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"A minha escrita literária é da memória dos homens e mulheres que estão em mim"
Entrevista

"A minha escrita literária é da memória dos homens e mulheres que estão em mim"

Mana Guta, lança "Libru Grande di Nhara Sakedu Volume I" e "Língua de Berço", pelas 18 horas de 27 de Março, dia da Mulher Cabo-Verdiana, na Biblioteca Nacional. Neste exclusivo ao Santiago Magazine, a escritora, que é professora de literatura, afirma que estamos perante uma data de celebração. "No Libru Grande di Nhara Sakedu, a figura é propositadamente feminina: por um lado, porque retomo a simbologia da mulher, duplo da terra, detentora do útero-chão de onde brotam todas as sementes, inclusive a masculina", explica.

Santiago Magazine - Acaba de marcar a apresentação pública do seu livro « Libru Grande di Nhara Sakedu Volume I» e «Língua de Berço», para esta terça-feira, 27 de Março, dia da Mulher Cabo-verdiana. Algum significado especial ?

Mana Guta - Sim. Porque um dos objetivos do livro é registar as memórias da sabedoria popular, que está ligada aos ciclos de vida e transmite uma forma diferente de educar : pelo afeto, mas através do desafio à inteligência. Educar é tarefa também do homem, mas, no caso do "Libru Grandi di Nhara Sakedu", a figura é propositadamente feminina: por um lado, porque retomo a simbologia da mulher, duplo da terra, detentora do útero-chão de onde brotam todas as sementes, inclusive a masculina.

Por outro lado, e para além do sentido poético, há razões práticas: esse pensar-saber filosófico e vivencial foi-nos transmitido por senhoras a quem era proibido aprender a ler e escrever. Urge, assim, registar, em nome delas, por justiça e em homenagem a elas, mas para o bem de todos nós.

Já agora, o que é que significa para Mana Guta o dia da Mulher Cabo-verdiana ?

Um dia de celebração. Escolho a palavra celebrar, em vez de comemorar, porque não é um dia de festa. É um dia de reconhecimento e reflexão. Comemoramos, Com Gratidão, pois temos que reconhecer, com o Índice de Desenvolvimento Humano que Cabo Verde se orgulha de ter conquistado, que mulheres da minha geração são umas felizardas. Mas ainda vale a pena refletir, porque cada mulher enfrenta, no seu dia-a-dia, desafios enormes só por ser mulher e outros desafios iguais aos que o homem enfrenta. A mulher cabo-verdiana faz grandes sacrifícios pessoais, pela família e nas mais diversas esferas sociais, sem que isso tenha sequer visibilidade, quanto mais reconhecimento. Sacrifícios a que as pessoas estão tão acostumadas a ver como "o dever da mulher", mas que, afinal, não são. Alguma justiça precisa-se.

"As pessoas, homens e mulheres, precisam ser ensinadas a ouvir, a aprender e a falar sobre este assunto, com a mesma paciência e firmeza que o Estado ensinou, de 1975 ao presente, a importância das vacinas, da amamentação, das meninas frequentarem as escolas, do cuidado pré-natal e planeamento familiar, da educação ambiental, da tolerância, do amor patriótico.

O movimento feminista está na moda hoje em dia. Muitas discussões sobre a mulher, os seus direitos, a questão do género… enfim! Enquanto escritora, académica, mulher, mãe, esposa, como é que vê este movimento todo?"

Vejo um avanço, porque existe uma escuta ativa, existe algum diálogo, e o assunto está nas agendas de muitos responsáveis políticos, religiosos… e outros movimentos sociais em geral. Mas vejo ainda muita desinformação e muita bipolaridade nos discursos… o que, a meu ver, despotencializa os resultados a alcançar. Não é um assunto das mulheres, nem é a oportunidade de as mulheres se vingarem dos homens pelos prejuízos causados às diferentes gerações. É um assunto que interessa a todos e que precisa de consensos, para o bem de todos.

As pessoas, homens e mulheres, precisam ser ensinadas a ouvir, a aprender e a falar sobre este assunto, com a mesma paciência e firmeza que o Estado ensinou, de 1975 ao presente, a importância das vacinas, da amamentação, das meninas frequentarem as escolas, do cuidado pré-natal e planeamento familiar, da educação ambiental, da tolerância, do amor patriótico. Tanta coisa bonita nesta terra foi conquistada, porque foi ensinada com cuidado, como aquela sementeira que fazemos e a chuva não vem; mais a outra que fazemos e o macaco daninho rouba a semente, ou o corvo agoirento tira; ou o vento leste, mesmo depois de a semente brotar e o milho crescer, acaba fustigando as plantações, em regime de turno com as pragas. Exatamente assim: e semeamos de novo, e pedimos a Deus que a chuva venha e, suor e sangue, cuidamos, mondamos, remondamos, com a esperança da colheita. Nunca pensamos que o fruto colhido não compensa o esforço feito: ficamos felizes com a corta, porque é suor do nosso rosto e vem da terra que amamos. As questões de género é um desafio que só dará fruto bom se homens, ao lado das mulheres, se envolverem « ilha a ilha, dor a dor, amor a amor » (como disse Ovídio Martins)

Passemos para a literatura. Libru Grande di Nhara Sakedu, porquê? A que se deve este título?

Nhara Sakedu é uma personagem de Outras Pasárgadas de Mim (2014) que os leitores amaram e lhe deram uma importância tão grande, a ponto de ela ficar sufocada no espaço que eu lhe havia destinado na minha obra. Dei-lhe um espaço-texto, para ter seu livro próprio, extravasar e, assim, poder dizer a que veio. Do saber dessa personagem, estão centenas de provérbios, adivinhas e histórias de vida. Por isso o Volume I, porque haverá outros.

A senhora formou-se em letras. É professora de literatura no ensino superior. É escritora. Como surgiu a escrita na sua vida ? Foi a formação em letras que chegou primeiro ou a escrita?

Eu escrevo porque muito escutei dos mais velhos e porque li muito : isto é natural. Posso dizer que sempre escrevi. Mas publicar é um ato de coragem. O primeiro artigo académico é de 1992, seguido de vários outros que, como o primeiro, são da área de Letras. Mas o primeiro livro não académico publicado foi escrito em 2012 : vinte anos depois. Porque a minha escrita literária é uma postura política : só escrevo porque, antes da minha mãe, todas as outras mulheres até Eva, nunca foram à Escola. Com os meus ascendentes masculinos, acontece o contrário, mas da linhagem das mulheres, ela foi a primeira. Chegou a ser professora, uma profissão que lhe destinaram, em lugar de médica, que era o que ela realmente queria ser. Então, a minha escrita literária não é da professora de literatura e, sim, da memória dos homens e mulheres que estão em mim.

Já agora, na sua escrita literária quais são os seus temas preferidos ? Como é que escolhe os seus temas?

Os temas é que me escolhem, quando se tornam relevantes no meu coração, quando me fazem feliz, quando me tiram a paz,... sou capaz de escrever sobre qualquer tema. Mas há sempre : o amor à cultura cabo-verdiana, a superação, o dever de entre-ajuda e a escrita como arma de luta…e outros tantos que me desassossegam.

Quais são as suas grandes referências, ou influências literárias?

Eis a pergunta que não consigo responder : recomendo alguns autores, como referência, do ponto de vista técnico, mas tenho outras preferências como leitora. Todos me influenciam.

Diz-se que Cabo Verde é um país de artistas. Concordas com esta afirmação?

Concordo, do ponto de vista da diversidade artística, da relevância e da qualidade das obras de diferentes formas de arte. Mas faço um alerta : a importância emocional e afetiva que nós cabo-verdianos damos à cultura e aos artistas e autores precisa ser revertida e ter impacto positivo na vida do artista. Na vida dele, nos bolsos dele : neste mundo real, material e concreto. Porque, de imaterial, chega a arte.

Como avalia a literatura cabo-verdiana nos seus diferentes domínios e valências?

Toda ela é rica e pujante e está em reinvenção. Quando me dizem literatura, estou a pensar também, no sentido lato, incluindo na poesia cantada, presente na música. São diferentes facetas que completam a literatura « convencional » e trazem a nossa marca de resistência e afetos, presentes na língua cabo-verdiana.

"As associações de artistas de diferentes modalidades têm realizado atividades sublimes (muitas vezes gratuitas), às quais poucas pessoas assistem : é um desperdício. Há muita generosidade em criar, produzir e partilhar, mas há pouca disponibilidade em acolher, valorizar ou, ao menos, desfrutar. Cada um de nós que reflita sobre o que fazer para melhorar."

Que diria às jovens mulheres que pretendem escolher o caminho da escrita literária?

Que leiam bastante, a começar pelo que tiverem em mãos, seguido do que puderem ler com facilidade… leiam por deleite. A quantidade levará à seleção e à formação do leitor. E a leitura levará à escrita. Que não cobrem de si um best-seller. Escrevam pelo prazer do texto, porque, depois, não passarão sem escrever. Partilhem o texto sem medo. Não matem a arte por medo da recepção. Façam, primeiro, a escrita em jorro. O estilo de um escritor não se define por decreto. É a sua marca que se vai surgindo da destreza do muito escrever e do seu olhar perante a vida e as coisas. Tudo o mais é um mistério.

O mundo cultural cabo-verdiano é multifacetado. Aqui produz-se música, teatro, literatura, pintura, culinária. Na sua opinião, há uma política pública de cultura em Cabo Verde?

Oficialmente há sim. E nos diferentes programas do governo sempre houve. E penso que boa-vontade também há. Sinto falta é de articulação entre os artistas, os diferentes setores do Estado e a sociedade. Falo melhor da literatura : sei que há livros nas estantes aqui, por vender, e há países onde se procuram os nossos livros, a preço de ouro, e não se encontram; enquanto isso, os escritores precisam « dar saída» aos livros publicados e acabam por não publicar outros, para não se endividarem mais do que o necessário.

As associações de artistas de diferentes modalidades têm realizado atividades sublimes (muitas vezes gratuitas), às quais poucas pessoas assistem : é um desperdício.

Há muita generosidade em criar, produzir e partilhar, mas há pouca disponibilidade em acolher, valorizar ou, ao menos, desfrutar. Cada um de nós que reflita sobre o que fazer para melhorar.

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