O ano 2022 está de partida e deixa para trás uma montanha-russa de ocorrências e eventos, um legado pesado para 2023. Santiago Magazine compilou uma série de acontecimentos mais marcaram o ano que se despede, com destaque para o sector da justiça e da imprensa, que entraram em choque obrigando os jornalistas a sairem às ruas e recomendações e repreensões de organismos internacionais sobre a ameaça à liberdade de imprensa e tentativa de silenciamento de jornalistas em Cabo Verde.
PGR vs. Jornalismo
Em Fevereiro, o país parou focado numa disputa de razões entre o Ministério Público, na pessoa do procurador-geral, Luis José Landim, e os jornalistas sobre o segredo de justiça e a liberdade de informação. Em causa, a constituição dos jornalistas Herminio Silves, de Santiago Magazine, e de Daniel Almeida, do A Nação, como arguidos num suposto caso de violação do segredo de justiça, por estarem a investigar um alegado caso de “execução” violenta de um cidadão por parte da Polícia Judiciária, em que o nome do ministro da Administração Interna, Paulo Rocha, estava citado no processo tanto como sendo o estratega dessa ‘emboscada’ que matou Zezito denti d’Oru, em Outubro de 2014, quanto como estaria na cena do crime que o sistema parece querer encobertar a todo o custo. Face à contestação que tal medida despoletou – com os jornalistas e muitos juristas a argumentarem que os jornalistas não estão vinculados ao segredo de justiça – a PGR mudou a acusação para crime de “desobediência qualificada”, conforme o polémico art. 113 do Código do Processo Penal.
O PGR não gostou que os dois jornalistas tivessem divulgado peças de um processo que há oito anos não tinha saído de onde começou – zero – para de repente ser arquivado, não sem antes o próprio PGR negar que o ministro estava sendo investigado, violando ele próprio o segredo de justiça ao divulgar tal informação. O PR, José Maria Neves, chegou a comentar que os jornalistas não estão sujeitos ao segredo de justiça e o PGR, Landim reagiu atirando que não aceita pressões nem interna nem externas. Muita tinta se fez correr sobre este assunto, com a imprensa estrangeira e organismos internacionais como o Consórcio Internacional de Jornalistas e a Repórteres sem Fronteiras a repudiar a tentativa da Justiça em silenciar a imprensa livre, criminalizando os jornalistas e atacando jornais desamarrados do poder. A nível doméstico, esse assunto fez juntar a classe que, na Praia, Mindelo e noutros locais, com a AJOC por detrás, saiu às ruas em manifestação contra a mordaça à imprensa.
Paulo Rocha
O ministro da Administração Interna esteve em destaque pela negativa. Tanto por causa do processo de investigação sobre o assassinato de Zezito Denti d’Oru, quanto pela onda de insegurança e criminalidade que grassa no país, sobretudo na Praia. Quer num caso, quer no outro, Rocha permanece firme, suportado pelo seu chefe, o Primeiro-ministro, Ulisses Correia e Silva, saindo – por enquanto – ileso dos ataques que lhe foram (são) dirigidos. Mas foi o caso Zezito Denti d’Oru que lhe vem manchando a camisa, coisa que não quer admitir, tanto que já intentou ele próprio uma queixa contra o jornalista autor desta peça, Hermínio Silves, e os ex-oficiais da Policia Nacional, manuel Alves e Elias silva, pedindo uma indemnização de oito mil contos.
Mesmo depois do seu outro “defensor”, o PGR, Luis José Landim, mandar arquivar essa investigação por não ter havido provas de que houve um crime, mas sim que a PJ agiu em legítima defesa para metralhar um cidadão (ainda que suspeito de ser o assassino alegadamente pago pelo traficante Paulo Ivone para matar a mãe de uma inspectora da PJ, em 2013), o nome de Paulo Rocha, o ministro que era director adjunto da Judiciária quando ocorreu o caso ‘morte em Cidadela’, continua ligado ao processo. E agora como arguido, já que os familiares de Zezito, após despacho de arquivamento feito pelo procurador Nilton Moniz, constituíram advogado e pediram uma ACP com os elementos que integraram a operação na Cidadela, incluindo Paulo Rocha, na qualidade de arguidos. A juiza sorteada para realizar essa acareação, Mirta Teixeira, pediu escusa alegando ter laços pessoais e familiares com Rocha, pai da sua filha. Seja como for, o ministro da administração Interna, que já foi director do SIR no tempo do PAICV e que UCS colocou como cabeça de lista do MpD por São Vicente, continua a resistir, respaldado pelo seu boss. Até quando, é a incógnita, mas a sua continuidade no Governo, perante tantas críticas e agora arguido poderá fazê-lo cair… por conveniência política, a não ser que Ulisses esteja disposto a cair junto.
Amadeu condenado
Muitas voltas, idas e vindas, recursos e contra-recursos, cassação de mandato, manifestações e contestações, o advogado Amadeu Oliveira, que já estava em prisão preventiva há mais de um ano na cadeia de Ribeirinha, em São Vicente, acabou sendo condenado pelo Tribunal da Relação de Barlavento a sete anos de prisão efectiva, pelos crimes de atentado contra o Estado de direito e um dos crimes de ofensa a pessoa colectiva de que estava acusado. Oliveira foi absolvido da prática do crime de coacção ou perturbação do funcionamento de órgão de soberania e de um crime de ofensa a pessoa colectiva. O processo, entretanto, seguiu para o Supremo Tribunal de Justiça para ser decidido pelos mesmos juízes que Oliveira vinha criticando de “inserção de falsidades em processos” e que o processaram por 14 crimes de ofensa e difamação, processo esse que aguarda retoma do seu julgamento, agora com novo juiz, com a nomeação de Ivanilda Mascarenhas Varela opara directora nacional da PJ.
Corrupção diplomática - Luis Filipe Tavares inocente
O Ministério Público mandou arquivar, também em Novembro, o processo de instrução que indiciava o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros e Defesa Nacional, Luís Filipe Tavares, num suposto crime de corrupção passiva, assunto trazido à ribalta por reportagem do canal português SIC e repescado por Santiago Magazine que publicou a peça televisiva na íntegra (facto que o MP fez constar no processo). Tavares, segundo documentos obtidos pelo canal de Carnaxide, teria recebido benesses, incluindo um Mercedes topo de gama, em trica da nomeação do luso-americano César do Paço consul honorário de Cabo Verde na Flórida. A estória mereceu tal destaque porque do Paço é um milionário, a braços com a justiça portuguesa, e tido como próximo do partido da extrema-direita, o Chega, que defende políticas severas contra a imigração em Portugal e possui discursos racistas e xenófobos.
O escândalo dessa notícia e depois culminada com a reportagem da SIC, forçou a saída de Luis Filipe Tavares, um dos quatro vice-presidentes do MpD, do elenco governamental, ao que ele dissera, a seu pedido, o que não deixou de causar estranheza já que momentos antes e reagindo à noticia de Santiago Magazine sobre a misteriosa nomeação de César do Paço (a mulher deste já era consul de Cabo Verde em Nova Iorque), Tavares garantira que o português se manteria no cargo honorário e ele também. Acabou por sair do Governo e ver o Ministério Público anunciar a abertura de um processo de instrução por alegado crime de corrupção. A Justiça concluiu agora não haver indícios de qualquer prática de crime do então ministro. “Não resulta quaisquer indícios de que o arguido nomeou César de Paços como Cônsul Honorário e recebeu, em troca, a viatura Mercedez-Benz”.
Crise na Praia e no Mindelo
O ambiente político-administrativo nas Câmaras Municipais da Praia e de São Vicente chegou a zedar. A crise nas duas autarquias abeirou-se do precipício e muitos observadores cogitaram a possibilidade de poder acontecer eleições intercalares para sanar os problemas. Se na Praia, com acirradas disputas jurídicas e muito jeito as coisas foram se acalmando, em São Vicente pioraram, com Augusto Neves, o presidente da CM de São Vicente, na iminência de ver dissolvidos os órgãos municipais, já que nega acatar as recomendações da averiguação dos factos relacionados com as reuniões do órgão executivo dessa edilidade, feita pelos Serviços de Inspeção e Auditoria Autárquica e da Inspeção Geral de Finanças. Neves contesta o resultado ou as conclusões aludidas no relatório da IGF, pelo que o caso só será decidido por via judicial.
Nesse quesito, o autarca mindelense conta com o beneplácito do Governo, que, tendo tutela administrativa sobre o poder local, se omite em tomar uma posição em relação ao impasse na CM sanvicentina, dando boleia a Francisco Carvalho, que, declarado o alvo a abater pelo MpD e pelo Governo, fica intangível pelo poder executivo. A não ser que este feche os olhos e permita a queda de Augusto Neves em São Vicente, que funciona em ralenti, sem orçamento nem plano de actividades desde as eleições de 2020.
Um ‘outsider’ no Banco Mundial
Chocou o país a nomeação, no mês de Outubro, de Harold Tavares, então director de gabinete do PM, como administrador-suplente representante de Cabo Verde junto do Banco Mundial. Primeiro, porque ‘desconhecido’ nessas lides, sem qualquer experiência no ramo, e depois por ser filho da ministra das Infra-estruturas e primo-irmão do actual secretário-geral do mpd, Luis Carlos Silva. Harold ultrapassou nomes mais respeitados na área como Gilberto Barros, há mais de 30 anos consultor do BM, António Moreira, PCA do Banco interAtlântico ou Óscar Santos, ex-edil da Praia e actual governador do banco de Cabo Verde. Pior, o governo anunciou, perante o Parlamento, que essa nomeação fora uma selecção, por concurso, do próprio Banco Mundial, o que foi prontamente desmentido por esse organismo da Bretton Woods, que esclareceu que “não aprova candidatos”, ou seja, são os governos que indicam os nomes. Vexame público internacional.
Eleição de cargos externos à AN
Ainda não há consenso entre os dois partidos com maior assento parlamentar, PAICV e MpD, sobre os nomes a eleger para os cargos externos à assembleia nacional. O maior entrave está no nome do antigo presidente do Novo Banco, Carlos Moura, indicado outra vez pelo PAICV para o Conselho Superior de Magistratura Judicial, mas que o MpD desaprova. Mesmo após cinco tentativas os dois partidos não chegaram a um entendimento, já que o PAICV não larga Moura e o MpD não cede. O caso ficou mais complicado para o PAICV depois da revelação do suposto envolvimento de Carlos Moura num alegado crime de extorsão e lavagem de capital.
Transportes
O sector dos transportes marítimos andou aleijado em 2022. Diversos constrangimentos operacionais, sobretudo avarias dos navios, ‘prenderam’ os cabo-verdianos nas ilhas e provocaram avultados prejuízos ao comércio doméstico. Os problemas nas ligações marítimas inter-ilhas estiveram deficitárias, chegando ao ponto de o Governo entrar em choque com a empresa concessionária, ameaçando romper com contrato de concessão.
A nível dos transportes aéreos é o desastre que se sabe e se arrasta sem luz ao fundo do túnel. O Governo continua a injectar dinheiro na companhia, que sem aviões, e sem uma administração rigorosa está falida sem sequer poder pagar salários na data certa. Com vergonha, mas obrigação de manter de pé a TACV que privatizou e para depois nacionalizar, o Executivo vai assegurando as despesas correntes. Em Dezembro, foram mais 250 mil contos de um empréstimo junto da Caixa Económica de Cabo Verde (CECV). Antes, foram outros 165 mil contos, que, somados, dão um total de 415 mil contos só em 2022. A boa nova é a retoma dos voos directos para Boston, que o PM anunciou semana passada.
Nomeações
A juiza Ivanilda Mascarenhas Varela, que estava a julgar Amadeu Oliveira no processo contra os juizes do STJ, foi nomeada em Dezembro, nova directora nacional da Polícia Judiciária, em substituição de Faustino Varela, que foi para o tribunal da CEDEAO, onde estava Januária Costa.
Daniel Monteiro foi empossado como novo director da Unidade de Informação Financeira (UIF), no lugar de António Sebastião Sousa.
José Pina Delgado é o novo presidente do Tribunal Constitucional. Foi eleito pelos seus pares, a 21 de Dezembro, para substituir João Pinto Semedo, que estava no cargo desde 2015. Todos os três membros do TdC votaram em Pina Delgado.
O Juiz Conselheiro Benfeito Mosso Ramos foi nomeado em Novembro, por decreto presidencial, como novo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), sendo esta a segunda vez que exerce essa função. Mosso Ramos sucedeu a Juíza Conselheira jubilada Maria de Fátima Coronel.
O deputado do MpD pelo circulo da Europa e Resto do Mundo, Emanuel Barbosa, foi nomeado para presidir a recém-criada Autoridade da Concorrência.
Figura do Ano: Os Jornalistas
Sim, as manifestações e firmeza de posição da classe jornalística contra a tentativa de silenciamento da imprensa livre em Cabo Verde foi o evento mais corajoso demonstrado pelos profissionais da comunicação social no arquipélago em largos anos. Com a AJOC também em destaque, os jornalistas enfrentaram o sistema judicial de forma destemida e lúcida do seu dever e dos seus direitos, não baixando a bola como o sistema judicial, ou melhor a Procuradoria Geral da república, eventualmente pretendia. Os jornalistas mostraram coesão, união e determinação na luta para quiçá fazer cair ou senão alterar o art. 113 do Codigo do Processo Penal que condena a todos por “desobediência qualificada”, em processos sob segredo de justiça, mesmo que não tenha havido notificação qualquer a mandar calar, o que seria outra aberração. A postura firme dos jornalistas fez reabrir o debate sobre a liberdade de expressão e o segredo de justiça, tendo repercussão internacional, com a intervenção de organismos ligados ao sector a ‘condenar’ a Justiça cabo-verdiana. De tal monta, que a Repórteres sem Fronteiras, no seu relatório de Maio, fez Cabo Verde cair nove lugares no ranking de liberdade de imprensa. O país despencou da posição 27 para 36 em apenas um ano, o que para a Associação Sindical dos Jornalistas de Cabo Verde (AJOC) deveu-se às acusações do Ministério Público contra jornalistas.
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