A falácia da liberdade de imprensa
Ponto de Vista

A falácia da liberdade de imprensa

Toda a gente fala da liberdade de imprensa, direi mesmo que este é o tema recorrente da última semana. De uma ponta a outra do espectro político, passando pelos opinadores de serviço e indo até algumas lêndeas do jornalismo, tecem-se loas, cantam-se hinos ou exibem-se números manipulados segundo os diversos interesses particulares ou as conveniências das variadas freguesias.

Uma semana antes, já nos haviam inundado com a aritmética politicamente correta dos bitaites do relatório do Departamento de Estado norte-americano a propósito dos direitos humanos – ironicamente parido por um dos países que mais os viola.

No mundo da manipulação e do faz de conta, tudo vale para iludir os papalvos e exibir as maravilhas da democracia formatada, politicamente correta e imaculadamente branca.

Ora, Cabo Verde - fiel aluno do ocidente e obediente usufrutuário da generosidade dos grandes do mundo - não poderia ficar de fora e, consoante as sensibilidades ideológicas em confronto, participar na grande farsa do deve e haver dos bons costumes democráticos...

A liberdade de imprensa – um dos ícones ideológicos das sociedades ocidentais – acantona-se no conceito de democracia, conquanto nesta matéria subsistam dois pontos de vista diversos e, mesmo, absolutamente antagónicos.

Segundo um dos pontos de vista (aquele no qual me revejo, mas que é absolutamente minoritário), assume-se uma conceção de democracia balizada no princípio de que os cidadãos devem participar de forma ativa na discussão e orientação dos assuntos que lhes dizem respeito, num contexto em que os meios de comunicação social sejam abertos ao debate e à participação cidadã, expressando com total liberdade todos os pontos de vista. Um conceito, aliás, que remonta à primeiras definições da natureza intrínseca da própria democracia.

O outro ponto de vista (massificado durante decénios, mas com maior relevância desde os anos 80 do século XX), releva um conceito de democracia musculada, onde apenas às elites e às classes dominantes está reservado o direito de participar na condução dos assuntos públicos que interessam a toda a comunidade, bem como ter garantido o acesso aos media, financiados, suportados e dirigidos pelas classes dominantes e pelos grupos de interesse sistémicos.

Neste contexto, é evidente que falar em liberdade de imprensa não passa de uma acabada falácia, de uma flagrante manipulação e perversão dos princípios fundadores da democracia.

As sociedades modernas funcionam com um sistema de filtros, desde a mais tenra idade no sistema de ensino, há coisas das quais não se fala, por isso é que, já no fim do processo educativo, saem das nossas universidades, grosso modo, seres acríticos, sem pensamento próprio, e com uma certa visão massificada do mundo. Neste caminho, a comunicação social, maioritariamente controlada por grupos de interesses económicos e/ou políticos, faz também o seu trabalho de massificação e formatação do pensamento único.

O sistema nem sempre funciona, mas no essencial reproduz a carga ideológica que as pessoas transportam já desde o mais remoto início das suas vidas. Quem foge deste padrão, normalmente, é visto como problemático, inadaptado, senão mesmo louco, e os jornalistas que questionam as versões oficiais são colocados na prateleira ou alvo de orquestradas e subtis campanhas de descredibilização do seu trabalho. Outros, embora considerando os media uma grande farsa, ainda assim procuram aproveitar algumas brechas e fazer o seu trabalho num registo fora da formatação. Às vezes, consegue-se.

Recentemente, os media de todo o mundo noticiaram o ataque norte-americano à Síria, tendo como pretexto o uso de armas químicas pelo regime de Bashar al-Assad, uma circunstância contestada por organizações internacionais presentes no terreno e por observadores da própria Organização das Nações Unidos. Ou seja, o pretexto não era mais do que uma grande mentira!

Anos antes, sob o mesmo pretexto, as grandes potências atacaram o Iraque, depuseram o regime de Saddam Hussein e transformaram o país num território ingovernável. Anos depois, sob a capa da implantação da democracia, foi a vez da primavera árabe, que destruiu nações inteiras e tornou o mundo mais inseguro. No essencial, os media de todo o mundo reproduziram a versão oficial, desta feita agitando o papão do terrorismo, não raras vezes financiado e apoiado na sombra pelos novos cruzados da democracia ocidental, imaculadamente branca e pura...

Liberdade de imprensa?! Mas estamos a falar de quê?

António Alte Pinho
privado.apinho@gmail.com

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