Ainda sobre o cônsul da polémica, da demissão de ministro e da emenda pior que o soneto
Ponto de Vista

Ainda sobre o cônsul da polémica, da demissão de ministro e da emenda pior que o soneto

Não é meu propósito especular sobre o escândalo que abalou recentemente o nosso país. Nem vale a pena, depois de tudo o que já foi dito e escrito sobre esse imbróglio que envergonhou a Nação e nos deixou de queixo caído. Mais uma vez imperou, na Imprensa e nas redes sociais, o fanatismo de clã, com uns escribas a digladiarem-se em "debates" maniqueístas sobre quem, no partido adverso, é (ou já foi) mais corrupto, quem deveria demitir-se e não o fez... Isso é trans-partidário: pessoas cegas de razão e discernimento que nem zumbis, cada qual defendendo a sua coutada, pontificam nos dois partidos que alternadamente nos governam, prestando-lhes mau serviço.

É pena porque o fanatismo desvirtua o debate e cerceia a liberdade de expressão. Cada qual é livre de pregar pela sua paróquia, mas daí a atacar o justo e defender o iníquo, esquecendo a razão das coisas, apetece-me dizer: feia democracia a nossa!

Eu não sou dos que defendem linchamentos na praça pública, mas também não irei ao sabor das ondas tortuosas da "ingenuidade" que alguns pretendem emprestar ao ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, como uma boia de salvamento para evitar o seu afundamento político, coisa que também lamento porque não desejo mal a ninguém.

O que é que foi reprovado ao Sr Ministro? Ora bem, que um generoso multimilionário quisesse fazer filantropia nestas ilhas de morabeza mas de escassos recursos, não iríamos nós-outros fazer fita se até a polícia dos Estados Unidos aceita automóveis e equipamentos desse senhor! Se vinha investir e criar empregos, então melhor ainda! Outra coisa, bem diferente, é estar o ilustre benfeitor afecto a um partido da extrema-direita portuguesa (e, ao que reportou a SIC, a braços com a justiça no seu país de origem) e ser nomeado cônsul honorário de Cabo Verde na Flórida!

Isso é que foi reprovado ao Senhor Ministro, que no mínimo deveria ter acautelado as consequências de tão surpreendente nomeação. Tão surpreendente quanto as suas declarações a tentar justificar o injustificável, quando era mais curial e mais inteligente fazer mea culpa e corrigir o tiro, mesmo sabendo-se na iminência de ir para casa. Francamente: um indivíduo com ideias fascizantes e xenófobas a representar a bandeira de um país universalista como o nosso, caldeado na mundividência de povos e culturas, é uma incongruência difícil de explicar! Além de uma vergonha aos olhos de quem nos observa, e disso não precisávamos ...

No entanto, face ao inexplicável, o Ministro fez o que tinha a fazer: colocou o cargo à disposição! Fosse ou não por sua livre inciciativa, a verdade é que não estamos habituados a ver um membro do Governo pedir demissão
por falta grave. Essa foi uma atitude rara, e só não digo única quando penso em algumas (raríssimas) excepções, tanto mais honrosas que não foi por falta grave. Dois exemplos: Osvaldo Lopes da Silva, ministro da economia, por discordar, em 1990, da abertura económica tal como preconizada pelo então Partido-único; Rui Figueiredo Soares, ministro da Saúde nos anos 90, por questões de honra e dignidade...

Agora, se o Senhor Ministro andou mal, daí a conotar o partido no Poder com a extrema-direita portuguesa, como pretenderam alguns mal-intencionados, é da mais indecorosa desonestidade política e intelectual! Pior a emenda que o soneto... Quem apostou em tão perigosa amálgama, de duas uma: ou é um ignorante sobre o que significa extrema-direita, ou é um oportunista tendencioso e sem pejo, e em qualquer dos casos não é digno de ser ouvido. O Ministro demissionário prestou um mau "serviço" ao seu partido, dando o flanco a uma Oposição oportunista, mas teve a dignidade de arcar com as consequências, demitindo-se - ponto final.

A controversa nomeação consular foi, sim, um ultrage à nossa diplomacia, e isso não se discute! O que aqui diverge ou controverte, são as opiniões de uns e outros quanto aos meandros desse processo e suas túrbidas motivações. Foi induzido em erro, o chefe da nossa diplomacia, ou agiu de caso pensado?

Antes fosse! Não me falem é de "ingenuidade" em diplomacia! Um ministro dos negócios estrangeiros - e da defesa, já agora! - não pode, não tem o direito, de ser "ingénuo" ou inocente! Inocência na política não é uma qualidade, e nas lides diplomáticas é um risco. A política externa de um país é coisa muito séria para ser feita de ânimo leve.

Seja lá como for, o caso é grave, até porque a nomeação de um cônsul honorário não é um despacho de rotina; não é "olha lá, queres ser cônsul" para fazer o gostinho a um amigo. Tal nomeação passa (deve passar) por um "inquérito" de cidadania moral sobre a pessoa que aspira ao honorífico título, tanto mais prestigioso que se lhe agregam as regalias e privilégios inerentes à função diplomática. Deve-se, sim senhor!, procurar saber se o candidato professa ideias atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais, e só então requerer o exequátur (autorização do Estado hóspede para exercer o consulado em seu território).

Haja em vista que a função de cônsul honorário não é remunerada, antes se espera dele que ofereça condições para prestar serviço sem dispêndio para o erário público (embora tenha direito a 50% dos emolumentos consulares). No entanto, a escolha de um cônsul honorário não é uma mera questão de fortuna, mas fundamentalmente uma questão de imagem: cônsul honorário pressupõe pessoa idónea, moral e politicamente irrepreensível. Caso assim não seja, o título é bastante prestigioso para salvar as aparências... e convenhamos que, nos States, fortuna e filantropia ajudam (que um indivíduo com processo prescrito nos tribunais por contumácia tenha sido cônsul honorário do seu país, não é da nossa conta, por isso... no comments).

Assim pois, uma averiguação preliminar não teria sido vitupério nenhum, por ser
normal e expectável nessas circunstâncias. Antes teria permitido ler nas entrelinhas e evitar o escândalo. Teria evitado suspeições de clientelismo e tráfico de influências, tanto mais gravosas nos bastidores da diplomacia. Porque, convenhamos, um anti-emigrante a querer representar um país africano de emigrantes como o nosso, não é um paradoxo banal! Muito menos o é a sua nomeação, pouco importa se por descuido ou "ingenuidade", se houve incúria, precipitação ou ligeireza no processo. A verdade é que ainda sem os esperados investimentos, o homem já era cônsul...

Mais surpreendente ainda é um simples cônsul ad-honorem ser acolhido no nosso país com honras de Estado, a ser isso verdade (o Protocolo de Estado tem regras, senhores!). Entre nós foi sempre assim, infelizmente: tapete vermelho para amigos estrangeiros influentes (mas nem sempre recomendáveis), caboverdeanos honrados e de comprovado mérito tratados com desdém, por pouco que tenham opinião crítica, pelos políticos que partilham entre si (e seus amigos do campo adverso) os brasões e privilégios da governança. Vem a propósito perguntar se não haveria outra pessoa - podia "até" ser um caboverdeano influente - para ser cônsul de Cabo Verde na Flórida...

Mas pronto... Corrigido o erro, é hora de passarmos a outra coisa. Cabo Verde agradece.

Mantenhas da terra-mãe, 21 de janeiro de 2021

(Artigo originalmente publicado pelo autor na sua página no Facebook)

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