Incidente diplomático? Embaixadora dos EUA não apresentou credenciais ao PR e assina protocolos com o Governo
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Incidente diplomático? Embaixadora dos EUA não apresentou credenciais ao PR e assina protocolos com o Governo

A embaixadora indicada para representar os Estados Unidos em Cabo Verde ainda não apresentou as cartas credenciais ao presidente da República, mas Jennifer Adams, nomeada por Biden desde 2022 para substituir Jeff Daigle, vem mantendo contactos com o Governo e várias entidades e inclusive assinou, no início deste mês de Agosto, um protocolo a nível da aviação militar com o Ministério da Defesa, a partir dos EUA, sem conhecimento do Palácio do Plateau. Uma situação anómala e irregular para o qual o Executivo tem fechado os olhos e tirado proveito mediático em busca de protagonismo.

“No dia 2 de agosto, a senhora ministra Janine Lélis, em total desrespeito pelas mais elementares exigências de transparência e de ‘convívio’ institucional, aceitou a ‘boleia’, em avião militar americano, para ir no Estado de New Hampshire, assinar um Memorando de Entendimento entre o Governo de Cabo Verde e o Governo dos Estados Unidos da América com foco para a implementação a Aviação Militar, esquecendo que a nova embaixadora dos EUA em Cabo Verde ainda não apresentou as cartas credenciais ao senhor Presidente da REPÚBLICA”, alertava a 16 de Agosto, o nosso colunista António Santos, num artigo de opinião ('Já não respeitam o Presidente da República') onde chamava atenção para a enorme “gaffe” do Executivo, na pessoa da ministra Janine Lélis, em termos de relacionamento institucional que deve existir entre o Governo e a Presidência da República. “Provavelmente, com o intuito de desvalorizar o papel do PR de creditar embaixadores”.

De facto, Jennifer Adams, nomeada embaixadora para Cabo Verde desde Julho de 2022 por Joe Biden, esperou até Julho deste ano para vir substituir Jeff Daigles. Só que a embaixadora-indigitada norte-americana apenas entregou cópia das cartas credenciais ao Governo (Cartas Figuradas), o que significa que até apresentar pessoalmente as credenciais oficiais ao Presidente da República não pode participar em qualquer acto formal, como por exemplo assinar o 'protocolo de New Hampshire' com o Governo e com direito a divulgação na comunicação social.

Normalmente, de acordo com os procedimentos protocolares e diplomáticos, um embaixador-nomeado entrega primeiro cópia das cartas credenciais ao Governo, geralmente ao director do Protocolo, e este depois acerta com o Presidente da República a data da entrega formal das cartas que o acreditam no país como embaixador, e que oficializa a sua missão. Entretanto, desta vez foi o próprio ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Figueiredo Soares, a receber os documentos, com direito a fotografia postada inclusive pela página da Embaixada dos EUA no Facebook.

Além disso, desde que aterrou na Praia, Adams já foi recebida por vários ministros e participou em outros tantos eventos e encontros com presidentes de Câmara, tudo mediatizado, outra 'gaffe' grosseira, já que enquanto não estiver acreditado e formalmente aceite pelo PR como Chefe de Missão (embaixador), nenhum representante diplomático deve estabelecer contacto com a imprensa. O vice-primeiro, Olavo Correia, foi o primeiro a receber Jennifer Adams, que depois foi aparecendo nos gabinetes da minsitra da Justiça, Joana Rosa, da ministra dos Assuntos Parlamentares, Filomena Gonçalves, além de encontros com os presidentes das Câmaras da Praia, Francisco Carvalho, e de São Domingos, Isaías Varela, este último num acto formal de encerramento de um curso.

A Presidência da República não fala sobre este assunto, mas fonte conhecedora do processo afirma que esta situação tem sido provocada pelo Governo, em busca de protagonismo. “O Governo agora instituiu uma nova modalidade: o ministro dos Negócios Estrangeiros é quem assume directamente a recepção das cartas credenciais de novos embaixadores, faz as apresentações da casa e só depois informa o PR sobre o novo representante diplomático. O Governo tenta minimizar o PR ao máximo”, diz a fonte, sublinhando que o mais caricato foi a ministra da Defesa, Janine Lélis, deslocar-se aos EUA, num avião militar daquele país, para ir assinar um protocolo a nível da aviação militar com uma embaixadora-nomeada a actuar fora da sua área de jurisdição. “Ainda que tivesse apresentado as cartas credenciais ao PR,  a sua jurisdição é Cabo Verde. Ela representa externamente os EUA em Cabo Verde, não pode representar o seu país no seu próprio país”.

Com efeito, segundo as regras diplomáticas internacionais, a Embaixada do país emissor deverá enviar uma nota verbal ao Protocolo do Estado a solicitar encontros do novo Chefe de Missão com o Secretário-geral e Chefe de Protocolo do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Aquando da visita ao Secretário-geral, o Chefe de Missão entregará cópia das suas Cartas Credenciais (também chamadas de Figuradas) e cópia da Carta de Chamada do seu antecessor. As cartas originais devem ser acompanhadas de uma tradução não oficial em francês (língua franca da diplomacia) ou em inglês.

Feita a verificação das Cartas Credenciais, o Chefe do Protocolo transmitirá um pedido de audiência ao Presidente da República, para a apresentação das Credenciais. Após estes encontros com o Secretário-Geral e com o Chefe de Protocolo, o Embaixador poderá iniciar contactos com todos os departamentos do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Até à apresentação de Credenciais à Sua Excelência o Presidente da República, o Chefe de Missão não deverá contactar o Presidente da República, o Primeiro-Ministro ou o Presidente da Assembleia da República, nem comparecer em cerimónias oficiais onde os mesmos estejam presentes. O Chefe de Missão deverá também, neste período, abster-se de contactar a título oficial órgãos da comunicação social”, conforme se lê no regulamento das Missões Diplomáticas.

Ora bem, Jennifer Adams, “com tapete estendido pelo Governo de Cabo Verde”, ignorou muitas dessas regras e procedimentos, provocando um eventual incidente diplomático incomum nas excelentes relações entre Praia e Washington. 

Santiago Magazine quis ouvir a embaixadora-indigitada, mas, precisamente porque ainda não se fez oficializar como Chefe da Missão norte-americana, não foi possível. No entanto, este jornal ficou a saber junto da embaixada dos EUA que Jennifer Adams não apresentou ainda as cartas credenciais ao PR por culpa da própria Presidência, que agendou para 10 de Setembro a data da entrega das cartas. “A PR marcou essa data para receber e acreditar mais quatro novos embaixadores, incluindo a nova embaixadora dos EUA. Na verdade, havia assim por alto a ideia de que esse acto aconteceria lá para Novembro, mas a Embaixada norte-americana pressionou e foi ‘antecipado’ para Setembro. É que, desde a saída do anterior embaixador, Jeff Daigles, em Julho, a Embaixada está sem Chefe de Missão e os EUA não podem estar seis meses com uma embaixadora-nomeada sem estar acreditada no país. Aliás, temos vários programas e dossiers pendentes por causa disso”. 

A Embaixada dos EUA esclarece ainda, oficiosamente, que os encontros de Jennifer Adams com membros do Governo não são considerados formais – “veja que ela é tratada como embaixadora-nomeada em todos os encontros” – e que a cerimónia de New Hampshire (memorando que visa o reforço da Esquadrilha Aérea de Cabo Verde, orçado em cerca de 6 milhões de dólares e que prevê a formação e a qualificação de pilotos e técnicos de manutenção e realização de missões e exercícios militares no nosso território), onde aparece a assinar um protocolo com a ministra da Defesa foi meramente figurativo. “É que este protocolo já existe, pelo que esse evento foi apenas simbólico”.

Seja como, o facto é que essa situação não caiu bem nalguns quadrantes da sociedade (o artigo de António Santos é disso exemplo) que não gostaram nada da postura do Governo em chamar para si todo o protagonismo na acreditação da nova embaixadora, deixando o PR propositada e literalmente em segundo plano.

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine

    Comentários

    • Casimiro Centeio, 4 de Set de 2024

      Em Cabo Verde não são necessárias as leis para governar o país.
      As leis são Ulisses, Olavo, o Mpd e o seu desgoverno.
      Quantos exemplos dessa natureza temos ?

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