Fragmentos de uma Vida Dupla: o jogo das máscaras
Ponto de Vista

Fragmentos de uma Vida Dupla: o jogo das máscaras

Amanhã é outro dia. Outra mentira. Outra chance de fingir que ainda sou o homem daquela foto no criado-mudo. Os filhos herdaram silêncios truncados, a esposa carrega espelhos quebrados.O dinheiro sumiu, a casa perdeu a cor, e o vizinho aponta: "Olha ela" Só hoje enxergo os cacos: tua alma em frangalhos, as fotos rasgadas, o silêncio no lugar do jantar. Sei que nenhum verso apaga o que quebrei, nem faz da traição um acidente a se lamentar.

Ele chega às ilhas de morabeza novo com um bilhete sem regresso e um “punhado” de banha de cobra do país da Alda Espírito Santo, uma jornada de incerteza, mas com certeza não faltou leite de vaca nem o cuscuz quente ao som do crioulo. Como se o tempo corresse atrás do tempo, o então chegado, já era propriedade legítima de alguém, interferindo nas estatísticas populacionais, acrescentado dois números.

Entre mapas mentirosos e malas de ilusão, pai de dois olhos inocentes, marido de aparência, vendia paraísos falsos na loja da ausência. "Pacotes imperdíveis!" — anunciava na vitrine, enquanto a esposa, contava o pão de cada dia, dois filhos, contas, promessas, tudo era papel, e o mestre do teatro dançava no bordel.

Tudo começou numa terça-feira comum, o dia já dormia, na companhia de uma taça de vinho, com os olhos cravado na tela do computador, era o dia do agendamento, tensão máxima, toca o telefone, o segredo ainda não era segredo, eu atendo e passo a ela, a minha esposa, mal sabíamos que seria a pior chamada das nossas vidas.

A noite acorda sem sol, um dia de chuva fina, daqueles que deixam o escritório abafado e o terno grudado nas costas. O compromisso das 15h foi cancelado, e eu fui tomar café sozinho, foi ali que trocamos pela primeira vez o mesmo oxigênio: cabelo preso num rabo de cavalo desleixado, um pouquinho acima do peso, mas sem perder a forma de viola. Não planejei. Não pensei. Sorrimos de um jeito que doeu na alma, como se ambos soubéssemos que aquele silêncio era uma linha sendo cruzada.

A primeira vez não foi a primeira, reduziu-se apenas ao encantamento no excitante prazer de possuir o proibido. Não houve paixão, só alívio. Alívio de sentir-me vivo após anos engolindo frases como "tudo bem, amor" e "não foi nada". Mas o alívio durou menos que a taça do vinho. Ela dormiu, eu fiquei a olhar para o teto, contando as rachaduras como se fossem os dias que faltavam para o fim do mundo. Em casa, aprendi a mentir com naturalidade. "Fiquei até tarde no trabalho", "almoço com cliente". Às vezes, olho para minha esposa, quase confesso. Quase. Mas o medo de ver o olhar dela se transformar em cacos me paralisa.

O persistente alívio, convidou a paixão a fazer morada numa terra que já não produzia boas sementes e acreditei no conto do barco rumo à lua, "fujamos para Portugal", enquanto clientes choravam o que jamais voltou. Mas Portugal não era o céu – era só outro porto, onde o dinheiro roubado virou pó, vento morto. A celebração da década, “vamos às terras de Camões” acontecia a 15 de março de 2023, realização do sonho do fugitivo que vendia horizontes, deixou rastros de tempestade e uma mulher a varrer a vergonha com as mãos trêmulas. A culpa, quando surge, é enterrada sob a urgência de sobreviver. "Ela nunca saberá", digo a mim mesmo, enquanto desvio o olhar do rosto dela nas fotos que mantenho no bolso, enquanto corria para os braços da outra.

O adúltero não é um pegador. É covarde. Sabe que está a cavar um buraco, mas continua porque a queda dá um frio gostoso na barriga. E quando a amante me pergunta, num sussurro, se vou deixar a minha família, minto de novo: "logo, logo." Mas, no fundo, sei que não vou. Porque o inferno que conheço é menos assustador que o que não consigo imaginar. Hoje, depois de mais uma noite de segredos, recebi uma mensagem dela: "Precisamos conversar." Meu coração disparou. Será que desconfia? Ou será que o universo finalmente cobrou a conta? Enquanto digito "Claro, amor" e apago três vezes, percebo que o pior não é a culpa. É a esperança secreta de que ela descubra tudo e me liberte dessa prisão que eu mesmo construí. Amanhã é outro dia. Outra mentira. Outra chance de fingir que ainda sou o homem daquela foto no criado-mudo.

Os filhos herdaram silêncios truncados, a esposa carrega espelhos quebrados.O dinheiro sumiu, a casa perdeu a cor, e o vizinho aponta: "Olha ela" Só hoje enxergo os cacos: tua alma em frangalhos, as fotos rasgadas, o silêncio no lugar do jantar. Sei que nenhum verso apaga o que quebrei, nem faz da traição um acidente a se lamentar.

Guedson C. Rompão, Email: guedson.rvarela@gmail.com Contacto: +447518703262

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