Praia Leaks - Zero. Em memória de Vieira Lopes, avante!
Ponto de Vista

Praia Leaks - Zero. Em memória de Vieira Lopes, avante!

(Porque te escondeste do Sol,

não penses que escondeste o Sol)

Era preciso chegarmos ao fundo do poço para firmar os pés e saltar. A partir dessa escuridão o céu parece-nos distante e belo e queremos atingir a Liberdade!

Na série de artigos que ora se inicia sob a mesma manchete, pretendo trazer à luz do dia factos secretos que revelam a submissão do Estado a interesses privados obscuros de grupos próximos do poder.

No centro – mas há periferias também! - estará uma capital estrangulada por especuladores amigos a quem foram entregues terrenos públicos (e não só!) da cintura urbana, de cerca de 80 vezes o “Plateau”, o que vem provocando uma gestão urbanistica ao sabor da especulação/corrupção e a proliferação de bairros de miséria humana.

Os responsáveis pela situação – que é já uma normalidade instituída e aplaudida - são ex-tudo: membros do Governo, Procuradores da República, Deputados da Nação, Bastonários e outros juristas “de referência”.

Não pretendo ser académico. Procuro apenas uma pedagogia útil que permita a verdadeira compreensão dos factos, desmistificando certas verdades oficiais que medram na ignorância e nas militâncias cegas”.

Meu caro Vieira Lopes: Essas palavras eram para ser os primeiros parágrafos do capítulo I duma série a sair logo que passasse a sombria quarentena. Agora, a tua despedida como manchete será uma trombeta de combate e esperança, desde este Capítulo Zero.

É que não era previsto nem imaginado que um espírito das trevas se escondesse no teu poente, pensando que o Sol morre morto à tardinha e não volta na madrugada. Agora serás tu a inspirar e iluminar o espinhoso caminho que iniciaste com coragem e competência ímpares.

Eu escrevi – sinto isso estranhamente agora - à sombra do teu sol que vinha expondo à luz do dia os becos escondidos e obscuros onde se tramam as tramóias, na certeza de que os olhos de todos estariam mais virados para cima do que para mim, aqui ao lado.

No fundo estariam olhando para alguém cultíssimo e firme, com coragem plena que os anos não domaram e que insuflava ânimo e esperança a todos, fazendo-nos enfrentar os medos que tolhem a ação dos mortais e que os fazem humanos, pois só os deuses ou demónios os não têm. Mortais de quem, entretanto – como, citando de cor, diz a personagem Aquiles no filme “Tróia” –, os deuses têm inveja porque não transportam o fardo da imortalidade.

Pois é, caro e saudoso amigo, Dr. Vieira Lopes: Na tua transitoriedade neste Planeta não foste um mortal comum, para além das tuas virtudes (que eram muitas) e defeitos (que muitos seriam, pois a cada virtude extremada corresponde sempre um defeito) e não foi só por não conheceres a palavra “medo”.

Acusar-te-ia de pretenderes ser dono da verdade se ela já não tivesse dono cativo neste país e talvez no mundo: a Mentira. A mentira só fala a língua da verdade mais cristã, tem o rosto e gestos dela, instala-se nela, transforma-a em sua casa, com banquetes e oferendas de grande retorno pessoal em regime de “fifty-fifty”, pois em política não há almoços grátis.

Por isso compreendo este pensamento que pressenti em ti: “Seja ela verdade ou mentira, sou dono da minha verdade. Não sou escravo da mentira, nem da verdade. Porque a verdade que nos escraviza é a maior mentira”.

Reconheço que, para lá dos teus sólidos valores perenes e humanos, lutaste sempre pela tua verdade em cada momento, como é próprio da eterna juventude do espírito.

Concorde-se ou não com as tuas certezas, elas foram um cântico à liberdade do pensamento, quando, perante o sem-remédio das redes sociais, se instaura a arma sombria do Medo para meter a comunicação nos carris invisíveis duma Democracia que se esgota no Mercado – visto como individualismo, consumismo, ausência de solidariedade e de valores públicos e, se possível, do próprio Estado, a menos que este, renegando a sua necessária essência, se assuma como arma ao serviço de mercadores.

A descoberta mais exaltante a teu respeito é que sabias evoluir e mudar de ideias concretas, radicalmente se necessário, mas na medida da evolução, em vez de ficares sempre coerente contigo mesmo e com o passado. Não viveste para te cantares! A História destas ilhas – que não poderá esquivar-se ao teu nome – di-lo-á.

Li algures que Winston Churchill, grande político e grande humorista, dizia mais ou menos o seguinte: “A coerência é, muitas vezes, uma solução encontrada por quem no passado foi incompetente e, não encontrando forma de se tornar competente, mantém-se coerente”.

Na defesa dos teus Clientes lutaste na última década contra a mítica Hidra de sete cabeças, que aqui se protegem sob um manto de setenta tentáculos, entre visíveis e invisíveis, alguns deles enxertados no corpo do animal sem se darem conta, enterrando-se depois até ao ponto de não retorno. Esses tentaculares membros, desesperados, serão os mais ferozes porque defendem, quase todos, a sua real inocência.

Tal façanha... nem Hércules! Por isso ninguém me convence de que a tua luta era apenas pelos teus Clientes e que por detrás não te movia uma dignidade e valores mais altos, tal como quando no tempo colonial defendias presos políticos com imparável denodo não era só a eles que defendias, mas querias libertar “a cidade”.

A tua morte, hoje ou amanhã, era mais que óbvia. De maneira que quando, logo depois de teres tido alta do hospital, o teu amigo Amadeu Oliveira (ao que sei, amigo de choques e abraços, de concordâncias e discordâncias que exprimem a autenticidade das relações) me telefonou aflito de Santo Antão querendo saber se estavas em casa só, para de imediato contratar alguém para ficar contigo e querendo mesmo “tomar-te fisicamente” – para usar a expressão dele, pois tinha tudo preparado para te receber em Santo Antão, como já sabias ser seu projeto antigo – ele estava a lutar contra o inevitável de que não fugirias.

Mestre, não era previsto que não lesses os meus artigos, nos quais já suspeitavas que haveria respeitosas discordâncias. Concluídos, não os queria publicar sem antes conversar contigo.

Só não te mostraria a carta aberta que te iria dirigir depois do último artigo, na qual te pediria que, tendo em conta que não reunias as condições oficiais para ser-se condecorado, aceitasses uma condecoração particular feita por um simples cidadão grato pela tua existência (coisa sem nenhum efeito oficial e que não contaria para o teu currículo).

Imagina que ao falar ao Amadeu desta minha ideia ele, sempre precipitado nessas coisas, contactou logo várias pessoas para a cerimónia particular de condecoração em data a marcar. Mas estás de partida!...

Mau momento este para partidas individuais, como são todas as partidas!

Não sei se realizaste algum dos teus sonhos, ou se os levas todos contigo. Mas quantos mais levas mais deixas, pois os sonhos vivem sempre.

Não há nem houve cadáver em ti, porque não te esqueceste de sonhar - sonhos talvez tirânicos para ti mesmo, como acontece aos homens de carregam Causas sobre os ombros, mas como Álvaro de Campos sabias isto: “Pode ser que para o outro mundo eu possa levar o que sonhei./ Mas poderei eu levar para o outro mundo o que me esqueci de sonhar?/ Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver”.

Agora parte e vai. Núvem nos ares indo... Não olhes para trás! Talvez no Silêncio Astral escutes, sob um batuco baixinho em tua alma, uma voz tua longínqua, em versos confusos quase inaudíveis crescendo no fim: “E londji sima Céu,/ fundu sima mar,/... korpo alem ta bai,/
'm ta bai: aima ki tchomam;/ ... Bendedu mil mil na Sul-a-Baxu/ ... na butuperiu'l fomi,/... na sodadi'l fidjo londji/... KORPU TA MATADU, AIMA TA FIKA.

Mas não te surpreendas se ouvires algo parecido com um trovão distante, vindo da terra e do mar, por baixo das núvens: “ADEUS, VIEIRA LOPES. TU NUNCA MORRERÁS!”

Praia, 6 de abril de 2020

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