Covid-19, Falha do Mercado e Regresso do Estado e do “big Government”
Ponto de Vista

Covid-19, Falha do Mercado e Regresso do Estado e do “big Government”

Assiste-se hoje um pouco por todo o mundo, a uma forte mobilização de recursos públicos para fazer face à pandemia do Covid-19. O Estado, sobretudo o dos países neoliberais, empenha-se na implementação de medidas radicais para preservar a economia, ou melhor “salvar o mercado livre”. Será esta mobilização um sinal do regresso do “Estado-intervencionista”? A intervenção do Estado perante a fraca resiliência e incapacidade do mercado em lidar com a “crise”, significará o fim do reinado da deusa “Mão invisível” do mercado capitalista selvagem? Ou esta fogosidade e intervenção Estatal são meramente circunstanciais, para que tudo possa voltar à normalidade do antes da crise?

“Não existe essa coisa de sociedade, o que há e sempre haverá são indivíduos”, dizia Margaret Thatcher no auge da campanha em defesa de políticas neoliberais no Reino Unido e nos Estados Unidos, em oposição às políticas intervencionistas e do Welfare State. Thatcher e Reagan, inspirados por uma escola de economistas ortodoxos e ultraneoliberalistas, tendo como o seu guru o renomado economista Milton Friedman da Escola de Chicago, construíram e capitalizaram a sua narrativa política em prol do Mercado face ao “big Government” (um governo excessivamente intervencionista, e despesista sobretudo nas políticas sociais), com base nos desaires económicos dos anos 70 nos países ocidentais, que se acreditava serem em parte, consequências da “crise de petróleo”. Antes, os anos que se seguiram a II Guerra Mundial até meados dos anos 70, tinham sido de muita bonança — “os trinta gloriosos anos” — assente num crescimento económico robusto e na consolidação do Welfare State naqueles países. No entanto, o arrefecimento económico pôs em cheque as políticas intervencionistas do Estado e do Welfare State, catapultando os seus críticos mais acérrimos ao poder. (Re) Nascia assim a teoria da ineficiência do intervencionismo Estatal e do “big Government”, e concomitantemente a “fé” na supremacia da “Mão invisível” do Mercado. Reagan chegou a afirmar: “Não espere que a solução venha do governo. O governo é o problema”. A solução, acreditava ele, passava necessariamente pela liberalização da economia, assente no princípio do “Estado mínimo”, em oposição ao Estado intervencionista e do “big Government”. A narrativa do primeiro venceu, pelo menos em teoria, e malgrado as oposições várias, tem reinado até hoje quase em todo o mundo.

Hoje, a incapacidade e a ineficiência evidente do Mercado em fazer face à crise económica, e pior, em assumir o leme dos esforços e custos no combate à pandemia do Covid-19, atesta-se como uma oportunidade histórica para repensarmos o paradigma do “Estado mínimo” e os pilares em que se assenta o Mercado neoliberal. Em outras palavras, revisitar as narrativas em volta da “eficiência/ineficiência do Mercado” vs. “eficiência/ineficiência do Estado” enquanto mecanismos de produção e satisfação de bens públicos. Concomitantemente à retração do Mercado a que hoje se assiste um pouco por toda a parte, o Estado — os governos — assume o papel central na mobilização de recursos humanos, financeiros, científicos, etc., no combate à pandemia do Covid-19, procurando preservar a saúde e a vida dos cidadãos, e salvar a economia em queda. O comportamento dessas duas entidades hoje, são sinais evidentes de que os pilares em que se assenta o modus operandis do neoliberalismo precisam ser repensados e reconstruídos. O facto de o Covid-19 estar a “atacar” mais afincadamente os países onde o neoliberalismo encontra-se mais e melhor enraizado, corrobora ainda mais tal necessidade. São esses países onde o sistema de saúde rege-se fortemente pela lógica do mercado, que estão a ser os mais fustigados pela pandemia do Covid-19. Interessante é que, paralelamente a esse facto, um bom número de países neoliberais estão a recorrer-se à China para fazer aquisição de material médico-hospitalar destinado ao combate contra o novo coronavírus. Mais interessante ainda é ver médicos cubanos a viajarem pelo mundo, com a missão de “salvar vidas” em solos neoliberais. Atenção! Esses médicos provenientes de um solo socialista, ao aterrarem nos solos neoliberais, são recebidos por altos dignitários, que sem surpresa alguma, são crentes neoliberais convictosWhat a world! Sem querer aqui pôr em confronto as ideologias de Esquerda e as de Direita, ou o Socialismo vs. Neoliberalismo, as evidências da fragilidade do Mercado capitalista selvagem perante a crise do Covid-19, dizem-nos de forma cândida que há algo de podre com esse sistema de governança económica.

Perante a ineficiência e falha do Mercado capitalista selvagem, é o Estado, ou melhor, o governo que se avoluma para intervir com medidas económicas que, se antes da crise eram tidas como tabus, sendo condenadas pelo credo neoliberal, hoje são agraciadas e recebidas com louvor. E muitos cantam em uníssimo coro, “elas são necessárias e essenciais para salvar as pessoas, a economia e preservar o mercado”.

Se em tempo de “normalidade” — ausência da crise, a religião neoliberal prega que os indivíduos devem servir-se dos mecanismos do Mercado para satisfazer as suas necessidades, sem se depender do Estado (porque este deve cuidar só dos incapazes, dos inaptos), hoje são os próprios guardiões daquela religião que oram e clamam pelo retorno do Estado intervencionista e de Providência- do “big Government”, sem no entanto, assumirem os seus pecados. “Fomos todos surpreendidos”, disse um comentarista, que por sinal, um capitalista crente na deusa “Mão invisível do Mercado”. Ironicamente arrematou outro crente neoliberalista convicto, “o Estado tem que ser resiliente neste momento”. Reparem a ironia. É o Estado “que tem que ser resiliente”, porque afinal de contas, todos dependem do lombo do Estado.

Pois, enquanto o Mercado falha em garantir a satisfação de bens públicos, neste caso a saúde, e a sua fraca resiliência em fazer face à crise, o Estado regressa para assumir o fardo. O fardo de em primeiro lugar proteger as pessoas, e cada vez mais caro fruto de um desinvestimento contínuo no sistema de saúde, entregue à lógica do lucro. Sarcasticamente, o Estado regressa também para assumir o fardo de resgatar e salvar o próprio mercado falhado. Assiste-se hoje a uma cena interessante: os agentes, guardiões neoliberais colocam-se na fila ao lado do povo pobre, estendendo as mãos ao Estado, pedindo a salvação. A única coisa que, se calhar, de forma transparente destinge um grupo do outro, é o tamanho do pedaço do pão da salvação que cada um recebe. O argumento dos primeiros é que serão os salvadores do segundo, quando tudo voltar à “normalidade”.

A título de exemplo, o governo Cabo-verdiano já avançou com um pacote de 4 milhões de contos para socorrer as empresas, com “garantias do Estado que pode ir até 100%”. Sem contar com um pacote de outras medidas fiscais. Avançou também com um conjunto de medidas para salvar o povo vulnerável. Sim, o povo vulnerável que para receber a sua “cesta básica”, muitas vezes é obrigado a suportar longas filas debaixo de um sol escaldante e submeter-se a outras circunstâncias, para logo depois, rezar e esperar que chegue uma outra “cesta básica”. Sim, o povo, as pessoas vulneráveis esperam por um “gesto benevolente” do Estado, ou de uma mão amiga, que por esta altura tem sido o exemplo de uma solidariedade autêntica. Esse gesto que uns até consideram ser evitável, como afirma um comentarista aqui do burgo, ao dizer que “cada cidadão deve ser responsável pela sua própria cabeça […] e não deve ficar a mercê da esmola do Estado para [que possa] sobreviver perante qualquer dificuldade”. É de se rir, ao ouvir esse comentarista Thatcheriano a tentar colocar toda a responsabilidade sobre os indivíduos pelo seu infortúnio, e principalmente quando ele se coíbe de dizer o mesmo sobre os santos capitalistas. Em vez disso, afirma vivamente, “O Estado tinha que fazer alguma coisa para as empresas” para resgatar a economia e a dignidade das pessoas.

E questiona-se: “o que se espera do Estado pós Covid-19?” Um certo Estadista, ao ser confrontado com aquela pergunta afirma que “a intervenção do governo não é uma aquisição do governo […] O seu objectivo não é enfraquecer o mercado livre. É para preservar o mercado livre”. O discurso dos guardiões do Estado de que estão a fazer “tudo para que se volte à normalidade”, é prova da sua cumplicidade para com o domínio do sistema neoliberal vigente, e do seu empenhamento em fortalecê-lo, mesmo perante evidências da sua ineficiência e do seu fracasso em restaurar a igualdade e a justiça social. Uma simples máscara cirúrgica que antes da crise custava quinze escudos, agora custa entre cento e cinquenta e duzentos escudos no mercado cabo-verdiano. O povo critica, mas é o Mercado. Quem não tiver esse dinheiro para adquirir um bem público para proteger a sua saúde, um bem ainda maior, mas que é indiferente ao Mercado, que se desenrasque. Nesta lógica, o comentarista Thatcheriano tem toda a razão. Os capitalistas mais do que ninguém sabem disso. “Quando as coisas normalizarem vai voltar tudo ao mesmo, e volta a corrida ao lucro, à especulação, cada um ganhar mais de forma gananciosa”, afirma o líder de uma organização empresarial cabo-verdiana.

A confiança dos capitalistas de que tudo vai voltar à “normalidade”, assenta-se na premissa de que o mercado falha porque é propositadamente governado para falhar de tempo em tempo. E, se hoje a crise não fosse a Covid-19, de certeza que, mais cedo ou mais tarde, seria motivada por outro fator qualquer. As engenharias e reengenharias parcelares do mercado precisam de quando em quando de um choque para que novos players e novos interesses possam legitimar-se (Naomi Klein, The Shock Doctrine-2007).

Contudo, será que após a crise tudo voltará à “normalidade” do antes da crise? Orientar-se-ão o Estado e os cidadãos pela mesma lógica ultraneoliberalista, num jogo de soma nula, em que a maximização do lucro de uma minoria implica a maximização do infortúnio da maioria, o povo pobre? Deixar-se-ão os cidadãos e outras “estruturas da democracia” cair na velha cantiga de que “Não há outra alternativa” ao atual capitalismo selvagem? Perante as atuais evidências, não estarão essas estruturas — movimentos sociais, atores políticos, etc., suficientemente iluminados e aptos para exigirem a construção de uma nova ordem, um novo paradigma de governança económica, uma nova democracia? Uma democracia onde de facto a voz do povo impera, onde todos governam numa lógica associativa e colaborativa, e numa lógica de um jogo de soma positiva, em que todos ganham? Não será esse o caminho para a reengenharia e edificação de um novo mercado? Não será esse o caminho para a sustentabilidade da democracia, e quiçá para a sustentabilidade da nossa própria existência enquanto seres humanos?

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