Caso Alex Saab: Estado de Cabo Verde entre a Ambiguidade e a Esquizofrenia (Parte I)
Ponto de Vista

Caso Alex Saab: Estado de Cabo Verde entre a Ambiguidade e a Esquizofrenia (Parte I)

Escrevo este artigo um pouco desgostoso, melhor, com uma dor no coração, por o seu conteúdo ser um libelo acusatório contra o Estado de Cabo Verde, um país onde nasci, cresci e aprendi a amar. Não se trata de uma acusação, em particular, nem ao Governo, nem ao Presidente da República e nem ao Parlamento. Trata-se de uma acusação ao Estado de Cabo Verde, e consequentemente a todos os órgãos que compõem o Estado que intervieram diretamente ou se omitiram de intervir neste processo, cujo comportamento não foi pautado pelos princípios de justiça, de igualdade, de reciprocidade, de independência e de não ingerência nos assuntos internos de outros estados.

Sou de uma geração que viveu e sabe o que foi a dominação colonial, que conhece, porque passou por eles, o regime fascista e o de partido único. Sei quem nos ajudou nos momentos críticos e quem se posicionou contra a dominação estrangeira no nosso país.

Hoje, vivemos uma conjuntura complexa e de acelerada desumanização em que muitos se remetem ao silêncio, outros à indiferença, outros tantos ao tacticismo ou ao medo de desagradar o “grande tio”, e todos, de uma maneira ou outra, contribuindo para que a injustiça prevaleça e o mundo seja dominado pelos poderosos e prepotentes.

Por isso, não sou um cidadão indiferente e faço questão em não o ser, e procuro ser, na medida do possível, um cidadão atento, justo e imparcial, mas sobretudo, solidário com os mais fracos e com os oprimidos do mundo.

Sou e serei sempre contra a injustiça e a opressão, e no exercício/dever da minha cidadania sou obrigado a não ficar calado, mesmo que esta ousadia, nestes tempos de gestão de silêncios, tenha um custo: e pela minha liberdade e dignidade cidadã, estou disposto a pagar.

O caso Alex Saab é - ou transformou-se - num processo complicado, e qualquer que venha a ser o seu desfecho, o Estado de Cabo Verde vai sair mal na fotografia. A análise do caso não dispensa a apreciação de natureza política, jurídica e diplomática, tendo em consideração os atores envolvidos e os seus objetivos declarados e inconfessos. Só quem anda distraído, de forma deliberada ou circunstancial, irá abordar este facto como um simples caso de justiça, e sem mais: na realidade, isto tem de tudo, e de justiça, muito pouco.

Quem não respeita o direito internacional e que se acha investido de poderes para se intrometer nos assuntos internos de outros países, que pode impor sanções unilaterais, que se acha poder obrigar e a punir países que ousem contrariar essa política, que sanciona e persegue os dirigentes de outros estados, que não respeita a soberania de outras nações, quem faz isso, certamente, não se propugna e nem promove o direito e a justiça: faz a sua própria justiça, a justiça que lhe dá jeito em cada ocasião.

Há cerca de sete anos, a Venezuela é alvo de um conjunto de leis e decretos presidenciais dos Estados Unidos, visando o seu bloqueio económico, político e diplomático. Essas ações do governo americano visam interferir e operar mudança política naquele país, em confrontação clara com os princípios do direito internacional e com a própria Carta das Nações Unidas.

Rememorando alguns fatos: o bloqueio à Venezuela começou, oficialmente, em dezembro de 2014, quando o congresso dos Estados Unidos aprovou a Lei de Defesa dos Direitos Humanos na Venezuela nº 113-278, que previa a aplicação de sanções contra os venezuelanos; Em março de 2015, uma Ordem Executiva nº 13692  foi aprovada pelo governo americano, declarando a Venezuela como uma "ameaça para a segurança interna do Estados Unidos", criando, assim, artificialmente, sustentação jurídica para atacar a Venezuela sob diversas formas.  O mesmo procedimento é utilizado em 2019, invocando a ameaça à segurança interna, para se decretar uma nova ordem executiva, onde o governo americano impôs sanções económicas totais contra a Venezuela, congelando todos os seus bens nos Estados Unidos e proibindo transações com aquele país, com realce para a venda do petróleo.

Os impactos resultantes do bloqueio foram e são enormes, devendo-se destacar as chamadas retenções bancárias em que operações como ordem de pagamento, emitido por venezuelanos que demoravam em torno de 48 horas, passou a ser efetuada em 10 a 20 dias; multas a terceiros países que desenvolvessem comércio com a Venezuela; ou, ainda, a redução de captação de moedas estrangeiras que, em virtude do bloqueio, teve uma queda na ordem dos 99% nos últimos 5 anos (2015-2020).

Num país onde cerca de 80% do consumo interno é satisfeito com produtos importados, com quebras acentuadas de receitas e de divisas, o abastecimento nacional tornou-se um problema difícil, senão mesmo, uma questão, praticamente, insolúvel. É bom não esquecer que a Venezuela  ficou impedida de realizar transações internacionais com o dólar americano, o que aumentou os gastos com o cambio, estimados em mais de 20 mil milhões de dólares.

Acresce-se, ainda, o fato de o governo dos Estados Unidos ter sancionado mais de 100 entidades e pessoas ligadas ao governo venezuelano, para além de ter reconhecido, em 2019, o Juan Guaidó como presidente da Venezuela.   

As consequências dessa política de bloqueio para a Venezuela são catastróficas, tanto assim é que a relatora da ONU, Alena Douhan, especialista em direito internacional e direitos humanos e nomeada relatora especial para a Venezuela, em março de 2020, produziu um relatório onde afirma taxativamente que as sanções dos Estados Unidos têm efeitos devastadores na alimentação, saúde e educação da Venezuela. E em consequência recomendou que "Devem ser utilizados todos os mecanismos legais para permitir ao governo venezuelano restaurar seus projetos sociais e de desenvolvimento. Por isso, diz ela enfatizando: “a importância do diálogo, do Estado de Direito e o respeito aos direitos humanos entre os Estados"

Não restam dúvidas para ninguém de boa fé, que as sanções unilaterais impostas pelo governo americano são, manifestamente, ilegais. São ilegais ao abrigo da Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), violando, de forma grosseira, os artigos 19 e 20 do Capítulo IV desse instrumento internacional; elas, também, são ilegais a luz da legislação internacional de direitos humanos, estendendo-se essas violações aos tratados assinados pelos próprios Estados Unidos. Mais: as sanções impostas à Venezuela violam a própria legislação americana, cujo executivo, para contornar o controlo dos outros órgãos, evoca, engenhosamente, a "ameaça para a segurança interna dos Estados Unidos" para poder aprová-las e executá-las livremente.

Curioso é que, com todo esse alarido das autoridades americanas
à volta de lavagem de dinheiro por parte de Saab, um porta-voz da Procuradoria de Genebra declarou, em março passado, à agência de notícias espanhola Efe, que o processo aberto pela Suíça contra Saab, em 2018, foi arquivado por falta de provas.

Alex Saab era acusado de suposta lavagem de dinheiro, através de contas na Suíça, a mesma acusação, que os Estados Unidos de América lhe fazem, sem, no entanto, fazerem um mínimo de esforço para comprovar a origem ilícita do dinheiro.

A acusação das autoridades americanas de que Alex Saab teria branqueado 350 milhões de dólares, através do sistema financeiro norte-americano, tendo como origem do dinheiro eventuais contratos para construção de habitação social de baixo custo na Venezuela, e que este incumpriu, e cuja finalidade última era para pagar atos de corrupção de algumas instituições públicas venezuelanas, é vaga, imprecisa e de impossível comprovação, uma vez que a parte, aparentemente, lesada nunca afirmou que tal aconteceu. Curioso é que aparecem os Estados Unidos de América, julgando-se tutores da Venezuela, a determinar os procedimentos e a legalidade dos atos administrativos num país soberano, incluindo o cumprimento ou não de um contrato.

Trata-se de uma acusação estranha e de difícil comprovação, na qual se deita mão para se pôr de pé a sanha persecutória e policiesca de um estado que se julga dono ou proprietário de um outro estado; uma acusação de um estado que mesmo sem provar a corrupção, acusa e manda deter pessoas por lavagem do que não se conhece a origem lícita ou ilícita.

Ora bem, é com esse quadro de fundo que se deve analisar e tentar entender a investida dos Estados Unidos contra Alex Saab, que se insere numa estratégia que visa neutralizar a ele e a todos aqueles que ousem “furar” o bloqueio à Venezuela.

Ademais, o bloqueio é tido como instrumento fundamental da ação dos Estados Unidos da América, cujo fim último é derrubar o governo venezuelano, mesmo que em violação flagrante do direito internacional e em desrespeito pela soberania de outros estados.

Quem quiser arriscar-se a ser acusado de qualquer coisa, ou país que quiser ser sancionado ou multado, que ouse transacionar algo com a Venezuela ou tente furar o bloqueio.

É esta a realidade nua e crua, abstrair-se disso é simplesmente ignorar os mais basilares princípios da justiça, e quem quiser ser justo e imparcial, independentemente da simpatia ou não que possa nutrir pelo regime da Venezuela, não poderá ignorar o contexto e a envolvente dessa ação americana contra o Alex Saab, e não poderá ignorar esse facto evidente e notório que é a flagrante violação da soberania de um estado. Decorre dessa postura invasiva uma conclusão obvia: as motivações do governo americano para perseguir Alex Saab e a Venezuela são de natureza política, embora travestidas de razões e pretextos jurídicos. 

Quem persegue judicialmente uma pessoa por supostos 8 graves crimes cometidos, tenha habilidade, por conveniência tática, retirar 7 dos 8 graves crimes, apenas para viabilizar a extradição, é capaz de tudo. Por este “singelo” e significativo gesto poder-se-á ver a verdadeira relevância que se dá aos alegados crimes graves praticados. Assim, por esse andar, facilmente se poderia chegar ao ridículo, caso fosse necessário esse expediente para se obter a extradição, de os Estados Unidos aceitarem, sem pestanejarem, retirar todos os 8 crimes, para finalmente conseguirem a extradição, julgarem e condenarem o homem por nenhum crime cometido.

Eis mais um dos absurdos deste caso, qual “negócio da china”, que alguns querem apelidar de justiça.  

Assim, a perseguição política e as outras formas de coação são instrumentos a utilizar contra todos os dirigentes venezuelanos ou seus colaboradores que ousem, na atual situação de bloqueio, deixar o seu país, seja a que pretexto ou missão for, visando contornar ou desafiar as sanções impostas unilateralmente. A “eliminação” de cena de Alex Saab faz ou é parte integrante dessa estratégia de neutralização de todos os que se opõem à imposição de uma nova ordem na Venezuela.

 

Estado de Cabo Verde: Esquizofrenia I

 

Lamentavelmente, já decorreu um ano sobre o triste episódio ocorrido na ilha do Sal, a 12 de junho, onde um enviado especial de um país, com o qual Cabo Verde tem relações diplomáticas, e que até bem pouco, no quadro da cooperação, tinha estudantes nesse país, foi preso ilegal e arbitrariamente, dentro de uma aeronave não comercial, sem um mandado de captura.

Inicialmente, as autoridades cabo-verdianas deixaram transparecer que a prisão tinha sido efetuada por força de um alerta vermelho emitido pela Interpol. Com o questionamento de que o alerta vermelho só foi acionado a 13 de junho, um dia depois da prisão, passou-se a utilizar o argumento de que o pedido de detenção foi feito diretamente pelas autoridades americanas, mais concretamente pelo Tribunal Distrital da Flórida, e que as autoridades cabo-verdianas agiram ao abrigo dos dispostos nos artigos 3º e 4º da Lei nº 6/VIII/2011, de 29 de agosto.

Convém, a título de exemplo, recordar as afirmações, numa entrevista à televisão pública cabo-verdiana, do então ministro dos Negócios Estrangeiros de Cabo Verde, onde dizia que “o governo não está a tomar nenhum partido. Absolutamente, não estamos a tomar nenhum partido. Como membro da Interpol, a PJ cumpriu um mandato de forma legal e entregou o Saab à justiça que mandou efetivar a prisão”.

As afirmações do ministro não deixavam dúvidas: a prisão de Alex Saab foi desencadeada a partir do pedido da Interpol, e as autoridades policiais cabo-verdianas, apenas, cumpriram com as suas obrigações, enquanto suposto membro dessa organização.

Na verdade, afinal Cabo Verde nem membro de pleno direito da Interpol é, como ficou demonstrado ao longo do processo, uma vez que não cumpriu as formalidades exigidas para que pudesse invocar a condição de membro dessa organização internacional.

Esse argumento de membro da Interpol, exibido na televisão pública pelo ministro dos Negócios Estrageiros, foi utilizado no Tribunal de Justiça da CEDEAO, com um detalhe: a data que aparece no alerta vermelho, dia 13 de junho, é justificado com o fuso horário entre Lyon e Praia. Confrontado pelo Tribunal, não houve como provar a teoria do fuso horário, e o Tribunal acabou por não aceitar, como válida, a justificação do Estado de Cabo Verde.

Quanto ao pedido de detenção de Alex Saab a Cabo Verde por parte do Tribunal Distrital da Flórida, no acórdão do Tribunal de Justiça da CEDEAO não se faz referência a uma data precisa quanto à sua formulação. A precisão da data do pedido é relevante para o caso, porque permite perceber certas dinâmicas relacionadas com o momento da detenção, tendo presente que Saab não vive em Cabo Verde, e, consequentemente, não era aqui procurado.  

Não residindo em Cabo Verde, é legítimo indagar-se: como é que as autoridades americanas e o Tribunal Distrital da Flórida tiveram conhecimento da presença de Alex Saab no nosso país para que pudessem, em tempo útil, emitir o pedido de detenção?

O pedido a Cabo Verde pelas autoridades americanas, em bom rigor lógico, só podia acontecer, se, e só se, tivessem conhecimento que a pessoa procurada estava em Cabo Verde. Ora, se sim, por que vias e canais tiveram acesso à informação que a pessoa procurada estava em Cabo Verde, sendo certo que o homem nem saiu da aeronave em que viajava e, muito menos, atravessado a nossa fronteira?

Importa, ainda, averiguar de que forma as autoridades cabo-verdianas tiveram conhecimento que Alex Saab viajava, exatamente, naquele avião, naquele dia e hora para o nosso país, uma vez que a Venezuela não comunicou às autoridades cabo-verdiana sobre a passagem do seu enviado especial por nosso território.

Hoje sabe-se que a aeronave não tinha, sequer, previsto fazer a escala técnica em Cabo Verde, tendo o piloto solicitado a autorização de aterragem para reabastecimento em alguns países da região, e estes reagiram negativamente. Parece que Cabo Verde foi trabalhado para ser o destino perfeito para que pudesse vir a acontecer o que, na realidade, aconteceu.

Importa-se, pois, saber o seguinte: quem informou e instruiu Cabo Verde a cometer tamanha façanha às 21.30 horas do dia 12 de junho, entrando num avião não comercial, sem mandado, para prender uma pessoa, numa missão especial de um Estado com o qual Cabo Verde tem relações diplomáticas?

O Estado de Cabo Verde terá de dizer como soube que naquele avião e naquele dia e hora estava a chegar ao país o Alex Saab, pois, está provado que não foi via Interpol. É mais que evidente que não foi via Tribunal Distrital da Flórida pela simples razão de Alex Saab não residir em Cabo Verde. Também não foi por parte da Venezuela que só revelou a Cabo Verde a presença do seu enviado especial no dia seguinte à sua detenção. Resta uma hipótese e talvez a mais verosímil: será que foi através dos serviços secretos e de espionagem americanos que estavam, tudo leva a crer que sim, a monitorar o avião desde da Venezuela até chegar a Cabo Verde?

E uma pergunta fica no ar para ser respondida por quem de direito: qual é a entidade homóloga em Cabo Verde que troca informações com os serviços secretos e de espionagem americanos? A Polícia judiciária não é! A Policia de Ordem Pública muito menos! Qual é essa entidade? Quem poderá investigar isso para que a opinião pública fique e seja esclarecida?

A duplicidade de postura de Cabo Verde deixa transparecer, contudo, que nem tudo estava, suficientemente, ensaiado para que houvesse uma linha discursiva norteadora, com a necessária coerência, que pudesse conferir ao discurso produzido a indispensável lógica e credibilidade como mais a frente veremos.

Um Estado sério e respeitável não usa truques e artimanhas para fazer valer a sua posição, deve dar-se ao respeito para que seja respeitado como tal.

Esses questionamentos e a ausência de respostas sérias e credíveis só sugerem uma coisa: parece que estamos perante um processo político, travestido de matéria jurídica, com claros contornos de perseguição política e com articulação a diferentes níveis e comandos.

 

Estado de Cabo Verde: Esquizofrenia II

 

A ambivalência do Estado de Cabo Verde perpassa todo o processo que, diga-se de passagem, foi muito mal conduzido.

Bem ou mal, Cabo Verde decidiu jogar em dois tabuleiros. Um, no plano interno e, outro, no externo, com equipas diferentes e com porta-vozes e discurso também diferentes.

Demandado no Tribunal de Justiça da CEDEAO, o Estado de Cabo Verde participou, normalmente, no processo, não questionou a competência do tribunal em nenhum momento, portanto, aceitou a sua jurisdição, defendeu-se das acusações que lhe eram imputadas e justificou os motivos da sua atuação. Do julgamento sai-se condenado, e obrigado a libertar o Alex Saab e a pagar-lhe uma indemnização.

O curioso é que, em momento nenhum, no Tribunal de Justiça da CEDEAO, Cabo Verde invocou a incompetência do tribunal, a inaplicabilidade do protocolo adicional de 2005 e, muito menos, afirmou não reconhecer a jurisdição do tribunal na matéria.

Cabo Verde, como demandado, cumpriu e participou na plenitude em todas as fases do processo, e como qualquer litigante num processo judicial podia sair a ganhar ou a perder. Acabou por perder, e devia portar-se com verticalidade e honradez, o que acabou por não acontecer.

Já no plano interno, surpreendentemente, surge um outro Estado de Cabo Verde. Este não reconhece a competência do Tribunal da CEDEAO, em matéria de Direitos Humanos, com argumentos de Cabo Verde não ter assinado e ratificado o protocolo adicional que atribuiu essas competências ao tribunal. Decidiu, de forma solene e unilateral, por não cumprir as decisões do tribunal, onde esteve presente e litigou como parte, e só não cumpriu a decisão porque a sentença não lhe foi favorável.

Este posicionamento em não acatar a decisão do Tribunal de Justiça da CEDEAO é protagonizado pelo Procurador geral da República que, numa entrevista à saída do Palácio Presidencial, afirmou: “Se o tribunal não tem competência, não pode decidir sobre esta questão... Reparem que neste processo que correu termos no Tribunal da CEDEAO, não foi o poder judicial que interveio como parte, foi o governo. E se quem foi parte no processo é governo, não se pode dizer que o demandado tem que colocar a pessoa em prisão domiciliar. Quem faz isso é o tribunal”. Acrescentou, ainda, para que Cabo Verde estivesse sujeito à jurisdição da CEDEAO era necessário que tivesse havido assinatura e ratificação do protocolo, o que nunca aconteceu.

Esta reação do PGR foi em relação à primeira decisão do tribunal, que ordenou a colocação de Alex Saab em regime de permanência no domicílio, mas a sua posição quanto à incompetência do tribunal manteve-se inalterada, mesmo depois da segunda decisão desse tribunal.

Convém sublinhar que o Ministério Público, nos termos do nº 2 do artigo 225º da Constituição da República, representa o Estado, e com devida vénia, as afirmações do Procurador da República nas quais projeta um Estado de Cabo Verde bicéfalo ou tricéfalo não cola com a definição e o conceito de Estado.

Quem foi demandado no Tribunal de Justiça da CEDEAO, não foi o governo e nem o judiciário cabo-verdiano, foi o Estado de Cabo Verde.

O Estado de Cabo Verde é uno, com estrutura própria e politicamente organizado, onde existe a separação e interdependência de poderes, podendo ser representado no plano externo pelo governo ou pelo presidente da República, mas sempre em nome do Estado no seu todo. A vinculação do Estado a tratados e acordos internacionais faz-se com a participação dos diferentes orgãos de soberania, nomeadamente, governo que adere ou aprova, parlamento que ratifica e presidente da República que promulga, exatamente para evitar a noção e o comportamento bicéfalo ou tricéfalo do Estado face aos compromissos internacionais.

Quem está vinculado à CEDEAO não é o governo, é o Estado de Cabo Verde. Quem é membro da CEDEAO não é o governo, é o Estado de Cabo Verde.  

O que se verifica, claramente, é que os orgãos integrantes do Estado de Cabo Verde não se articularam, adequadamente, no processo Alex Saab, pois, só assim se explica essa “cacofonia” comunicacional ou cisão de “personalidade” do Estado. Ainda está por explicar por qual motivo o Ministério Público não defendeu ou coordenou a defesa do Estado de Cabo Verde no Tribunal de Justiça da CEDEAO, enquanto entidade pública que representa o Estado, conforme a Constituição, onde teria a oportunidade única de questionar a competência e jurisdição do tribunal, no presente caso, e, porventura, onde faria valer a sua tese.

Invocar o princípio de separação de poderes, para incumprir uma decisão judicial em que o Estado de Cabo Verde é condenado, é uma inovação, a todos os títulos notável, do direito internacional público, sobretudo pelo argumentário de que quem foi demandado teria sido o governo e não o poder judicial, e, portanto, este não é obrigado a cumprir.

Cabo Verde vinculou-se ao Tratado Revisto da CEDEAO em 1993, na altura representado pelo primeiro-ministro, tendo aprovado, livremente, algumas normas importantes desse instrumento jurídico comunitário, nomeadamente:

O preâmbulo do tratado onde vem essa preciosidade: “CONVAINCUS que l'intégration des Etats Membres en une Communauté régionale viable peut requérir la mise en commun partielle et progressive de leur souveraineté nationale au profit de la Communauté dans le cadre d'une volonté politique collective“;

O artigo 15 que cria o Tribunal de Justiça da CEDEAO e lhe confere poderes nos quais “Les arrêts de la Cour de Justice ont force obligatoire à l'égard des Etats Membres, des Institutions de la Communauté, et des personnes physiques et morales.”;

O nº 4 do artigo 9º do Tratado Revisto que atribui às decisões das Conferências de Chefes de Estado e de Governo o caráter vinculativo “Les décisions de la Conférence ont force obligatoire à l'égard des Etats Membres et des Institutions de la Communauté”;

O nº 6 do artigo 9 do mesmo Tratado Revisto que estabelece “Ces décisions sont exécutoires de plein droit soixante (60) jours après la date de leur publication dans le Journal Officiel de la Communauté”, bem como a aceitação pelo Estado de Cabo Verde de disposições previstas no nº 7 do mesmo artigo que estabelece a obrigação “Chaque Etat membre public les mêmes décisions dans son Journal Officiel dans les délais prévus”.

Houve uma mudança significativa na organização e funcionamento da CEDEAO que, ao que tudo indica, passou despercebida em Cabo Verde, navegando as autoridades nacionais um pouco ao sabor da maré, e onde se notava a ausência de uma instância nacional que tivesse o domínio, conhecimento e experiência em questões relacionadas com a CEDEAO para que o país pudesse seguir e vincular-se ou não a determinadas decisões dessa instância comunitária.

Numa Conferência de Chefes de Estado e de Governo realizada, a 14 de junho de 2005, em Abuja, em que Cabo Verde esteve presente, através do diretor-geral da Política Externa do Ministério dos Negócios Estrangeiros, provavelmente investido de plenos poderes, em representação do presidente da República, tomaram-se decisões importantes no quadro da reforma da CEDEAO, designadamente:

a)      Transformação do Secretariado Executivo da CEDEAO em Comissão da CEDEAO, bem como a adoção de um novo regime jurídico para os Atos Comunitários. Até essa altura, só os Protocolos e as Convenções eram vinculativos para os Estados-membros;

b)      Os Atos Comunitários tornam-se Atos adicionais, Regulamentos, Diretivas, Decisões, Recomendações e Pareceres.

Deste modo, a Conferência passa a ter poderes para alterar o Tratado, através de Atos Adicionais e não através de Protocolos adicionais e os Atos Adicionais são vinculativos para os Estados-membros, assim como para as Instituições Comunitárias.

O Conselho de Ministros tem o poder de promulgar Regulamentos e Diretivas, tomar Decisões e emitir Recomendações. Os Regulamentos e as Diretivas são vinculativas e diretamente aplicáveis para os Estados-membros, assim como para as Instituições Comunitárias;

c)      A Conferência acordou, ainda, no sentido de após a segunda legislatura, o Parlamento da CEDEAO passar a ser composto por parlamentares eleitos por sufrágio universal e direto e que passariam a exercer poderes legislativos em áreas específicas.

Enquanto a CEDEAO se transforma e se mune de novos instrumentos de caráter supranacional, intramuros, distraidamente, brinca-se à soberania dos tempos de Estado-nação, num nacionalismo retrógrado, e, nalguns casos, reacionário. 

 

Acórdãos e Desacordos

 

O Estado de Cabo Verde transformou-se, voluntária ou involuntariamente de cooperante no processo judiciário internacional em parte ativa, senão mesmo, o principal interessado no processo acusatório contra o Alex Saab.

Praticamente, todas as intervenções da defesa foram no sentido de contrariar a atuação das autoridades cabo-verdianas: começando pela detenção no dia 12 de junho, passando pelo estatuto de enviado especial, condições de tratamento enquanto prisioneiro, entre outas situações, postura reiterada em vários momentos e situações, o que levou a defesa de Alex Saab a procurar justiça em outras instâncias como o Tribunal de Justiça da CEDEAO ou o Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas.

Cabo Verde, assumindo o papel de principal acusador, deixou as autoridades americanas como simples espectador no processo. Tanto assim é que nem tiveram, ao que parece, a necessidade de acionar o disposto no artigo 47º da Lei da Cooperação Judiciária internacional em matéria penal para se fazerem representar e participar do andamento do processo. Tinham e tem Cabo Verde como parte ativa no processo e, simplesmente, estão ou ficaram tranquilos! 

Os acórdãos proferidos por duas instâncias jurisdicionais sobre o mesmo processo deverão ser motivo de reflexão, tanto mais que estamos perante decisões de órgãos judiciais colegiais das mais altas esferas, o que faz acreditar que na decisão fez-se a necessária ponderação de vários valores em jogo. Considerando a relevância dessa decisão, cujas consequências podem fazer justiça ou destruir a vida pessoal e familiar de uma pessoa, os decisores deveriam, necessariamente, fazer presente aquela máxima: é preferível ter um criminoso em liberdade do que um inocente condenado e privado de liberdade.

Dos dois acórdãos há a destacar alguns aspetos que nos parecem de especial relevância, nomeadamente: a legalidade ou ilegalidade da prisão, a vinculação ou não de Cabo Verde às decisões do Tribunal da CEDEAO e o estatuto de enviado especial.

 

A - Da legalidade ou ilegalidade da prisão: 

Ao discorrermos sobre o acórdão do Tribunal de Justiça da CEDEAO ficam poucas dúvidas que a prisão foi ilegal e arbitrária.

Nesse acórdão, em que a relatora foi, exatamente, uma juíza cabo-verdiana e ex-ministra da Justiça no nosso país, o Estado de Cabo Verde alegou que deteve Alex Saab a pedido dos Estado Unidos de América, mais, concretamente, à solicitação do Tribunal Distrital da Flórida. Acrescentando que a detenção foi feita com base nos princípios gerais de assistência mútua internacional em matéria judicial, e em cumprimento do disposto nos artigos 3º e 4º da Lei Nº 6/VIII/2011, de 29 de agosto de Cabo Verde.    

Não tendo sido provado que a detenção de Alex Saab foi com base no Alerta Vermelho da Interpol, uma vez que no momento da detenção as autoridades cabo-verdianas não provaram que tinham na sua posse qualquer pedido dessa entidade, e, sendo assim, o tribunal chega a uma conclusão inevitável: Cabo Verde agiu sem autoridade da INTERPOL para deter o Alex Saab no dia 12 de junho, e, por esse facto, a detenção foi ilegal, por contrariar o disposto no artigo 6º da Carta Africana dos Direitos do Homem.

Mas o acordão do Tribunal de Justiça da CEDEAO não se limitou a analisar a intervenção de Cabo Verde, apenas, na perspectiva de um eventual pedido da Interpol. Tendo sido anexado por Cabo Verde ao processo, aquilo que se poderia chamar de Alerta Vermelho, datado de 13 de junho, nesse documento está escrito que “Este pedido será tratado como um pedido formal de prisão provisória, de acordo com os tratados nacionais e/ou bilaterais e multilaterais aplicáveis”, ou seja a detenção baseada em Alerta Vermelho deve obedecer às leis nacionais e/ou acordos bilaterais ou multilaterais aplicáveis.

O Tribunal de Justiça da CEDEAO fez uma análise pormenorizada da legislação nacional, desde logo a Lei Nº 6/VIII/2011 que estabelece que o processo de extradição pode-se fazer por duas vias: ou por detenção antecipada ou prisão provisória, cujo pedido terá de ser formalmente apresentado pela entidade requisitante ou por detenção não diretamente solicitada realizada pelas autoridades de polícia criminal nacional.

Cabo Verde invoca que deteve Alex Saab com base nos princípios gerais de assistência mútua internacional em matéria judicial e em cumprimento do disposto nos artigos 3º e 4º da Lei Nº 6/VIII/2011. Não tendo Cabo Verde acordo bilateral de extradição com os Estados Unidos de América, não há bases para sustentar a assistência mútua entre os dois países, restando como a única saída de amparo o recurso à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional.

Após uma análise aprofundada dos artigos da Lei, já citada, e dos artigos pertinentes do Código Processual Penal, o Tribunal de Justiça da CEDEAO concluiu, também neste ponto, que a detenção e prisão de Alex Saab “não cumpriu as formalidades exigidas pelas disposições dos artigos 268 e 269 do Código Processual Penal, pelo que a prisão foi ilegal e arbitrária”. 

Já no acordão do Supremo Tribunal de Justiça de Cabo Verde, não se deu relevância jurídica ao facto de o Alerta Vermelho da Interpol ter ocorrido após a prisão do Alex Saab, mesmo sendo público e notório que as autoridades cabo-verdianas, num primeiro momento, afirmaram que a detenção do venezuelano foi feita com base num Alerta Vermelho da Interpol, aliás como foi confirmado por Alex Saab, perante o juiz que validou a prisão, onde este diz taxativamente, citado no acordão, “informaram que havia um mandado de detenção da Interpol contra ele, embora não lho tenham mostrado, e depois disseram-lhe o motivo da sua detenção”.

E é isso que exige a Lei?

Mais à frente ver-se-á, claramente, que não!

O Supremo Tribunal de Justiça não deu grande valor jurídico ao facto de Cabo Verde não ser membro de pleno direito da Interpol, valorou o fato dessa cooperação poder fazer-se sem que Cabo Verde esteja formalmente vinculado a essa organização, bastando que haja interesse por parte de Cabo Verde em fazer uso desse importante instrumento para que as autoridades ajam, sem que seja necessária nenhuma vinculação formal com essa entidade internacional.

Para justificar a detenção e a sua legalidade, o Supremo Tribunal de Justiça foi buscar o artigo 39º da Lei da Cooperação Judiciária internacional em Matéria Penal que prevê a figura de “Detenção não diretamente solicitada”, norma que permite as autoridades da polícia criminal “efetuar nos termos da lei processual penal vigente, a detenção de indivíduos que, segundo informações oficiais, designadamente da Interpol, sejam procurados por autoridades competentes estrangeiras para efeito de procedimento ou de cumprimento de pena por factos que notoriamente justifiquem a extradição”.

Como se pode ver do normativo que permite a detenção pelas autoridades da polícia criminal, há, claramente, uma exigência legal para evitar a arbitrariedade: a diligência deve ser efetuada nos termos da lei processual penal vigente, tudo que seja fora desse quadro é, necessariamente, ilegal.

Ora, no momento da detenção, as autoridades policiais cabo-verdianas disseram ao Alex Saab que tinham um mandado da Interpol e que a detenção era com base nesse documento, instrumento esse que nunca chegaram a exibir.

Como ficou bem vincado no acórdão do Tribunal de Justiça da CEDEAO, “a detenção efetuada nos termos do nº 3 do artigo 269º do Código Processual Penal de Cabo Verde, não dispensa a confirmação imediata por mandado, em conformidade com o nº 2 do mesmo artigo”, para acrescentar que “mesmo quando a detenção é solicitada por meios de telecomunicações, ela deve ser efetuada por mandado, que deve ser elaborado em três vias, assinado por uma autoridade judiciária ou judicial e deve conter a identificação da pessoa alvo a quem deve ser entregue uma cópia do referido mandado de detenção”.  

O Tribunal de Justiça da CEDEAO vai mais longe, recorre aos artigos 150º e 151º do Código Processual Penal de Cabo Verde, que permite que determinadas irregularidades de detenção sejam sanadas, para chegar a conclusão seguinte: o incumprimento das normas legais por parte das autoridades cabo-verdiana não é de natureza processual, mas sim de substância, e consequentemente, citamos o acórdão: “a execução de uma detenção sem mandado válido como neste caso, sendo um ato ilegal, não pode tal ilegalidade ser suprida pelas disposições referidas”. 

Um posicionamento fundamentado para refletir! 

O mesmo tipo de abordagem teve o Supremo de Tribunal de Justiça quando confrontado pela defesa com o facto de Cabo Verde não ter concluído o processo de ratificação da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, instrumento legal internacional, invocado pelas autoridades nacionais para dar cobertura à investida contra Alex Saab, isto tendo em consideração que Cabo Verde não tem acordo de extradição com os Estados Unidos de América.

O Supremo Tribunal, sem que a parte oponente o tivesse invocado, socorreu-se de uma norma do Tratado de Viena sobre o Direito dos Tratados, mais concretamente, o artigo 27º que diz “Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”, para inviabilizar as pretensões da defesa.

Contudo, a questão que se coloca é de saber se Cabo Verde, não tendo concluído o processo de ratificação da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, pode considerar-se parte deste mesmo tratado. É o próprio Tratado de Viena sobre o Direito dos Tratados no seu artigo 2º que define uma "parte" “como um Estado que consentiu em se obrigar pelo tratado”, pelo que, salvo melhor entendimento, parece que o artigo 27º se aplica às partes do tratado e não a terceiros estados, pois, só assim se entende a relação estabelecida com o artigo 46º do mesmo tratado. 

Não sendo Cabo Verde parte de pleno direito desse tratado, parece que o artigo 27º não se aplica, com devida vénia, ao caso em apreço.

Em conclusão, parece que a prisão de Alex Saab foi e é, claramente, ilegal.

 

B - Vinculação ou não de Cabo Verde às decisões do Tribunal da CEDEAO?

Para começar, importará citar, novamente, aqui e agora, o nº 4 do artigo 15º do Tratado Revisto de 1993 que substituiu o de 1975: “Les arrêts de la Cour de Justice ont force obligatoire à l'égard des Etats Membres, des Institutions de la Communauté, et des personnes physiques et morales“. Trata-se de uma norma imperativa e que não oferece dúvidas de interpretação, consagrada no Tratado Constitutivo da CEDEAO. O tratado, no que tange ao estatuto, função, competências, procedimentos e outras questões relacionadas com o Tribunal de Justiça, remeteu a sua definição para protocolo adicional.

Assim, foi aprovado o protocolo A/P1/7/91, com participação e assinatura de Cabo Verde, que definiu a composição, competências, procedimento e outras matérias relacionadas com o Tribunal de Justiça da CEDEAO.

Em 2005, através do protocolo adicional A/SP.1/01/05, fez-se revisão do protocolo A/P1/7/91, introduzindo algumas novas competências ao tribunal e alterando certos artigos que faziam referências aos articulados do tratado de 1975. Cabo Verde, ao que parece, não esteve presente e nem assinou o protocolo A/SP.1/01/05, consequentemente, não o ratificou.

Desconhece-se, de todo, as razões porque Cabo Verde não compareceu à Conferência dos Chefes Estado e de governo, sendo mais que certo, enquanto membro de pleno direito da conferência, que recebeu a convocatória e agenda dos trabalhos;

Como, também, se desconhecem os motivos porque Cabo Verde não assinou e nem ratificou o protocolo adicional A/SP.1/01/05, sendo certo que, até ao despoletar do caso Saab, nunca se pronunciou contra o referido protocolo;   

Não há informação com relação à participação de Cabo Verde nos trabalhos preparatórios, especialmente, na elaboração e consensualização da proposta de protocolo que foi discutida e aprovada na conferência. Como é sabido, e é da boa prática, esses documentos quando chegam à conferência, os pontos essenciais já estarão acordados, servindo a reunião, apenas, para a sua ratificação.

Cabo Verde em nenhum momento do processo de elaboração e aprovação do protocolo apresentou qualquer objeção e, muito menos, “reservas” em relação a qualquer das suas normas.

Cabo Verde não rejeita o protocolo e nem se opôs ao seu conteúdo, apenas, afirma que não o ratificou. Este é o grande argumento de Cabo Verde para se achar desvinculado da decisão do Tribunal de Justiça da CEDEAO: simplesmente pelo fato de não ter assinado e ratificado, sem nenhuma explicação plausível, o protocolo de 2005.

O que poderia parecer uma opção soberana, se afigura simplesmente como um grande desleixo face às suas obrigações como membro de uma comunidade.

Cabo Verde comprometeu-se e assumiu algumas obrigações, no âmbito do Tratado Revisto, e aceitou, nomeadamente que:

a)      As decisões do Tribunal de Justiça da CEDEAO como vinculativas (nº 4 do artigo 15º do tratado);

b)      As decisões da Conferência dos Chefes de Estado e de Governo como vinculativas (nº 4 do artigo 9º do tratado);

c)      60 dias após a publicação no Jornal Oficial da Comunidade, as decisões são executórias de pleno direito (nº 6 do artigo 9º);

d)      Cada Estado-membro deve publicar as mesmas decisões no seu jornal oficial nos prazos previstos no nº 6 do mesmo artigo; 

e)      Cada Estado-membro deve comprometer-se a tomar todas as medidas adequadas, de acordo com os seus procedimentos constitucionais, para assegurar a promulgação e divulgação dos textos legislativos e regulamentares necessários à aplicação do disposto no presente tratado (nº 2 do artigo 5º);

f)       Cada Estado-membro compromete-se a honrar as obrigações que lhe incumbem por força do presente tratado e a respeitar as decisões e regulamentos da comunidade (nº 3 do mesmo artigo).

A decisão da conferência, que aprovou o Protocolo Adicional (A/SP.1/01/05), teve lugar em Acra, Gana, a 19 de janeiro de 2005, e nela, consta do Comunicado Final o seguinte: 

… o protocolo relativo ao Tribunal de Justiça (o de 1991) não dotou o tribunal de poderes consequentes, visando contribuir de maneira adequada à aceleração do processo de integração regional. Em consequência, a conferência alterou o referido protocolo.

O protocolo alterado permite ao tribunal dirimir os conflitos decorrentes da interpretação e de aplicação de atos adicionais ao tratado, decisões, regulamentos e diretivas das instituições competentes. Esta alteração permite aos indivíduos e às pessoas morais de procurar reparação junto do tribunal. Esta alteração estabelece, igualmente, um procedimento de execução e de respeito pela decisão do tribunal”.

Este foi o teor da decisão da Conferência de Acra, sobre o Protocolo Adicional (A/SP.1/01/05) que, como já vimos, é vinculativa, nos termos do Tratado Revisto de 1993.

E o que fez Cabo Verde face a esta decisão?

Durante os 16 anos que este protocolo já vigora, e faz parte integrante do tratado e das competências do tribunal, Cabo Verde manteve-se impávido e sereno, não utilizou nenhum dos instrumentos que os tratados facultam para fazer valer a sua eventual e desconhecida oposição. Cabo Verde não declara objeção, não coloca reservas, não pede suspensão dessa parte do tratado e limita-se, quando confrontado com uma decisão desfavorável do tribunal, a usar esse argumentário de mau perdedor: o protocolo não foi assinado nem ratificado, portanto a decisão do tribunal não nos vincula.

Cabo Verde não tendo comunicado à CEDEAO a sua oposição, que seria legítima, a essa parte do tratado em vigor, entra, claramente, em incumprimentos das suas obrigações assumidas, de forma solene, quando aceitou o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 5º do Tratado Revisto.

Importa realçar que o tratado da CEDEAO revisto, nas disposições transitórias e cláusula de salvaguarda, no nº 1 do artigo 92º, estabelece que “Dès l'entrée en vigueur du présent Traité révisé, conformément aux dispositions de l'article 89, les dispositions de la Convention des Nations Unies de Vienne sur le Droit des Traités Internationaux adoptée le 23 Mai 1969 s'appliquent à la définition des droits et obligations des Etats Membres aux termes du Traité de la CEDEAO de 1975 et du présent Traité révisé“.  

Ora, sendo assim, nesta matéria de vinculação, tem todo o cabimento a invocação do artigo 27º do Tratado de Viena sobre Direito dos Tratados que diz: “Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”.

E se conjugarmos o disposto no artigo 27º com o 45º do mesmo tratado, quando estabelece que “Um Estado não pode mais invocar uma causa de nulidade, de extinção, de retirada ou de suspensão da execução de um tratado, com base nos artigos 46 a 50 ou nos artigos 60 e 62, se, depois de haver tomado conhecimento dos factos, esse Estado:

b) em virtude de sua conduta, deva ser considerado como tendo concordado em que o tratado é válido, permanece em vigor ou continua em execução, conforme o caso”, fica evidente que Cabo Verde transmitiu, a todos, a ideia que não tinha nada contra essa parte do tratado.

A conduta de Cabo Verde, durante esses 16 anos, face a uma decisão que foi pública e notória, e não o tendo formalmente contestado por meios adequados, quer antes e quer depois da sua entrada em vigor, só pode ser entendida como tendo, implicitamente, concordado (e seria gravíssimo que Cabo Verde argumentasse que desconhecia a decisão de alargar a competência do tribunal), sendo o argumento de não vinculação ao tratado, um mero expediente ou manobra para se deixar de cumprir a decisão desfavorável do Tribunal de Justiça da CEDEAO.

Usando a gíria popular: QUEM CALA, CONSENTE. 

Assim, tomando de empréstimo os argumentos do Supremo Tribunal de Justiça, quando rebateu os argumentos da defesa, relativamente ao facto de Cabo Verde não ter concluído o processo de ratificação da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, o STJ, nessa ocasião, apoiou-se numa norma do direito internacional para derrubar os intentos da defesa.

O STJ, então, sustentou que “o artigo 27º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, norma que tem a natureza de direito internacional costumeiro, como é consensualmente admitido, fazendo, por conseguinte, parte da ordem jurídica cabo-verdiana, nos termos do artigo 12, nº 1, da Constituição da República” dava cobertura legal às pretensões das autoridades cabo-verdianas para deter o Alex Saab. Para concluir a sua fundamentação, o STJ afirmava, ainda, de forma lapidar: “Assim sendo, a falta de publicação do aviso de ratificação do tratado em referência, podendo condicionar a eficácia desse instrumento jurídico, não pode, contudo, ser invocado como fundamento pelo Estado de Cabo Verde, nisso incluindo as suas instituições judiciárias, para se eximir às obrigações para com outra parte contratante”, claro está, por força do disposto no artigo 27º da convenção.  

Paradoxalmente, este mesmo argumento não foi invocado pelo Supremo Tribunal de Justiça para demonstrar a vinculação do Estado de Cabo Verde às decisões do Tribunal de Justiça da CEDEAO, por força das disposições contidas quer no Tratado Revisto quer na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados o que deixa pressupor, aparentemente, um entendimento um tanto ou quanto dúbio, para não lhe chamar de tendencioso.

Convém fazer uma diferenciação entre um Estado que subscreve ou aprova um tratado aberto a todos os países, de um Estado que é parte integrante ou membro de uma organização que produz um tratado. O que é discutido e decidido numa organização a que um Estado pertence diz respeito a esse mesmo Estado, que tem ao seu dispor mecanismos para propor, alterar, suspender a aplicação, não aceitar ou promover outras diligências para fazer valer a sua vontade e não o recurso(?) a via do silêncio.

A sensação com que se fica, é que muitos veem a CEDEAO como algo exterior a Cabo Verde, como se fosse um corpo estranho e distante lá pela “costa africana”, quando, a bem da verdade, Cabo Verde é parte integrante dessa comunidade, detendo os mesmos direitos e obrigações que qualquer outro membro em pleno gozo dos seus direitos.

Retomando a apreciação das decisões do Supremo Tribunal de Justiça, na esteira dos seus posicionamentos anteriores, também rejeitou a pretensão da defesa quando esta invocou o nº 3 do artigo 12º da Constituição da República de Cabo Verde, bem como o nº 2 do artigo 210º, também da constituição, para demonstrar que as decisões do Tribunal de Justiça da CEDEAO são vinculativas para Cabo Verde.

Antes de mais, o que dizem os dois artigos da constituição?

O nº 3 do artigo 12 diz que “Os atos jurídicos emanados dos órgãos competentes das organi­zações supranacionais de que Cabo Verde seja parte vigoram diretamente na ordem jurídica interna, desde que tal esteja estabelecido nas respetivas convenções constitutivas” e o nº 2 do artigo 210 refere que “A Justiça é também administrada por tribunais instituídos através de tratados, convenções ou acordos internacionais de que Cabo Verde seja parte, em conformidade com as respetivas normas de competên­cia e de processo”.  

Duas normas que mostram a abertura constitucional do Estado de Cabo Verde para rececionar na sua ordem jurídica interna as decisões emanadas das instâncias judiciais internacionais de que Cabo Verde faça parte.

Os argumentos utilizados para a rejeição da sua aplicabilidade pelo STJ foram que, num caso, o caráter não supranacional da CEDEAO e, no outro, que se impõe “o reconhecimento da justiça administrada por tais tribunais do consentimento do Estado de Cabo Verde quanto às regras definidoras da respetiva competência e de processo”.

O STJ, para fundamentar a sua decisão, socorre-se do Prof. Doutor José de Pina Delgado, atual juiz do Tribunal Constitucional de Cabo Verde, indo buscar as doutas explicações sobre a questão, onde diz nomeadamente que “para efeitos da constituição cabo-verdiana, a CEDEAO não é uma organização supranacional, uma vez que o País não se vinculou a nenhum dos tratados que representariam e com as limitações apontadas a essa supranacionalidade”.

A pergunta óbvia que se deve colocar, é se Cabo Verde vinculando-se a esses tratados, que representariam a supranacionalidade, a CEDEAO passaria a ser supranacional? Ou se a CEDEAO já a é, independentemente de Cabo Verde se vincular ou não a esses ditos tratados. 

Usando a lógica do STJ: a União Europeia deixaria de ser uma organização supranacional pelo fato de alguns países membros não aderirem à moeda única. É isso?

A CEDEAO poderá ser ou não supranacional em função da sua natureza e essência, sem ter que se afirmar como tal, como não necessita da declaração de vinculação de um Estado para se definir como supranacional ou não.

A questão da supranacionalidade é matéria de estudos e análise por parte de vários especialistas, e pode-se aqui, a título de exemplo, trazer a colação a visão e posicionamento de alguns deles.

Para o Prof. Doutor Luís Pereira Coutinho uma análise “das instituições políticas supranacionais passa, em primeiro lugar, por uma sua distinção das clássicas organizações internacionais de natureza intergovernamental”, para depois acrescentar que as organizações de natureza intergovernamental se submetem “a uma lógica de coordenação interestadual, isto é, de articulação entre interesses que permanecem definidos ao nível dos diferentes Estados”, e que face a essa lógica e gestão de interesses de cada Estado, impõe-se na sua atuação uma  “anuência contínua dos Estados – de todos ou de apenas alguns, consoante a sua estrutura organizatória”.

Na sua perspetiva, as organizações de natureza supranacional superam a questão da coordenação e a necessidade de anuência contínua, uma vez que, segundo explica, “a tomada de decisões vinculativas no âmbito de instituições supranacionais não depende de uma anuência continuamente expressa por parte de todos ou de alguns dos Estados, o que se reflete na não exigência de unanimidade”.

Para o Prof. Doutor Eduardo Biacchi Gomes o que carateriza, o que ele denomina de “instituto da supranacionalidade”, “é a autonomia e a independência que confere aos órgãos comunitários em relação aos Estados-membros, pois o facto de situarem-se hierarquicamente entre as ordens jurídicas nacionais e internacionais garante-lhes o primado sobre as legislações dos Estados”.  

No entendimento do Prof. Doutor José Cretella Neto, as organizações supranacionais organizam-se de forma que os próprios Estados, que as constituem, cedam parte da soberania e permitem interferência desses organismos. Cretella Neto observa as caraterísticas seguintes nas organizações supranacionais:

a) Os órgãos da organização são integrados por pessoas que não são representantes dos governos dos países-membros;

b) Os órgãos podem tomar decisões mediante voto majoritário;

c) As organizações têm autoridade para adotar atos vinculantes, como decisões;

d) alguns desses atos possuem efeito jurídico direto sobre pessoas físicas e jurídicas de Direito Privado;

e) O tratado constitutivo dessas espécies de organização e as medidas adotadas pelos seus órgãos passam a constituir uma nova ordem jurídica; e

f) O cumprimento das obrigações dos países membros e a validade dos atos adotados pelos órgãos da organização estão sujeitos à revisão judicial por um tribunal de justiça independente”.

Para a Mestre em Direito e Relações Internacionais, Aline Beltrame de Moura, a definição da supranacionalidade torna-se complexa porque cada autor procura fazê-la de acordo com as suas conceções. Ela, contudo, afirma que todas as teorias convergem em três elementos essenciais: (i) transferência de parcelas de competências dos Estados em favor da organização supranacional (ii) aplicabilidade direta e imediata do ordenamento comunitário aos entes públicos estatais e particulares e (iii) independência das instituições comunitárias perante os Estados-membros.

(...)

Fim da I Parte

NdR: devido ao tamanho do artigo Santiago Magazine tomou a liberdade de o separar em duas partes. 

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