Num artigo muito interessante, em junho de 2018, no jornal Expresso das Ilhas, sob o título, “Cabo Verde na CEDEAO: A hipótese de uma integração diferenciada”, o Dr. Benfeito Mosso Ramos, atual juiz conselheiro no Supremo Tribunal de Justiça, defendia um tratamento diferenciado para Cabo Verde, face às suas particularidades, no quadro da CEDEAO.
Nesse artigo alertava para o que se estava a passar na CEDEAO, que alguns, segundo ele, já apelidavam de “integração política”, e salientava, exemplificando: “o mandato, tendencialmente supranacional, conferido aos principais órgãos comunitários, a decisão de transformar o respetivo parlamento em órgão legislativo e o princípio da direta vinculação dos Estados-membros às decisões da Conferência dos Chefes de Estado e de Governo, bem como do Conselho de Ministros”, isso já configuraria uma transformação da organização em uma ente supranacional. Para o Dr. Mosso Ramos, sem que progressos no plano da integração económica pudessem justificar tal opção, “acabou por se assistir a uma transformação na natureza e nos objetivos da CEDEAO que, da inicial organização de cooperação intergovernamental passou, em poucas décadas, àquilo que é já assumido pela respetiva liderança como uma organização supranacional”
A realidade é que a CEDEAO sofreu uma alteração estrutural que, também, foi seguida de mudanças, que relançou a natureza supranacional da organização, passando a contar com um novo sistema de atos jurídicos. Esta mudança na CEDEAO provocou a nível da dimensão jurídica algo substancial: os tradicionais atos comunitários, como os protocolos, cederam lugar a atos adicionais que são, por definição, vinculativos.
Analisando as perspetivas desses diferentes especialistas, poder-se-á concluir que a essência da supranacionalidade reside na transferência de parcelas de competências dos Estados a favor da organização supranacional; aplicabilidade direta e imediata do ordenamento comunitário; e independência das instituições comunitárias perante os Estados-membros. Parece óbvio que a CEDEAO já dispõe desses institutos, embora não em fase tão avançada como os da União Europeia (modelo de organização supranacional), mas já se encontra a um nível que não tem nada a ver com o MERCOSUL (modelo de organização intergovernamental), e isso só demonstra que há diferentes etapas na vida e evolução das organizações.
Parece que o STJ, no julgamento deste caso, mais concretamente, sobre a questão da vinculação do Estado às decisões do Tribunal de Justiça da CEDEAO, não conseguiu libertar-se da sua condição de parte, tendo em conta a sua eventual subalternização, porque só assim se entende essa afirmação constante do acórdão que sinaliza “ainda que o Estado de Cabo Verde estivesse vinculado às decisões do Tribunal da CEDEAO, proferidas em sede de queixas individuais, por alegada violação dos direitos do homem, o não acatamento dessas decisões constituiria, apenas, uma questão da responsabilidade internacional do Estado”, ou seja, é o tribunal a incitar a outra parte a não cumprir uma decisão judicial, o que não deixa de ser um gesto/ato lamentável, e de forma insinuativa, o STJ deixa transparecer que é uma questão menor sujeitar o país a uma condenação por responsabilidade internacional do Estado.
Nesta questão do nº 2 do artigo 210º, parece que o STJ se distancia, claramente, do Prof. Doutor José de Pina Delgado, quando este afirma, a propósito desse articulado da Constituição, “Tal disposição insere no ordenamento jurídico cabo-verdiano uma cláusula de abertura institucional que domestica as cortes internacionais, transformando-as em órgãos judiciários do sistema cabo-verdiano de tribunais”, e concretiza a asserção com duas exigências para que tal ocorra: a) ser a entidade de natureza judiciária; e b) que tenha sido criada por tratado e Cabo Verde se tenha a ele vinculado, bem assim, que abarque situações como as dos dois tribunais ad hoc criados pelo Conselho de Segurança.
O fundamentalismo, do STJ, em termos de argumentação, o conduz a não percecionar que esses tribunais internacionais, uma vez preenchidos os requisitos exigidos, passam a ser “órgãos judiciários do sistema cabo-verdiano de tribunais”, e que nessa condição administra a justiça como os demais tribunais.
Parece óbvio que a CEDEAO, desde 2005-2006, deixou ser uma organização intergovernamental, a sua natureza passou a ser a de uma organização supranacional, com alguma hibridez é certo, como a União Europeia o foi durante muito tempo.
C - O estatuto de enviado especial: sim ou não?
A figura de enviado especial é definida na alínea e) do artigo 1º da Convenção de Nova York sobre Missões Especiais como sendo “a “representative of the sending State in the 'special mission' is any person on whom the sending State has conferred that capacity”.
O Estado, que manda o seu enviado especial a um outro Estado, é livre de escolher quem entenda para desempenhar essa tarefa, não existindo nenhuma exigência ou requisito especial que condicione a sua escolha. Contudo, o Estado que envia, antes de nomear o seu enviado especial terá de fornecer ao Estado recetor todas as informações necessárias sobre o tamanho e composição da missão especial e, em particular, os nomes e designações das pessoas que pretende nomear.
Havendo a aceitação da parte do Estado recetor, ter-se-á formalmente um enviado ou missão especial.
Alex Saab saiu da Venezuela rumo ao Irão na qualidade de enviado do governo daquele país.
O avião que o transportava teve necessidade, e segundo alguns, obrigado, a fazer uma escala técnica para o reabastecimento na ilha do Sal.
Uma escala técnica para reabastecimento significa que o aparelho se dispõe na placa, em local apropriado para receber combustível, permanecendo o passageiro dentro da aeronave.
Permanecendo o passageiro dentro da aeronave, significa que não atravessa a fronteira, não precisando de visto e nem de outras formalidades, junto das autoridades fronteiriças.
Acontece que as autoridades policiais cabo-verdianas, não se sabe a mando de quem, decidem invadir o avião, eventualmente sem a permissão do comandante, e provadamente sem um mandado judicial, como ficou demonstrado pelo Tribunal de Justiça da CEDEAO, para deter o passageiro, no caso, Alex Saab.
No dia seguinte à prisão, as autoridades venezuelanas entram em contacto com as autoridades cabo-verdianas para as informar que Alex Saab é seu enviado especial e que estava numa missão para o Irão, acrescentando que gozava de privilégios e imunidades no âmbito do direito internacional.
Desconhece-se, até hoje, qual foi a resposta das autoridades cabo-verdianas sobre a informação fornecida pela Venezuela, mas não será difícil de perceber qual foi, tendo em conta o comportamento revelado por Cabo Verde ao longo do processo.
Um dos argumentos chave utilizados pelo Supremo Tribunal de Justiça, para não dar provimento ao recurso da defesa, em relação ao estatuto de enviado especial de Alex Saab, foi a invocação do estatuído no nº 4 do artigo 42º da Convenção de Nova York sobre Missões Especiais que exige, para efeito de atribuição de imunidades e privilégios aos membros de uma missão especial de um Estado, a comunicação prévia ao Estado terceiro.
O artigo 42º da Convenção incide, claramente, sobre as facilidades a serem concedidas ao enviado especial, missão especial, pessoal administrativo e técnico ao serviço da missão especial, membros de suas famílias quando transitam pelas fronteiras de terceiros Estados, condicionando a sua conceção ao dever de comunicação prévia a terceiros Estados. O artigo 42º da convenção em nenhum momento atribui qualquer competência às autoridades de terceiros Estados de reconhecer ou não o estatuto de enviado especial, não lhes cabendo, em consequência, conceder ou retirar o estatuto de enviado especial a quem quer que seja.
O que o nº 4 do artigo em causa impõe, é o dever de comunicar, previamente, do Estado que envia a missão ao terceiro Estado, e, dando a este, possibilidade de objetar o membro ou os membros integrantes da missão especial propostos.
Embora a convenção não trate de aspetos relacionados com a comunicação à posteriori a terceiros Estados sobre passagem de enviado especial ou dos membros da missão especial, não sendo Cabo Verde e a Venezuela Estados em conflito, a comunicação das autoridades venezuelanas, mesmo que feitas posteriormente, deveria, em nome das boas relações diplomáticas, ser atendida favoravelmente, embora o caso não exigisse tal démarche como veremos mais à frente.
Curioso é que o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão sobre o caso considerou que “não existe prova no processo de que o Estado de Cabo Verde consentiu em que o Requerente transitasse pelo seu território com estatuto de enviado especial” … para depois acrescentar que “sem esse consentimento, os Tribunais Cabo-verdianos não podem reconhecer ao Requerente o estatuto de enviado especial, o que significa que o mesmo não goza de inviolabilidade e de imunidades a que se arvora, tendo por base a Convenção das Nações Unidas sobre Missões Especiais”.
Mas o que está em causa não é o reconhecimento do estatuto de enviado especial como parece o STJ pretender, porque esta é uma matéria que diz respeito, apenas, à Venezuela e ao Irão. A condição de enviado especial não cessa quando este está a viajar na sua missão especial, como decorre da convenção, ela só acaba quando a missão especial terminar.
O que o artigo 42º pretende é garantir que quando o enviado ou a missão especial transite por territórios de terceiros Estados, os seus privilégios e as suas imunidades sejam assegurados, por isso a exigência de comunicação prévia e da não objeção, uma vez que havendo comunicação prévia e a não objeção, os terceiros Estados são obrigados, à luz da convenção, a conceder privilégios e imunidades.
Aliás, essa condição tida pelo STJ como absoluta, não resulta de boa leitura da convenção, de que só com consentimento do terceiro Estado se poderá reconhecer e conceder privilégios e imunidades ao enviado ou a missão especial. O nº 5 do mesmo artigo 42º da convenção encarrega-se de negar essa ideia quando estabelece que: “As obrigações de terceiros Estados nos termos dos parágrafos 1, 2 e 3 deste artigo também se aplicarão às pessoas mencionadas, respetivamente, nesses parágrafos, e às comunicações oficiais e às malas da missão especial, quando o uso do território do terceiro Estado é devido a força maior”. Ou seja, os terceiros Estados são obrigados a conceder privilégios e imunidades às entidades referidas nos nº 1,2, 3, do artigo 42º, na ausência de qualquer comunicação prévia ou não objeção, se o motivo invocado para entrar no território de terceiros Estado for de força maior.
No caso de Alex Saab, ele transitou pelas fronteiras de Cabo Verde forçado pelas autoridades cabo-verdianas, portanto foi numa situação que se poderá considerar, perfeitamente, de força maior: porque foi contra a sua vontade.
Importa sublinhar, ainda, que o artigo 42º da Convenção das Nações Unidas sobre Missões Especiais trata de “trânsito pelo território de um terceiro Estado” o que não era o caso em apreço.
Alex Saab não fez, e não tinha pretensão de transitar pelo território de Cabo Verde. O avião em que seguia fez escala, o que é completamente diferente da noção de trânsito. Escala e trânsito são conceitos, tecnicamente, diferentes em avião civil, e, provavelmente, não foi por acaso que o tratado fala em trânsito e não em escala.
Quando se faz escala, no caso para reabastecimento, o passageiro não sai do avião, portanto não é necessário visto e nem cumprimento de outras formalidades porque o passageiro não passa pela fronteira do país, e, consequentemente, ao terceiro Estado não é requerido a concessão de privilégios e imunidades, simplesmente, porque não há necessidade.
Mal e muito mal andou, ou anda, quem está a exigir o consentimento ou a comunicação prévia ao terceiro Estado da concessão de privilégios e imunidades ou o reconhecimento do estatuto de enviado especial a quem fez ou faz escalas em Cabo Verde.
É que, pelo andar da carruagem, qualquer dia, passa-se a exigir aos passageiros, cujo avião fizer escala por Cabo Verde, o visto de entrada ou de trânsito.
A falta de bom senso e o absurdo, com o devido respeito, devem ter limites.
Espera-se que o País, ainda, vá a tempo de salvar a face dessa grande “embrulhada” que alguns, teimosamente, não o querem ver de lá sair, e que a história lhes reservará um lugar, no rodapé da página desse triste e lamentável episódio.
Cada dia que passa torna-se cada vez mais insustentável a manutenção da prisão de Alex Saab por razões e fundamentos que o próprio Estado de Cabo Verde tem dificuldades em sustentar.
Não sou jurista, mas não sou analfabeto como gosta de dizer o Reinaldo Azevedo, um dos grandes jornalistas e liberal brasileiro, um acérrimo defensor da tese de que Lula foi condenado sem provas por Juiz Sérgio Moro, cuja evidência revelou-se com o “vazajato” onde um hacker conseguiu penetrar-se nos telemóveis de juízes e procuradores, e do seu conteúdo descobriu-se toda a trama orquestrada para acusar e prender um cidadão.
Seria um ato de coragem, prudência, lucidez e humildade que Cabo Verde considerasse os sinais vindos do Tribunal de Justiça da CEDAO, da Comissão dos Direitos Humanos da ONU e da própria Procuradoria Suíça e agisse no estrito respeito pelo Estado de Direito e pela justiça.
P.S.: Afinal, o Estado de Cabo Verde fez o que qualquer litigante faz quando perde numa sentença de tribunal: recorre.
Utilizando a figura de Moção, Cabo Verde apresentou, a 15 de abril passado, duas moções pedindo ao Tribunal de Justiça da CEDEAO que anulasse a sentença.
No dia 24 de junho, após a audiência ocorrida a 31 de maio, o Tribunal decidiu pela confirmação da sentença de 15 de março, declarando que não houve erro de cálculo de fusos horários com relação a receção de Alerta Vermelho da Interpol por Cabo Verde, e que esse aspeto não tem qualquer relação com a ilegalidade da prisão.
O tribunal declarou-se, ainda, competente, em termos de jurisdição para conhecer e decidir sobre a matéria em causa.
E agora?
O Estado de Cabo Verde vai continuar a declarar que não cumpre a decisão judicial?
A ver, vamos!
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Obras, autores e documentos consultados e citados:
1) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça – Acórdão Nº 28/2021
2) Acórdão do Tribunal de Justiça da CEDEAO - Acórdão Nº ECW/CCJ/JUD/07/21
3) Carta da Organização dos Estados Americanos
4) PUBLIC LAW 113–278—DEC. 18, 2014
5) Alena Douhan - Report of the Special Rapporteur on the negative impact of unilateral coercive measures on the enjoyment of human rights
6) Lei nº 6/VIII/2011, de 29 de agosto
7) Tratado Revisto da CEDEAO de 1993
8) Carta Africana dos Direitos do Homem
9) Código Processual Penal de Cabo Verde
10) Protocolo (A/P1/7/91)
11) Comunicado Final_30eme-Sommet-CEDEAO-Abuja-14-Juin-2006
12) Protocolo adicional (A/SP.1/01/05)
13) Comunicado Final_28eme-Sommet-CEDEAO-Abuja-19-Janvier-2005
14) Tratado de Viena sobre Direito dos Tratados
15) Convenção de Nova York sobre Missões Especiais
16) Constituição da República de Cabo Verde
17) Convenção das Nações Unidas contra Crime Organizado Transnacional
18) Luís P. Pereira Coutinho – Instituições Políticas Supranacionais: Algumas Notas
19) Eduardo Biacchi Gomes – A Supranacionalidade e os Blocos Económicos
20) José Cretella Neto – Teoria geral das organizações internacionais
21) Aline Beltrame de Moura – Organizações Internacionais de Natureza Supranacional e Intergovernamental – O Caracter Híbrido da União Europeia e a Inter-governamentabilidade do MECOSUL
22) Jorge Barcelar Gouveia e Francisco Pereira Coutinho (vários outros autores) – O Direito Internacional Público nos Direitos de Língua Portuguesa
23) Benfeito Mosso Ramos - Cabo Verde na CEDEAO – A hipótese de uma integração diferenciada
24) Kathleen Rocheteau Gomes Coutinho e Paulino Oliveira do Canto – Os Desafios da Política de Integração Regional e a Governação Multinível na Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental
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NdR: Esta é a segunda parte do artigo-análise de José António dos Reis, publicado ontem, que foi escrito num corpo só, mas que Santiago Magazine tomou a ousadia de o separar em dois devido à sua extensão. O anterior texto pode acessado aqui: Caso Alex Saab: Estado de Cabo Verde entre a Ambiguidade e a Esquizofrenia (Parte I)
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