• Praia
  • 29℃ Praia, Cabo Verde
O vitimismo da Justiça
Ponto de Vista

O vitimismo da Justiça

Porque o povo assiste, impotente, a tamanha afronta caída sobre si, porquanto a Justiça em qualquer Estado de Direito Democrático se exerce em nome do povo e para o povo, este texto-grito emana de todo um povo sofrido, angustiado e vilipendiado pelo nosso sistema judicial, cada vez mais vitimista, sim, mas vingativo, feroz e ameaçador, quase vassalo de uma certa classe política que, também ela, não se coíbe de se furtar às próprias leis que produz para ‘despachar’ incómodos rumo à cadeia, libertar foras-da-lei e violentar mentes críticas através de discursos fascistas – “decisões judiciais que possam desagradar a um ou outro cacique, de forte influência na sociedade ou mesmo nas instâncias políticas, às quais se chega até a pedir a cabeça de juízes, sob a chantagem de, ou se anui a essas exigências ou se convoca o povo para a rua”, dixit, o presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial -  a tentar inibir o pensamento de quem ousar contrariar o sistema.

Reunimo-nos de urgência para analisar esse artigo publicado no jornal Expresso das Ilhas. Logo no primeiro parágrafo percebemos que era preciso recorrer à proteção da divindade. Sem a pretensão de vilipendiar o que por natureza já se encontra desgraçadamente gangrenado fizemos uma espécie de cromeleque e entre louvores, Pai Nosso e Avés Marias, suplicamos ao Pai Celestial muita paciência, serenidade e sabedoria para enfrentar as atrocidades implantadas no córtex cerebral de alguns indivíduos. Só um Deus nos acuda pode nos salvar da malignidade deste cancro que de forma intencional se alastra e corrói as nossas instituições judiciais.

É tão simples quanto isto: Não basta dizer que somos um País democrático, só pelo facto de nos ser permitido ir a uma urna exercer o direito de voto, ou dizer que a Justiça é feita em nome do povo, se na maioria das vezes a decisão dos tribunais entram em choque com a clareza do povo. Vários inocentes se encontram encarcerados há muitos anos e o nosso sistema totalmente despreparado, para dar respostas sérias e credíveis, os preferem deixa-los apodrecer na cadeia.

Outros, e de maneira mais frequente, ganham a liberdade de forma mais bondosa, leviana e disparatada, alegando em muitas casos erros processuais como a falta de tradução de documento em outras línguas, prescrições de processos, entre outros arranhões que em nada abonam o País. Essas falhas comprovam que nem tudo se aprende nos bancos de formação. Para ser agente da lei mais do que estudar é preciso ser justo. Justo em todas as ocasiões das nossas vidas.

Em toda a parte do mundo, aquilo a que se chama equipamento estatal “Justiça”, é imprescindível ao aperfeiçoamento da República. Não pode, portanto, haver quem negue a opção por um Estado de Direito de índole democrática, com um Poder Judiciário forte e consistente, que defendam, de facto, os fundamentos da real democracia e justiça verdadeiramente justa. 

Claro, saber direito não significa ser justo. Há uma diferença fundamental entre a ciência jurídica e a obtenção da Justiça. Aliás, como defende o professor brasileiro Renato Nalini, para “alguém ser juiz precisaria ser sensível, humano, gostar de pessoas, ter bom senso. Se soubesse um pouquinho, apenas um pouquinho, de Direito, ajudaria bastante no desempenho de sua missão de pacificar o convívio”.

 

Não há justiça

 

Nas decisões judiciais deve haver uma harmonização no tipo de decisões. É incompreensível que processos da mesma natureza, tenham decisões totalmente antagónicas. Enquanto que para uns há facilidades judiciais para outros a mão é tão pesada que roça a prepotência e totalitarismo.

Como poderíamos nós, meros mortais, compreender a disfuncionalidade dos tribunais. Ninguém dá o que não tem. Em Cabo Verde, a percepção da sociedade é de que não há justiça. Ou, havendo-a, é injusta, parcial, obtusa e irresponsável. Dizem as sondagens: existem problemas sérios e profundos na nossa Justiça e que têm a ver com a perceção pública. Devemos evitar o negacionismo.

No seu artigo do Expresso das Ilhas da semana passada, Bernardino Delgado, que procurou destratar os argumentos do antigo ministro e actual analista político, José António dos Reis, teme isso mesmo, quando afirma que JAR extravasou “a crítica legítima para passar a ser insulto gratuito, não legitimado em Democracia, mesmo que sob a capa da liberdade de expressão”.

O ilustre presidente do CSMJ, defendendo o Tribunal da Relação de Barlavento, que sentenciou Amadeu Oliveira a sete anos de cárcere, desfere ataques àquele analista, que quase apelida de analfabeto jurídico, de forma propositada. Reis, pelos vistos, estudou o dossier, mas antes nomes de peso fizeram e disseram e mesma coisa sem qualquer reacção de Delgado: o jurista Germano Almeida e o pai da Constituição de Cabo Verde, Wladimir Brito. A estes o presidente do Conselho que ministra os juízes não respondeu. E foram peremptórios.

Almeida vem contestando em largos textos no jornal A Nação a ‘safadeza’ que o sistema político-judicial vem fazendo ao Amadeu advogado e Brito, professor e mestre da grande parte dos jurisconsultos nacionais, em declarações ao A Nação, foi objectivo ao afirmar que o processo foi mal conduzido, logo ilegal, porque o pedido de levantamento da imunidade parlamentar do Amadeu foi feito pelo Ministério Público, quando na verdade deveria ser um Tribunal, órgão de soberania porque poder judicial, a efectivar esse mesmo pedido a outro órgão soberano, na linha da teoria dos três poderes eternizado por Montesquieu, ou, se se quiser, na relação inter-poderes entre o órgão judicial (Tribunal) e Legislativo (Parlamento).

O argumento é fácil de perceber, não pode um órgão soberano como a AN (eleito pelo povo) anuir a um pedido de uma instância como o MP para levantar a imunidade de um deputado sem que o Tribunal (órgão judicial) tenha recebido, analisado e confirmado actos susceptíveis de constituírem crime supostamente de um eleito da Nação. Nada disso aconteceu. Uma tamanha e atroz patada na lei, como os insuspeitos juristas Germano Almeida e o excelso professor de Direito, Wladimir Brito, defendem com segurança inatacável.

 

Nova ameaça

 

O texto de Bernardino Delgado, como se apercebe, visa atacar somente José António dos Reis, que estudou o dossier e conseguiu desmontar o enredo construído e evidenciar para nós, o povo, o quão maléfico pode der o sistema judicial cabo-verdiano.

E isto é tão transparente que, na resposta ao artigo do antigo governante, o presidente do CSMJ repete a dose mortífera da opinião pública quando indirectamente intimida quem ousar pensar, emitir opinião ou escrever que a Justiça vai mal neste nosso país. Aliás, até admite que opiniões, editoriais de jornais, artigos de cidadãos e inclusive posts nas redes sociais a reclamar da Justiça serão chamariz ou pontos de partida para uma eventual insurreição social contra o sistema. Afirmar isso não só demonstra que não liga para as preocupações da sociedade como debita nessa sociedade o ónus da culpa por incúrias da Justiça.  

Sejamos claros, o descrédito e a ineficiência da Justiça são gritantes e visíveis.  Cabo Verde merece um sistema judicial de qualidade, baseado no equilíbrio, que por si tem que ser razoável e imparcial.

Ninguém pode se achar ungido e nem se sentir essa espécie de mandato divino para impor a sua vontade, como explana o artigo do dito responsável. O sector da Justiça não pode representar uma ameaça para o povo e nunca nutrir espírito que sustenta vingança e ódio. Deve ser vista simplesmente como uma instituição operante no contexto da democracia.

A justiça não é dos juízes, dos procuradores, dos advogados ou dos oficiais de justiça: a justiça é do povo e é em nome dele, o povo, que se exerce a justiça. Tout court.

Absurdo e doentio é pensar que existe pretensão de atacar a nossa embrionária democracia. Nunca, a ideia não é essa e sim fornecer in-puts para que funcione melhor.

Ora, em pleno Estado de Direito democrático protestar contra a qualidade da justiça constitui um dever cívico. Existem falhas e devem ser sanadas ao envés de atacar pessoas na praça publica, tentando rimar a verdade com vitimismo. De nada vale erguer paredes e aumentar a quantidade de titulares se não existir uma harmonização na tomada de decisões.

O problema é que tudo se fez para silenciar o Amadeu Oliveira, com conivência dos partidos políticos com maior assento parlamentar que vivem unha e carne com o poder judicial. A suspensão da sua imunidade e cassação de mandato são por demais sintomáticas. Cumplicidade perceptível nas decisões a olho nu escancaradas – máfia dos terrenos da Praia, fuga de traficantes, protecção de governantes arguidos de assassinato, delapidação de empresas públicas…

 

O Acórdão que eles querem

 

Ao debruçarmos sobre o acórdão que um deputado da Nação foi condenado percebemos sem qualquer esforço a má-fé e a falta de bom senso das instâncias judicias. E políticas.

Conseguimos sentir o cheiro nauseabundo e vomitativo da justiça cabo-verdiana logo na primeira frase, na tentativa de enaltecer o feito da justiça ser feita em nome do povo.  Sem sobra de dúvida, tiveram que redobrar os esforços, recorrer porventura à magia negra das doutrinas transfronteiriças para condenar o deputado.

É do conhecimento de todos que não conseguiram provar o crime que foi acusado de atentado contra o Estado de Direito e que para mantê-lo na prisão navegaram em mares tempestuosos da ilegalidade e contra a maré permitiram que o arguido ficasse preso no veneno escorregadio da juíza que presidiu o julgamento, mesmo sabendo se tratar de uma pessoa que no passado manteve relacionamento interpessoal bastante conturbada, com Amadeu.

De facto, numa democracia e o Estado de Direito verdadeiros e efectivos não se consentem que um deputado seja detido e mantido na prisão, através de uma autorização concedida por um órgão sem legitimidade para decidir naquele espaço temporal e em flagrante violação do nº 1 do artigo 148º.  Não é uma questão de interpretação. A Constituição cabo-verdiana tipifica em que momento a Comissão Permanente pode funcionar substituindo o Plenário da Assembleia.

Com efeito, fora do Flagrante Delito, o Deputo não pode ser detido ou preso, antes do Despacho Judicial de Pronúncia e antes de ter o seu mandato de Deputado suspenso por deliberação da Plenária da Assembleia Nacional tomado em escrutínio secreto, por maioria de Deputados em efetividade de funções. Ouvir o deputado sem a devida autorização da Assembleia é outra irregularidade insanável.

Nisso, a classe política fica de claro em xeque porque se fizeram desmascarar dando suporte a este ultraje, condenado por magnânimos juristas como Wladimir Brito, Germano Almeida ou teses doutrinais do prof. Jorge Miranda.

 

Jorge Miranda, catedrático e mestre de grande parte dos magistrados e juristas seniores de Cabo Verde, e referência obrigatória em livros de Direito, tem uma publicação específica sobre “Imunidades constitucionais e crimes de responsabilidade”, na qual escreve o seguinte:

“Acolhendo a análise de Gomes Canotilho e Vital Moreira, podem ser apontadas as seguintes características dos crimes de responsabilidade:

a) Trata-se de crimes praticados por titulares de cargos políticos no exercício de funções;

b) Consistem na infracção de bens ou valores particularmente relevantes da ordem constitucional cuja promoção e cuja defesa constituem dever funcional dos titulares de cargos políticos;

c) Por isso, existe uma conexão entre esta responsabilidade criminal e a responsabilidade política, transformando-se a censura criminal numa censura política (com a consequente demissão ou destituição como pena ou efeito necessário da pena);

d) Qualificação desta responsabilidade criminal, face à responsabilidade criminal comum, pelo facto de o agente dispor de uma certa liberdade de conformação e gozar de uma relação de confiança pública;

e) Existência de especificidades quanto a processo criminal, quanto aos tipos de penas e seus efeitos e também, eventualmente, quanto à competência judicial para o julgamento.”

Nenhum desses casos se aplica ao cidadão e advogado Amadeu Oliveira. Outra coisa, o incontestável Jorge Miranda (em quem os magistrados da terra bebem seu suco intelectual) fala de perdão e indulto em matéria de crime de responsabilidade.

“Serão aplicáveis aos titulares de cargos políticos a amnistia, o indulto ou outros actos de clemência? Importa distinguir:

a) Quanto a crimes cometidos fora do exercício das funções, por certo esses titulares, porque continuam a ser cidadãos como quaisquer outros, poderão beneficiar de amnistias e perdões genéricos - que só o Parlamento pode conceder - inclusive estando ainda no exercício das funções.

b) Também quanto a esses crimes, poderão eles ainda ser destinatários de indulto e comutação de pena, porquanto indulto e comutação pressupõem condenação e esta só pode dar-se. como se verá de seguida, não estando os titulares no exercício de funções.

c) Pelo contrário, no tocante a crimes no exercício de funções, são de excluir, de modo peremptório, quaisquer medidas de clemência ou de graça, porque eles violariam o princípio constitucional da responsabilidade. Seriam decisões dos próprios titulares de cargos”.

Outra vez, a lei cabo-verdiana, que suga tudo de Portugal, tem referência para avaliar e condescender.

 

Sem sorteio do juiz

 

Se fizermos bem os cálculos há Incidência da Incompetência Territorial, tendo em conta que, não só o crime mais grave (Crime de Perturbação ou Coação de Órgão Constitucional) como também a maioria dos supostos crimes (3 a 4 anos) foram cometidos na Região do Sotavento. Significa que o tribunal competente deveria se situar na Região do Sotavento e nunca na Região do Barlavento em virtude as regras de competência territoriais estatuídas nas Alíneas a) e Alíneas b) do Nº 2 do Artigo 41º do CPP; em conjunção com Artigo 11º do CPP, e consagrado no Nº 10 do Artigo 35º da Constituição da República. Crime de Perturbação ou Coação de Órgão Constitucional – STJ, supostamente cometida na Cidade da Praia Ofensa a Pessoa Coletiva supostamente cometida também na Cidade da Praia (Sotavento).

O próprio Juiz declarou, por despacho datado de 30 de julho de 2021, que nunca tinha havido distribuição do processo entre os juízes. Posteriormente, no próprio acórdão assumem que não conseguiram comprovar documentalmente que efetivamente houve sorteio.  O que não consta nos autos não existe para os efeitos legais.

Ou seja, ficou provado que não houve sorteio, o que viola o direito fundamental do deputado de ter acesso a justiça mediante um processo justo e equitativo tal como estatuído no nº1 do artigo 22º da Constituição da República. O nº 10 do artigo 35º da CRCV e artigo 11º do CPP) que tem como consequência a invalidade de todo o processado, ao abrigo dos Artigos 3.º e 211º, N 3 ambos da CRCV.

Os crimes de cargos públicos estão claramente tipificados. De maneira que, maliciosamente e propositadamente, esboçaram uma grande confusão entre mandato de deputado e exercício de função de deputado.

As acusações feitas pelo deputado no Parlamento jamais poderiam ser utilizadas contra ele, conforme plasmadas no acórdão por estarem cobertas por um princípio Constitucional de “Inviolabilidade”.

Entre tantas violações, interpretações perniciosas em nome do povo o Grupo Repensar Cabo Verde repudia com veemência a reação do presidente do CSMJ, porque segue uma política de hostilidade e revanchismo contra quem vem reivindicando melhor justiça, ameaçando quem ouse fazer o mesmo e aniquilando, de vez, o poder de opinião do povo, que mais deveria ordenar. Reforma da Justiça precisa-se. Agora.

 

 

Partilhe esta notícia