo o PAICV conseguido fazer aprovar a moção de censura, deu oportunidade ao MPD, com a sua rejeição,  de transformar a moção de censura em moção de confiança ao governo, situação para a qual o PAICV contribuiu, (in)voluntariamente, para a sua concretização.

O PAICV, ao não ter conseguido nem derrubar o governo, nem provocar fissura no apoio parlamentar ao governo e nem tão pouco criar ou colocar o governo em dificuldades na opinião pública ou de apresentar soluções alternativas de governação, não pode deixar de tirar as devidas consequências políticas, porquanto, nessa operação política de alto risco, saiu de mãos a abanar.

Do lado oposto, o governo, na minha opinião, acabou por ver a sua posição sair reforçada com a rejeição da moção de censura. No entanto, em termos de posicionamento estratégico no debate, o executivo não escolheu o melhor caminho. Enquanto entidade com responsabilidade na gestão do Estado e na preservação da sua imagem de ente honrada, deveria resguardar-se, não entrando no tipo de debate que a oposição o seduziu. Ao listar um conjunto de ilegalidades, irregularidades e, em alguns casos, indícios de crimes, cometido na governação anterior, o governo ao pretender contrapor-se na mesma toada, parece ter também colocado a imagem do Estado em cheque, tendo em conta que esses negócios eram do Estado e foram realizados em seu nome.      

Do meu ponto de vista, o governo deveria situar o debate num plano diferente daquele que a oposição definiu. O executivo deveria aproveitar aquele espaço de tempo para falar ao país sobre aquilo que está a realizar o sobre o que projeta fazer, transmitindo imagem de serenidade e esperança no futuro.

Cabia ao MPD, enquanto grupo parlamentar, fazer a defesa do governo, podendo, sim, usar armas que o governo não poderia utilizar por razões já apontadas.

A repartição de tarefas se impunha, uma vez que alguém teria que cuidar da imagem do Estado, e passar a mensagem que o Estado de Cabo Verde é uma pessoa de bem, e não aquilo que os atores políticos querem, (in)voluntariamente, deixar transparecer.

Relativamente à UCID, outro ator participante neste debate da moção de censura, este partido decidiu, em protesto, abandonar a sala da sessão, em virtude do tempo que lhe foi atribuído que, no seu entender, achou ser inferior ao que tinha direito.

Sendo o parlamento uma instância por excelência de debates, entendo que para esses momentos excecionais, deveria haver soluções que permitissem que partidos com assento parlamentar que detêm grupos de deputados, cujo número não é suficiente para se constituírem em grupos parlamentares, tivessem um mínimo razoável de tempo regimentalmente previsto, para que pudessem efetivamente participar em debates nesses casos especiais.   

Tempos houve, no dealbar da segunda república, que a bancada do MPD, na altura dispunha de maioria qualificada, cedia do seu tempo à bancada do PAICV, sempre que este esgotava o seu tempo, para viabilizar a sua participação em debates. Pois, era o entendimento de atores de então que a salvaguarda do pluralismo valia qualquer sacrifício, e que um debate rico e democrático não se faz monocordicamente.  

Ao MPD não lhe custava, absolutamente nada, ceder uma parcela do seu tempo à UCI, até porque se se fosse somar o tempo de intervenção no debate do MPD, mais o de governo, dava e dá uma enormidade.

A política deve ser feita com alguma inteligência: o bem que se semeia hoje, colhe-se em frutos produzidos amanhã.

Desta sessão parlamentar, especialmente, sobre o debate da moção de censura, se me fosse permitido produzir uma súmula, ela necessariamente traduzir-se-ia nos pontos seguintes:   

Debate:

Foi um debate marcado, em termos de conteúdo, por muita carga dramática, alguma virulência verbal e, em alguns casos, ultrapassando o mínimo ético aceitável.

Desde logo, o governo dramatizou um pouco a situação (estratégia discursiva) e optou por carregar na tecla da emotividade, segundo o qual o objetivo da moção de censura era o de derrubar o governo, o que já se sabia de antemão que não era possível.

O PAICV, por seu turno, confessou que sabia que a moção de censura não ia derrubar o governo porque, na sua opinião, a bancada do MPD apoia “cegamente” o governo. A meu, o PAICV só deveria afirmar isso após a votação da moção e nunca antes, porque, com essa afirmação, acabou por admitir a derrota da moção de censura antes do tempo.

Ora, estando todos de acordo que o governo não ia cair, o debate centrou-se na troca de acusações de quem era mais sério, mais transparente ou menos corrupto ou corruptível do que outro. A lista de situações irregulares, ilegais e, em alguns caso, de indícios de crimes foi exibida de parte à parte, como se realmente vivêssemos num país de gente pouca séria e de especialistas em trafulhices, de onde a sua classe política é, toda ela, nos dizeres dos próprios, corrupta.   

Trata-se de uma forma estranha de fazer política, em que a classe política não se protege e nem se importa de enlamear reciprocamente.

Se já existe essa falsa ideia na população de que os políticos são todos “ladrões e corruptos”, e se no parlamento fazem essas acusações mútuas, obviamente que acabam, talvez sem querer, por reforçar essa falsa crença/perceção, porque, afinal, são os próprios a afirmarem, de viva voz, que uns e outros não são sérios.

Na política não pode valer tudo. Não é aceitável que num debate que deveria ser político e sobre políticas seja transformado, literalmente, em exercício de acusações pessoais e institucionais, de insinuações de todo o tipo, de revelações de conversas privadas, de citação de nomes de pessoais que não exercem cargos políticos e que não estão aí para se defender, revelação de práticas criminosas como a mutilação sexual de crianças ou de crianças a viver em união de facto, sem que essas práticas sejam denunciadas nas instâncias próprias e os seus autores devidamente punidos. Infelizmente, nada disso é tratado com sentido de responsabilidade e em instâncias apropriadas, e, tudo isso, é utilizado, impiedosamente, como arma ou instrumento de fazer política.

Pois bem, a ser verdade tudo o que tem sido dito, a propósito da falta de transparência, de ocultação de informação, de não defesa dos bens e interesse público, de desvio de finalidade de recursos públicos, de não prestação de contas, de financiamentos ilegais, entre outras acusações, a ser verdade tudo o que se tem dito, é espantoso que ninguém da classe política esteja na cadeia.

A conclusão lógica  a que se pode chegar é a seguinte: Ou há impunidade instalada que protege todos aqueles que praticam atos contrários a lei, contra o interesse público e que configuram crimes, e nunca são responsabilizados por aquilo que lhes atribui que fazem; ou as autoridades judiciárias entendem que são acusações infundadas, e que resultam apenas do confronto político e da luta pelo poder; ou, então, os “denunciadores” se sentem à vontade para proferirem acusações com ou sem prova porque, porventura, sabem de antemão que nada lhes acontece.

Ocorre, no entanto, que por muito menos, um deputado se encontra na cadeia por ter acusado titulares de orgãos de soberania de determinadas práticas, e, nesse caso, entendeu-se que se tratava de um hipotético e nunca provado crime de responsabilidade, por quem o proferiu ser titular de um cargo politico, e logo preso e condenado em tempo recorde. No entanto, temos deputados a acusar titulares de orgãos de soberania de todo o tipo de malfeitorias, e, por sinal, nada  acontece e, claro, nunca acontecerá nada.

Sem querer insinuar o que seja, me parece haver em Cabo Verde orgãos de soberania de primeira, a que está acima da crítica, de segunda, a que se pode enxovalhar por tudo e por nada e,  ainda, uma terceira, a que os seus titulares não se dão ao respeito de serem respeitados, inclusive por outros orgãos de soberania.

Esta é uma triste e indesejável realidade que se regista e descreve, mas sem nenhum prazer, porque amo Cabo Verde.

Finalmente, é preciso que os nossos atores políticos entendam, de vez, que os governos são da república e não dos partidos políticos, embora sejam apoiados, ora por um, ora por outro partido; têm de perceber que o(s) governo(s) é/são um órgão de soberania com igual dignidade que os demais orgãos, e representa/representam também o Estado de Cabo Verde interna e externamente; que ao imputarem a sucessivos governos da república atos intransparentes, práticas ilegais ou criminosas, desvios de bens públicos, sem que nunca essas imputações  se traduzam em acusações e punições judiciais, estão a dizer aos nossos parceiros, dos quais dependemos muito, que não somos gente de bem e que o Estado de Cabo Verde não é sério e, pior, que pratica corrupção.  

Os orgãos do Estado e os seus titulares não podem estar a funcionar contra o Estado ou contra os seus interesses, por mais liberdade de expressão que possam ter e usufruir; Este é um imperativo patriótico que se impõe a todos os titulares de órgãos de soberania, que, ao que parece, muita gente ainda não percebeu.

Na política não pode valer tudo, sob pena de se “matar” a própria política.

É preciso com urgência o estabelecimento de um código de ética parlamentar para que a casa parlamentar seja, realmente, um espaço de debate político e de políticas.

Para além disso, os partidos políticos precisam também estabelecer um acordo bilateral ou trilateral, baseado num código de conduta, estabelecendo algumas linhas vermelhas que não devem ser transpostas, em nome dos superiores interesses nacionais e na salvaguarda da imagem e do bom nome do Estado, bem como na consideração devida às pessoas, titulares de orgãos de soberania.  

Para que o povo possa respeitar os titulares de orgãos de soberania, como é o seu dever o fazer, devem os titulares de orgãos de soberania fazerem-se respeitar, a começar por respeitarem mutuamente.

Votação:

A votação da moção de censura não suscitou grandes expetativas, pois, sabia-se, de antemão, qual era o seu destino. A única dúvida que, eventualmente, existia, prendia-se, de alguma forma, com o voto da UCID, que se sabia que não iria votar contra a moção de censura, porque se o fizesse, isso equivaleria a aprovação  de uma moção de confiança ao governo. Mais, porque geralmente um partido na oposição, por princípio, não vota favoravelmente, nesses situações, no governo.

O voto expetável da UCID, antes do debate da moção de censura, era o de abstenção, porque isso lhe permitiria marcar a sua posição, enquanto oposição independente e com estratégia própria. No entanto, o incidente parlamentar que aconteceu, logo no início da sessão parlamentar, marcou a participação da UCID que, não tendo visto os seus argumentos considerados, decidiu abandonar a sala das sessões em protesto contra a decisão da mesa da Assembleia Nacional.

Ao não ter participado no debate e nem se ter pronunciado sobre a bondade da moção de censura do PAICV, a atitude mais sensata por parte da UCID seria, a meu ver, a de não participar na votação, o que deveria traduzir-se em deixar a sala antes da votação.

Não o tendo feito, acabou por não levar o seu protesto até ao fim, o que configura, claramente, alguma incoerência.

Numa análise mais substantiva, considerando o incidente parlamentar, o voto da UCID deve, a meu ver, ser visto como um voto de protesto, ou seja, um voto que assume um caráter hostil ao MPD do que a favor da moção de censura em si, sobre o qual, em termos de mérito, não se pronunciou.      

Resultado – vencedores e vencidos:  

O governo sai vencedor deste processo de apresentação da moção de censura por a ver recusada, e por verificar o seu apoio e confiança parlamentar reconfirmado. Vitória mitigada pelo facto de não ter sabido conduzir o debate para o terreno que o próprio governo tivesse escolhido e definido, não entrando no jogo da oposição.

O MPD tem uma vitória por ter visto a sua maioria manter-se coesa no apoio ao governo e ao não permitir que a moção de censura pudesse abrir alguma brecha no seu grupo parlamentar. A vitória do MPD, no entanto, é limitada pela sua inabilidade política ao não saber tratar, com inteligência, o dossier UCID, preferindo, antes, comprar a sua hostilidade, quando o que interessaria ao MPD era o isolamento do PAICV.

O PAICV sai vencido deste processo por não ter conseguido atingir nenhum dos objetivos que presidiram a apresentação desta moção de censura, como, aliás, atrás já ficou demonstrado. Para além disso, o PAICV parece ter esvaziado, de alguma forma, o  conteúdo do que será a sua intervenção no debate sobre o Estado da Nação, partindo eu do princípio que o partido esgotou todo o seu “arsenal de munições”, sendo quase certo que a sua intervenção nesse debate que se avizinha, em termos discursivos, será a repetição do que foi no da moção de censura.

Finalmente, a UCID que, quanto a mim, nem ganhou nem perdeu com a apresentação desta moção de censura, embora tenha relevado uma certa incoerência política por a ter votado favoravelmente. O voto da UCID parece ter sido uma tomada de posição de raiva, de pendor mais emocional do que racional, quando, o que se recomenda, nessas circunstâncias, e especialmente na política, é que a racionalidade prevaleça nas decisões que são adotadas.

 

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