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“A qualidade da nossa música é preocupante. Há canções que não valem nada”
Entrevista

“A qualidade da nossa música é preocupante. Há canções que não valem nada”

Compositor e guitarrista santiaguense, radicado há 34 anos nos EUA, abre o coração e diz tudo o que pensa sobre a música, as suas decepções , conquistas, superações e revela o que o inspira e o magoa na música que se faz hoje em Cabo Verde. Nesta entrevista exclusiva, Calú di Guida conta como tudo começou e como vem evoluindo – em um ano, garante, escreveu 1140 composições – humanamente e espiritualmente.

Santiago Magazine: A entrevistar um músico, devemos começar pela música. Falemos da música…

Calú de Guida: Sempre gostei de música. Mas, antes não tinha oportunidade, não tinha instrumentos, mas música é uma coisa boa. Tão boa que faço esta analogia: música é para louvor, é uma coisa de cima para baixo. Ela veio do céu.

 Há pessoas que choram, que se emocionam, apaixonam, se casam, cura da doença, acalma as dores, enfim,  a música nos faz bem. Agora, existem músicas que não valem nada. A qualidade da música que temos hoje é preocupante, mas temos música boa e sentimo-la e levamos horas a ouvi-la. A música ultrapassa o tempo. Eu, por exemplo, quando começo a escrever e a tocar eu me perco no tempo. A música tem mais força que o próprio tempo, Eu me entrego totalmente. A música foi criada por um Ser Superior, pelo próprio Deus. Para mim, é sagrada, pois é para louvar a Deus. Eu não brinco com as minhas músicas. Não é qualquer letra que eu escrevo. Do ano passado até hoje, já escrevi mais de 1700 composições.

De que género?

De todos os géneros, a música na sua amplitude. Não escrevo apenas funana,  batuku, tabanka, morna, coladeira, mazurca, o meu foco é o universo.

A tua música não tem fronteiras? Não cinges apenas a Cabo Verde?

Não, a minha musica é universal.

Que tipo de temas que mais usas nas tuas composições?

Eu sou um indivíduo preso à terra, muito apegado à minha terra. Está a ver aquele poilão ali (aponta um quadro pendurado na parede do seu gabinete de trabalho onde decorre esta conversa)? Sento aqui a contemplá-lo e ver o que brota da terra. Tudo veio da terra, penso que sente, tem tudo,  é vivo. Eu tenho muito cuidado com a terra. Ninguém plantou aquele Poilão ali, mas brotou da terra. Portanto, as minhas composições relacionam-se sempre com a natureza. Pois, vejo que tudo vem da natureza e para ali vai também. As pessoas questionam porque escrevo dessa forma e respondo que é porque estou sempre em outra frequência, e quando escrevo vejo claramente que nem sempre fui eu quem escreveu aquilo. Porque quando vejo as coisas que eu escrevi, pergunto a mim mesmo como foi que fiz aquilo. São mais de 2000 composições. Tenho registo de 2793 pedaços de melodias no meu telefone, isto depois do iPhone porque eu já tenho 31 anos nessas. andanças

E estão todas registadas e gravadas?

Todas não, maioria não está.

Pensa em gravá-las todas?

Gravar tudo isso não sei, é muita coisa.

Como pensa divulgá-las? Em livro?

Compilação em livros penso que vai ser um dos veículos. Estive a trabalhar numa seleção Mas, é tanta coisa que está difícil. E, como é o primeiro livro que estou a fazer, quero trabalhar para ter um bom impacto, para ser uma marca à partida. O que sempre tenho em mente é respeito a todos os compositores cabo-verdianos, por aquilo que já fizeram, pois vieram antes de mim.  Por exemplo, o Codé de Dona não fez muitas composições, mas aquilo que ele fez é muito; o Ano Nobo também fez muito, mais de 400 composições; o Antero Simas me parece que são mais de 200, também fez muito; o Zezé Di Nha Reinalda fez e faz muito...

No último ano fez quantas composições?

De janeiro 2022 até este momento, outubro 2023, já fiz 1772 composições.

Há pouco falou de transcendência.  Acredita que recebe algum tipo de mensagem para passar?

Sim, porque são coisas que não consigo explicar de onde vêm. De repente chegam nas melhores horas, normalmente a partir das 3h da madrugada. Acordo com as ideias na cabeça e é pegar as letras e sentar para escrever. Por isso que digo que eu não sou melhor do que ninguém, eu sou apenas um canal.

Acredita em Deus?

Sim, 100%. Eu acredito que sem Deus não sou nada e que quem diz que Deus não existe não tem juízo. E, digo isso sem problemas, posso estar junto com pessoas que dizem que Deus não existe e eu digo-lhes que não têm juízo. Quando você olha para a natureza como esta aqui, sem que ninguém tivesse colocado a mão, sem a mão de nenhum homem, se não foi Deus quem foi?! Às vezes as pessoas me perguntam “quem fez Deus” e respondo “quando a gente chegar nele, eu pergunto”. Mas, porque eu ainda não cheguei lá então existem limitações que nós só vamos ultrapassar quando chegarmos perto dele, aí perguntamos.

És apenas um canal…Como?...

São mensagens… os meus amigos me dizem que as minhas composições estão para além da música, consegue-se ir e ouvir para além da música. Por isso, me instigaram a conversar também, para além da música, alegando que as pessoas têm fome destas mensagens. Então criei um modelo, foi numa madrugada, às 3h da manhã. É um modelo novo para mim, mas estou a melhorá-lo. Coloco um batuku e 4 notas ímpares com uma harmonia bonita. É assim: Dó maior 9, Lá menor 11, Ré menor 9 e Sol maior 13. Com esta harmonia bonita, coloco a mensagem por cima. Dependendo da hora do dia, se for noite ou dia, agora são 2h da tarde, como falamos são boas horas e digo assim:

N ka sta li pa fasi barudju

N ka orador nem ka profeta

Nhos sakuta, nhos aproveita

Nha nomi ê Calú Dias

Na tereru ka ta ruedu, ta kontadu sima ki passa

Fladu txeu ka ta kontenti ma keli é ka nada ku mi ou ku nôs

Tudu alguém ta usa GPS pa txiga um destinu

Ampôs si nu sigui manual di bida nu ka ta perdi, ki ta kontanu tin tin pa tin tin desde prinsipiu tudu kusa modi ki kontisi

Na storia di kriason, ta fladu ma tudu foi fetu ku palavra, menus omi ku limária

Nu bem lá di txon, loradu na mô, sopradu na nariz, nu torna alma viventi, nu dadu dominiu ku dom di palavra

Mas nhos sakuta, nhos ozerba, palavra ka ta sai de pilon pa kai na balei, palavra ka ta podu riba pa ferbi pa bai fria na pratu, palavra ta fri, palavra ta magua, palavra é venenu, palavra ta mata, palavra també ê ramedi palavra ta kura, palavra ê sagrado, palavra ta salva

Nhos sta odja natureza é bonitu, é um komposison, todu nós ê compositor, di nos jeito nu ta kria nôs magia y kada un ku nos filosofia.

Fladu ma tempu é dinheiro, ka nhos seta, gosi nos tudu se nu kre sabi nu ta sabi kantu dinheiro nu teni na bolso ou na banku, mas kem ki sabi kantu tempu fikal?

Ampôs tempu ê bitola e kantidadi ê mistério, se nu tem di dá nu dá gosi, se nu tem pa nu fla tambê nu fla gosi. Nu prendi dá mas, nu prendi kobra menus, nu prendi ser mas pamodi amor ê lei, amor ê dever, nos tudu ê fidju Nhu Rei, ta fazenu ser tudu prisipis e princesas e armon na Kristo

Nhu Rai el é numeru um, mi ku bó nu tem 2, bem ku mal tem 3, amor ku odio tem 4, flanu ku flana tem 5, Kristu ku demoni tem 6, verdadi ku mintira tem 7, salvason ku perdison tem 8, sabedoria ku ignorânsa tem 9, eternidadi ku banalidadi tem 10

Ago oji como nu sta di ladu li nu pidi Nhu Rai pa danu saudi pa nu podi gosa vida, moda midju ku fijon, na paz, ku armonia, ku alegria, ku txeu melodia xeiu d”inerjia mas asima di tudu ku umildadi entri família

Nhos tem bo tarde,

Mas um bez, Calú de Guida

É este estilo que quero usar em cima de um tempo e som de um batuku.

Porque utilizou estes números?

É simples, todas as coisas opostas têm o mesmo tamanho, “mi” e “bô” tem 2, “bem” e “mal” tem 3, “amor” e “ódio” tem 4, “flanu” e “flana” tem 5, “Cristu” e “demóni” tem 6, “verdade” e “mentira” tem 7, “salvação” e “perdição” tem 8, “sabedoria” e “ignorânsa” tem 9, “eternidade” e “banalidade” tem 10.

A música significa o quê na tua vida?

A música, para mim, significa conexão. A forma como conectamos com as pessoas, as pessoas conectam connosco e conectamos com Deus através do louvor. Porque a maneira como eu vejo as coisas deste mundo, percebo que elas vêm de outro lugar, e só pode ser de Deus. Eu sou apenas um canal, a música para mim é como sangue nas veias que continua a passar pelas grandes e pequenas artérias do nosso corpo. A música, para mim, é um alimento espiritual.

Desde quando está na música?

Praticamente comecei desde que nasci. Nasci numa localidade onde a música é fluente. Nasci em São Domingos e temos Denti Ouro, Ano Nobo, Codê di Dona, Manu Mendi. As pessoas vão para lá para depositar energia. Os músicos de Cabo Verde encontram-se em São Domingos. Muitos deles os conheci na casa do Denti Ouro e Ano Nobo. Passei a minha infância, adolescência e parte da juventude ao pé destes homens. Também, São Domingos é a fronteira, a porta de entrada e saída para o interior de Santiago. Então estive ao redor de muitos músicos, de muitas pessoas boas, e menos boas. Mas, conservei o lado bom. Eu considero que eu sou cheio de música, eu sou um homem de paz, tranquilo, a música é sagrada para mim, então eu sinto uma paz interior extraordinária.

Com quem e como é que aprendeu a tocar?

Eu tive diferentes fases. Qualquer pessoa de São Domingos, se não tiver oportunidade de pegar num instrumento, tem a oportunidade de ver e ouvir. São Domingos foi a base para mim, não tinha instrumento, mas eu via as pessoas  tocando. Então foi um aprendizado que eu tive de forma não formal, porque não havia nenhuma Escola de Formação, mas foi muito visual. E também a audição, que me ajudou muito em termos de aprendizagem em São Domingos. Na Praia, também estive alguns dias com o Professor Cubala e Orlando Pantera.

Quais foram as suas principais influências na música?

Tive influência dos músicos de São Domingos, em primeiro lugar. O Elisio Correia, que me ensinou um primeiro acorde num violão “ sol maior”, ali no largo do Salã Paraquial, do mestre Ano Nobo, o primo Dicki, Carlinhos Pikena, primo Dilo Nanda, enfim toda malta da serenata. Em Cabo Verde, a sementeira foi feita, mas era limitada. Depois, quando eu cheguei nos Estados Unidos havia um homem chamado Aníbal, de Saltos, morava na casa dele. Ele tinha uma garragem e eu trabalhava ali. Um dia ele me disse “o teu dedo é pequenininho, não trabalhe com os rapazes, se eu te oferecer uma viola, aprendes a tocar? Tenho um aqui dos meus filhos”. Então, parei de trabalhar com os rapazes, fui trabalhar no restaurante de frango e depois comecei a treinar com a viola que ele me deu, e com o pouco que eu aprendi em Cabo Verde, comecei a fluir. Passado algum tempo, os rapazes que morávamos juntos me disseram que eu estava a fazer barulho, e que tinham de procurar alguém que sabe tocar para lhes dizer se eu estava a fazer apenas barulho mesmo ou se estava a tocar alguma coisa de jeito. Eu pensei que era brincadeira dos meus colegas do quarto, então num domingo cedo trouxeram o Tony Azevedo que tinha sido do Bulimundo. Eles chegaram e eu estava ali a tocar, a tentar aprender. Tinha 24 anos, cheguei nos Estados Unidos com 23. E disseram-me: “já trouxemos alguém que sabe tocar”, e eu ainda pensei que fosse brincadeira. Por sorte, embora a opinião das pessoas não me impediriam de continuar, o Tony disse aos rapazes que eu estava a fazer as notas de forma correta, e que estava a aprender muito bem. E eu disse para mim mesmo, hoje estão a troçar, mas chegará o dia que terão de pagar para ver-me tocar.

E aconteceu mesmo? Hoje eles pagam para te ver tocar...

Claro que sim. E não tardou muito. Um belo dia o Galvão chegou lá em casa, disse-me que no final de semana, era em 1991, precisavam de uma pessoa que sabe tocar viola para completar uma banda para um baile. Eu respondei: “mas eu não sei tocar como é que eu vou entrar na banda.”  Estava há quase 2 anos a praticar, mas eu nunca pensei em tocar numa banda. Ele disse que as notas que eu estava fazendo, são as notas que eles usam. O cantor da banda era o Pulonga Bita e o José Silva, que já faleceu. O Tony Azevedo era tecladista da banda “Ecos Tropical”. Foi nesta banda que pela primeira vez eu toquei para o público e foi o lugar mais fino que eu já toquei até hoje. Antes de ir, eu disse aos rapazes com quem morava: “vou tocar numa banda, sem ensaiar.” O Galvão disse que me daria as notas todas e nem sabia o nome das notas ainda, pois, eu fazia pouca coisa na altura, era muito limitado ainda. Chegamos, era um espaço cheio de espelhos, fiquei preocupado, eu nunca tinha entrado num lugar assim. Fiquei apreensivo, pensei comigo mesmo “quanta responsabilidade”. Ligamos os aparelhos, as pessoas começaram a chegar, todas muito bem vestidas e eu não estava bem vestido, nem sabia como é que eram as coisas. Foi uma coisa nova para mim, não estava preparado psicologicamente para enfrentar aquele tipo de ambiente, mas como era a minha determinação, era tudo o que eu queria fazer, tive coragem para prosseguir. Fiz solo, mas como era pouco, fiz o acompanhamento. As pessoas começaram a dançar, comecei a ficar mais animado porque as pessoas estavam a gostar. Me pagaram 100 dólares e perguntei para o Galvão: “o que é isso?” E ele respondeu: “é o teu pagamento”. E fiquei espantado, nem sabia que aquilo era para ser pago. E o Galvão acrecentou: “na próxima semana haverá mais, e perguntou; “irás connosco;” e eu respondi: “como não?!” Na ocasião, eu ganhava 126 dólares por semana e numa noite ganhei 100 dólares. Estava eufórico, com uma vontade enorme de chegar em casa para contar aos meus colegas o dinheiro que havia ganhado. Até aquele dia, não me lembro de ter pego 100 dólares de uma só vez na minha mão. Quando cheguei em casa, acordei os colegas para mostra-lhes o dinheiro que recebi naquela noite, admiraram que me tinham pagado e respondi-lhes que o meu toque havia começado a ser pago.

Foi assim é que tudo começou… desta forma simples, quase expontânea?

Sim. Na semana seguinte, foi a mesma coisa. Mas, a banda não durou muito tempo, e acabou. Mas eu continuei a ensaiar-me constantemente. Depois, fui ensaiar com um outro conjunto que era sensação em Boston, mas me dispensaram dizendo que eu não sabia tocar, portanto me dispensaram. Não me preocupei, porque estava a aprender. O Galvão sempre me dizia que iria me colocar na banda Latour, eles tocavam num nível mais alto. Eu ia fazer acompanhamento ao solo, principal porque tocavam  funaná e precisavam de uma pessoa para acompanhamento. No início alguns elementos do grupo não queriam, mas o Galvão insistiu e entrei. Fiquei de 92 até março de 94
data em que fui dispensado, disseram que não estava a evoluir no ritmo deles, estavam mais avançados. Aconteceu que fizemos um espetáculo que não correu bem e pagaram-me menos do que o combinado, reclamei, então fizeram uma reunião e me despediram. E eu disse para mim mesmo: “tudo bem, mas daqui a 2 anos eu estarei bem melhor do que vocês”. Na altura não havia telemóvel, mas os rapazes ficaram a saber que já não estava na banda e o Gentil me ligou dizendo que sabiam que já não tocava na banda e que estavam a pensar organizar uma banda em Boston e queria saber se eu estaria interessado em participar. A banda chamava-se Uprising. Cheguei lá e encontrei os rapazes que me haviam dispensado da banda sensason  e foi quando percebi que já estava mais avançado do que eles.

E como é que foi a tua passagem nesta nova banda, Uprising?

Foi um sucesso. Logo no primeiro dia do ensaio, os rapazes disseram: “vamos preparar para os bailes”, e eu disse: “não, vamos preparar para coisas maiores, vamos tocar as nossas próprias músicas, vamos gravar um CD”. E perguntaram: “quem vai fazer as músicas” e respondi: “eu”. Na altura, não me responderam nada, mas depois me disseram que comentaram: “um homem que foi dispensado de uma banda porque não valia nada, vai fazer música?!”. Por isso que eu digo que sou conectado com o Senhor lá de cima. Fui dispensado no mês de março, tinha feito uma única música, mas os rapazes troçaram dela e achavam que não prestava.

Organizamos e começamos por fazer a música de introdução da banda. Ali é que comecei a fazer os arranjos, transformei-me num lider no Uprising – antes tocava “ritmo” – diretor musical, orquestrador, produtor. Foi num período de 1 mês. Disse-lhes que a nossa primeira atuação seria com nossas músicas. De abril, que iniciamos, em agosto fizemos nosso primeiro espetáculo. Os bilhetes esgotaram, a população cabo-verdiana em Boston apoiava a banda, tínhamos adeptos. Começamos com a nossa própria identidade, as nossas músicas,
também os outros elementos do grupo traziam as letras e as melodias e eu fazia os arranjos. E a fama começou a correr. Convidamos o Galvão para assistir aos ensaios e ele perguntou quem fez as músicas, disseram que fui eu e ele  ficou espantado e disse: “ o dispensaram e agora ele faz músicas” e passou a integrar a banda. Vários outros que me tinham dispensado de suas bandas vieram tocar na nossa banda. Entramos nos estúdios em setembro de 1994, o CD saiu em dezembro e no mês de março de 1995 fomos para a Holanda para um show fora dos EUA.

Tocou também com a banda “Os Pecos”?

Sim, fizemos dois projetos em conjunto.

Uprising durou quanto tempo?

Demorou 3 anos e fizemos 2 projetos. Depois saí, mas passamos bons momentos, fomos à Holanda no mês de março, Suíça em maio, Cabo Verde em junho e Portugal em dezembro do mesmo ano, em 95. O percurso foi rápido, foi um sucesso o Uprising, não havia estrela na banda, éramos uma equipa, todos colocaram aquilo que podiam, todos contribuíram, aqueles que tinham mais colocaram mais aqueles que tinham menos colocaram menos. Foi um sucesso da equipa.

Quanto tempo ficou no “Os Pecos”?

Fiquei um bom tempo, eu o Gau Salgado tínhamos um bom relacionamento. Ele gravou 15 músicas minhas. Participei em todos os projetos dele, ou com arranjos, ou tocando, ou escrevendo ou na produção. Gravei com eles, o projeto Belém era um projeto interessante, depois gravamos um single.

A música nunca fez parte da tua vida em modo “full-time”?

Não. Nunca estive com a música a tempo inteiro. A música está em mim, expresso-a em qualquer momento, em qualquer ambiente. A música para mim não é trabalho. As produções que fiz também nunca me pagaram. Na banda os ganhos eram divididos por igual parte, mas as produções que eu fiz não cobrei.

Não tem trabalhos a solo?

Fiz a minha produção que se intitula “midju têra”. Nunca produzi um CD a solo, mas o meu projeto “midju têra”, que produzi  em 2006, convidei outros músicos que participaram. Temos um outro projeto que é “terreru” e já estamos na terceira produção. Além de mim, Jacinto – Txibita, Djinho Barbosa, Maruka de Tarrafal e Djoy Amado. Fizemos uma homenagem ao Kaká Barbosa, o projecto chama-se “testason”. No segundo projeto, fizemos homenagem ao Catchás e chama-se “refleson”. Estamos a trabalhar no terceiro projeto e é mais uma celebração.

Qual é o músico que mais te inspirou durante o teu percurso?

Há vários músicos, mas digo que Katxás foi o mais evidente. Acho que é um dos expoentes máximos da nossa terra. As obras que ele fez há 45 anos ouvimos ainda como algo novo. Depois destes anos que já se foram, as crianças de 2000 que não o conhecem e ainda não tinham nascido, mas há dias estavam a cantar a música que Katxás fez em 1980. Ele é um dos maiores.

Em termos de compositores eu acho que o Ano Nobo é a minha grande inspiração. Fiz uma música de homenagem a São Domingos, que o Calu Bana cantou. Ele ouvia muito essa música porque também fazia referências a ele. Ele disse-me que sou a única pessoa que podia lhe tomar as “costas”. Na altura não comentei, mas agora passei a comentar dizendo que agora consigo tomar as “costas” do Ano Nobo, não para fazer as coisas melhor do que ele fez, mas como ele já não está mais entre nós, posso responder por ele dando a continuidade ao seu legado, que não compete somente à minha pessoa mas à geração liderada pelo nosso grande KIM di Nanda. Sem que fazer comparações, porque não conseguiremos ser melhores do que estes grandes artistas que vieram antes de nós, porque as oportunidades eram diferentes, a nossa vida agora é diferente, o que fizeram foi duma sabedoria plena.

Como avalia a música cabo-verdiana neste momento com as alterações e as fusões?

Eu vejo como uma coisa boa, não podemos ficar no mesmo lugar. Nós temos a nossa cachupa, mas agora nós não estamos a fazer cachupa “piu-piu”, sem nada, estamos a colocar um tempero diferente para ficar mais gostosa. Mas, também vemos músicas com pouca qualidade. E se nós não apontarmos o dedo no que não está bem, não vamos conseguir melhorar, há por aí muito barulho, mas também há muita coisa boa. Às vezes o barulho sobrepõe à qualidade. Somos mais de ouvir aquilo que está na moda, somos um povo de “à moda”. E a valorização, neste momento, infelizmente, é daquilo que tem menos qualidade. Há um consumo da mediocridade. Estamos a realizar um trabalho– “terreru” – que é uma tentativa de trabalhar através da educação, tirar a música da sala de dança para a sala de aula. Se um povo for culturalmente forte, ele é livre. Mas, se não for culturalmente forte, é dependente daquilo que vier. Se vier “hip hop”, somos “hip hop”, se for “cotxi pó”, é “cotxi pó”. Não temos uma identidade. Veja que as pessoas não conhecem Amilcar Cabral, não conhecem Carlos Alberto Martins, não conhecem o Norberto Tavares, Kaka Barbosa, Nha Nacia Gomi, Nhu N’toni denti d’oro, Nhu Ano Nobo, enfim muitas entidades culturais que só podem se salvar se isso forem inseridas no sistema de ensino e como disciplina curricular.

Quer dizer que a política governativa falhou nesse aspeto?

Eu acho que sim. Acho que a política falhou um pouco porque as autoridades não têm um programa que ajuda a esse combate. Os políticos não conversam por exemplo com artistas e agentes culturais. Eu não me coloco nesta lista porque estou longe, mas aqueles que ainda estão vivos, estão no país, estão perto dos políticos e totalmente disponíveis para serem consultados, para darem as suas contribuições sobre a cultura, a nossa vivência coletiva. Nós não somos dono de nada, somos todos ignorantes, existem muitas coisas que não sabemos, mas muitas vezes os políticos não se preocupam em fazer esse tipo de recolha ou esse tipo de aproximação para ver onde é que eles podem encontrar mais valia junto de pessoas que têm sabedoria para ajudar o país a posicionar da melhor forma.

Acha que este problema tem a ver com alguma crise de identidade em Cabo Verde?

Tem a ver com o colonialismo, são coisas coloniais. Às vezes eu penso que se um dia eu falar isso, algumas pessoas vão sentir-se ofendidas. Eu estou longe, mas muito perto. Como disse anteriormente, tenho muito apego à terra, tenho muito respeito pela natureza, e pelo lugar onde nasci. É ali que reconheco o meu espaço, Eu consigo fazer uma análise lá dentro, apesar da distância.

Achas que as entidades governamentais e políticas devem introduzir as nossas referências culturais, históricas no currículo escolar, quando um jovem não sabe quem é Katchás é porque não lhe foi ensinado..

Os jovens não são culpados. As entidades, às vezes, parece que não têm interesse na divulgação da cultura. Vou citar só um exemplo aqui. Tiveram a oportunidade de ir ao Dubai, há 2 anos, para “expor” o nosso Cabo Verde e foram fazer o contrário, não levaram Cabo Verde. Não levaram uma autoridade máxima da nossa cultura, o porta voz.” Zeca de Nha Reinalda” para fazer o retrato da fome de 47 ou Tó Martins, o maior género musical da nossa verdadeira história. Não levaram o grupo Tradison di Tera, da Teresa, para cantar batuku e apresentar as nossas origens; mas levaram muitos jovens que não conhecem muito daquilo que nós estamos a falar aqui, não conhecem a história. Mas, eles não são culpados, não tiveram formação. Isto é como ir ao cinema e ver um filme nos últimos ¾ de tempo e depois vir contar a história do filme inteiro. Foi isso que foram fazer em Dubai. Vi muita bagunça como dizem os brasileiros e vê-se claramente que não estão nem aí para a cultura.

O problema da nossa gente é como os nossos festivais. Sou e continuo a ser um apoiante desta grande manifestação musical em todo o país. Agora a verdadeira questão e essa, quem ganha com isso? Aonde está o dividendo deste investimento?

Cabo Verde ganhou????? Gostaria de saber.

Quem saiba que diga.

Achas que os nossos governantes fazem isso por ignorância, por incompetência ou existe algum propósito nisso?

Os três...

Se te colocassem como ministro da cultura que inovações traria?

Faria uma introspeção profunda antes de aceitar o cargo. A gente não pode dar o que não tem. Costumo dizer que eu gostaria de ser milho.

Milho? Como assim?...

Milho é a substância mais forte que há em Cabo Verde; com o milho fazemos cachupa, cuscuz, papa, tenterem, camoca, pastel, massa, torradinha, e o milho serve também para perfume: “milho ilado” – milho serve dar trazer um cheiro gostoso, em cheiro sabe. O milho está na essência de tudo em Cabo Verde.

A cultura de Cabo Verde espera por isso? Espera por um cheiro gostoso?

Absolutamente! Neste momento o cheiro está como a antiga “ Praia Negra”.

Como é que você traria esse cheiro em termos de projetos concretos?

A música tem um papel importantissimo no desenvolvimento duma sosiadade. A implementação dessa matéria no sistema de ensino, começando pelo Jardim Infantil, daria á nossa sociedade uma outra dimensão, principalmente na faculdade emocional. Agora o problema é o reconhecimento do tal déficit que existe e que e vem sendo ignorado pelas entidades responsáveis.

Eu fui apoiar a criação de uma escola de música em São Domingos. Organizamos um grupo, eu sempre acredito em grupo, grupos fazem coisas extraordinárias porque sozinho é sempre mais difícil. Fizemos uma equipa e levamos daqui 24 guitarras, não me lembro da quantidade de pianos e microfones – as guitarras eu sei porque como eu lido melhor com elas, fiz esse inventário –, palhetas para metais, baterias, violinos. Levei para São Domingos, em 2013, fizemos a inauguração da escola com um festival, e teve a participação de artistas e entidades importantes como o ministro das comunidades, ministro da cultura, presidentes da câmara e vereadores de todos os concelhos da ilha de Santiago. No dia seguinte,o Presidente da República foi visitar a escola e falei com ele sobre o projeto. Acreditas que hoje, 10 anos depois, não há nem um instrumento sequer na escola. A escola fechou. A visão era criar uma “universidade” de música, pois no passado São Domingos foi o primeiro município onde teve uma “universidade” na ilha de Santiago, em Variante, uma escola de formação de professores para educar a ilha de Santiago e Cabo Verde. De São Domingos formaram professores que foram lecionar em Angola, por exemplo. A história não se apaga e as pessoas precisam saber isso. Eu sou de São Domingos e o meu objetivo era conservar valores. Para se ter universidades, primeiro precisa-se de escolas para os estudantes ganharem interesse e depois irem para uma escola de música. Cabo Verde é uma terra de música, mas não tem uma conservatória. Dizem que Cabo verde não tem nada, mas tem música; e entretanto, não há uma conservatória. O objetivo era esse, era começar. O plano era fazer 10 escolas, a partir dessa escola piloto, e implementar em todos os concelhos da ilha de Santiago. E, a partir daí para os estudantes criarem interesse, e dessa aprendizagem criar aptidão para a música nas crianças, nos estudantes, para ganharem interesse. E, depois, a partir desse interesse e modelo criar uma conservatória de música.

Para além da música, na cadeira de ministro da cultura, o que mais faria?

Se caliar vou seguir este raciocínio…mencionei acima que iria fazer uma introspeção profunda e então decidiria na compatibilidade com o cargo, para não haver a dissonância entre o estatuto e o desempenho. Porque acredito na competência e não no encaixe financeiro, ou no estatuto social.

Nasceu em Lém Pereira?

Não, nasci na zona de Boavista, em São Domingos, uma localidade que não tem música, na minha zona ninguém fazia música.

Quando veio para os EUA?

Vim em 1989.

O que é que você acha da comunidade emigrada aqui? Acha que está bem integrada e com uma boa conexão com Cabo Verde?

Respondo que sim e não. E, falo por mim. Daqui do meu gabinete, represento uma companhia americana de distribuição de produtos financeiros, cotada na bolsa de valores da Nova Yourk, sou licenciado e especializado na área de seguros e envestimentos e sou um dos vice-presidentes da companhia.  Não achas que tenho alguma coisa que eu posa partilhar com a minha gente, neste caso lá em São Domingos, ou seja, o que eu quero dizer com isso é que falta a conexão. Eu faço recomendações financeiras a pessoas aqui neste pais. Já lá vão 21 anos na área das finanças. Para mim a vida é feita de partilhas de conhecimentos. Estou aberto para servir a qualquer momento.

Como classifica este tipo de posicionamento em relação à nossa diáspora?

O colonialismo, o complexo, ainda está na mente e é difícil. É a ignorância, a incompetência, as duas coisas juntas.

Depois da independência este quadro não podia ser alterado com uma política mais voltada para as nossas origens?

O Catchás tentou. Ele disse numa entrevista em 84 que viu aquela força que a música tradicional de Cabo Verde tem. Por isso aquela música “batuku, tabanka, funaná, ê keli ki ê di nôs”. Ele viu isso e fez um trabalho tremendo no funaná juntamente com os colegas no Bulimundo.

Tendo em conta toda esta importância, acha que falta alguma coisa, por exemplo, a nível do nosso sistema de ensino, introduzir esses criadores, esses produtores….

Eu acho que é fundamental.  Estudamos a história do mundo, do ocidente, do oriente, o Diogo Gomes, etc...... Mas, é preciso estudar Cabral, Catchás, Norberto, Kaká, Manuel de Novas, Nha Nacia, etc...... É preciso estudar porque a cultura é a liberdade de um povo.  Se um indivíduo não conhecer a sua  cultura é um indivíduo preso á ignorância e sem uma identidade própria. Neste momento, estou a fazer um trabalho com uma criança, o projeto sairá em outubro ou novembro nas escolas para crianças em Cabo Verde. Estamos a trabalhar à distância. No ritmo que o país está, não se consegue fazer nada. Por exemplo, o nível de criminalidade tem a ver também com música, pois a música afeta emocionalmente e muda o comportamento das pessoas. É fator fundamental. Quer saber se uma sociedade é civilizada, veja o tipo de música que eles ouvem. Vou dar-te um exemplo: coloca um concerto de jazz num lugar, “cotxi pó” num outro , ou hip-hop. De certeza que no lugar onde está o jazz não vai haver mal estar, uma guerra, sabes porquê? Por causa da paz, da tranquilidade que este género musical transmite. O que eu quero dizer é que, o conteúdo lírico, a harmonia e o estilo musical têm influência directa porque afetam emocionalmente as pessoas.

Quer dizer que o tipo de música que está sendo divulgado em Cabo Verde pode estar a alterar o comportamento das pessoas?

Sim, em mais de 75%. Repare quando é que as coisas começaram? Que tipo de música é que nós ouvíamos? Muita qualidade, e depois dos anos 90 o que passamos a ouvir? Veja estas pessoas calças baixas, tronco nu ,etc... Antes não havia isso. A música é fundamental no desenvolvimento de uma sociedade.

No caso, a comunicação social tem alguma culpa no cartório com a promoção, a divulgação...

Claro. Todos são livres para fazerem o que quiserem. Mas, quando divulgas algo, deves ser seletivo porque senão não há crescimento. Todas as músicas devem existir, mas o reconhecimento é fundamental. Se reconhecemos o medíocre, este é que vai crescer, se reconhecermos qualidade esta também cresce.  Porque a vida é feita de momentos, de reconhecimentos e de agradecimentos. Assim é a vida, só cresce o que reconhecermos.

Só para concluir, percebo perfeitamente que a nossa gente não está preparada para ouvir e enfrentar a verdade. O colonialismo partiu mas as sequelas ficaram enraizadas. Ouvi dizer por muitos que o Funana não é música de Cabo Verde, mas sim um folclore da ilha de Santiago.

Agora perguntamos: O CALU DI GUIDA nasceu em São Domingos, na Ilha de Santiago, de que país ele é?

Temos que parar com isso. Já estamos há muito tempo nisso.

A nossa história só pode ser credível se contada pela nossa gente.

Basta de mentiras, o FUNANA é o maior género musical de Cabo Verde.

Declaro fim do colonialismo musical no nosso país..........

 

 

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