A abstenção de 49,8% em Cabo Verde, embora não coloque em causa de imediato a estabilidade política do país, envia uma mensagem clara: a de uma democracia em crise. Se esta tendência continuar, o país enfrentará um dilema: manter um sistema democrático baseado numa fraca participação cidadã ou implementar reformas profundas para restabelecer um verdadeiro vínculo entre os cidadãos e a política.
Cabo Verde, conhecido em África e na cena internacional pela sua estabilidade política, enfrenta hoje uma situação preocupante no que diz respeito ao seu sistema democrático, com uma taxa de abstenção de 49,8% nas eleições autárquicas de 2024. Não se trata apenas de uma simples estatística eleitoral, mas de um fenómeno que reflete a saúde democrática do país. Apesar de o PAICV ter conquistado recentemente 15 municípios com 68,2% dos votos, a baixa participação, com apenas 176.687 votantes de um total de 351.964 eleitores registados, demonstra um desinteresse generalizado da população em relação à política cabo-verdiana. Isso pode, num futuro próximo, ter impactos significativos na democracia, na economia e na sociedade cabo-verdiana. A emigração massiva de jovens, especialmente para Portugal, é um exemplo muito ilustrativo deste fenómeno.
As Teorias da Abstenção: Uma Leitura Crítica do Fenómeno
A abstenção não é apenas a ausência de voto ou o ato de não votar. Vai muito além disso, pois pode ser reveladora de disfunções no sistema político e questionar a gestão da economia, sobretudo no que se refere à distribuição de riquezas, conforme apontam as seguintes teorias:
1. A Desafeição Política
A abstenção dos cidadãos no processo eleitoral, especialmente em Cabo Verde, pode ser interpretada, segundo esta teoria, como um desinteresse dos eleitores pelos processos eleitorais e políticos. Trata-se de um afastamento entre os eleitores e os partidos políticos. Em outras palavras, refere-se à falta de mobilização cidadã durante as eleições.
Aplicando isso à cena política cabo-verdiana, pode-se dizer que, apesar das alternâncias no poder entre o MPD e o PAICV, muitos cidadãos não votam porque não percebem uma relação direta entre a melhoria das suas condições de vida e o ato de votar, independentemente do governo no poder.
A abstenção torna-se, assim, uma manifestação implícita, um rejeito silencioso do sistema político, percebido como ineficaz e insensível perante os flagelos sociais, como a pobreza, o desemprego dos jovens e as desigualdades entre as ilhas. Os eleitores não veem motivos para votar. Neste contexto, a ilha do Maio é um exemplo relevante, onde a vitória histórica do PAICV em 2024 reflete este cenário. Uma ilha tão próxima da capital, mas tão distante do desenvolvimento económico, onde o turismo está estagnado, os jovens emigram por falta de oportunidades, onde ainda não há um aeroporto (apenas um aeródromo), os problemas de transporte são recorrentes, os preços dos bens são mais altos que na capital, e os jovens não têm atividades recreativas a não ser as ruas.
Diante desses desafios, o PAICV apresentou-se como uma solução para esses problemas e uma alternativa para o futuro económico e social da ilha.
2. A "Protestação Silenciosa"
A abstenção, embora silenciosa, é uma forma de manifestação e protesto contra um sistema considerado ineficaz e incapaz de atender às expectativas da população. Não votar torna-se uma maneira de não participar de um jogo político indiferente ou desalinhado com as preocupações sociais.
Os cabo-verdianos têm em sua história um DNA de resistência, desde o africano deportado de sua terra natal para trabalhar nas plantações ou ser vendido como escravo nas Américas, ao mestiço frustrado, fruto da relação entre colonizador e escravo, sem reconhecimento paterno, até às lutas pela independência.
Hoje, esta memória coletiva de resistência parece manifestar-se de maneira diferente: através de um "protesto silencioso" contra um sistema político percebido como desconectado das realidades sociais. Assim, a abstenção pode ser interpretada como uma nova forma de luta, que expressa o rejeito a um sistema incapaz de responder às expectativas dos cidadãos.
A Democracia Cabo-verdiana em Crise: Um Risco para o Futuro
A elevada taxa de abstenção em Cabo Verde não deve ser interpretada apenas como uma estatística, mas como um sinal preocupante de uma crise democrática que pode enfraquecer os alicerces do sistema político.
Esse desinteresse, evidenciado por 49,8% dos eleitores, reflete a falta de confiança dos cidadãos nas instituições e nos seus representantes. É uma declaração de desconfiança em relação aos partidos políticos e a todo o sistema político, marcando uma perda de legitimidade das instituições democráticas e um "divórcio" entre quase metade dos eleitores e os seus líderes.
Se a abstenção continuar a crescer, a democracia cabo-verdiana poderá enfraquecer-se ou até mesmo ser ameaçada por um declínio progressivo da participação.
O Impacto Social: A Fratura Crescente
A abstenção também pode sinalizar uma profunda fratura social entre as populações mais pobres e os líderes políticos. São os mais vulneráveis que sentem a necessidade de uma mudança social e económica, o que pode abrir caminho para movimentos de contestação social e, a longo prazo, provocar instabilidade no país.
Conclusão: A Urgência de uma Resposta Política
A abstenção de 49,8% em Cabo Verde, embora não coloque em causa de imediato a estabilidade política do país, envia uma mensagem clara: a de uma democracia em crise.
Se esta tendência continuar, o país enfrentará um dilema: manter um sistema democrático baseado numa fraca participação cidadã ou implementar reformas profundas para restabelecer um verdadeiro vínculo entre os cidadãos e a política.
Esse processo de revitalização da democracia cabo-verdiana deve passar por uma revisão das práticas políticas, um rejuvenescimento dos quadros de governança e uma valorização do compromisso cívico. Sem isso, Cabo Verde corre o risco de ver sua democracia enfraquecida, a um custo de fraturas políticas e sociais cada vez mais difíceis de reparar.
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