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Pilão Cão
Elas

Pilão Cão

Durante toda a minha infância, morei em Calheta, Veneza, e esse era o meu Mundo. Um mundo gostoso, um mundo de afetos. No máximo, ia-se até o Porto, que era onde nós chamávamos de Calheta. E pouco mais.

Quando o Pai passou a trabalhar na Transcor, era possível ir a Pilão-Cão, todos os dias, se quiséssemos. E nós queríamos. Pilão-Cão sempre foi um lugar mítico para nós: primeiro, porque era o único lugar de São Miguel que paria água doce, assim chamada “Água de Machado”; segundo, porque ninguém entendia o que Pilon-Kan teria a ver com Pilão Cão. Então o lugar bem parecia aquelas crianças que a Mãe escolhe o nome, ainda no ninho, e o Pai sai direto do trabalho a registar sozinho o Codê; e, last but not the least, todos os sacerdotes que nós conhecíamos eram brancos, excepto os de Pilão-Cão. Achávamos que lá devia haver algo muito especial, pois se conseguia fazer-nascer-crescer sacerdotes que eram assim iguais a nós: com a mesma cor, com o mesmo cabelo bedju-crespo e que sabiam falar a nossa língua. FALAR A NOSSA LÍNGUA, PARA NÓS, CRIANÇAS, FAZIA PARECER QUE JESUS ERA REALMENTE NOSSO IRMÃO E QUE TODAS AS COISAS DE DEUS ERAM TAMBÉM NOSSAS. AS BÊNÇÃOS DOS NOSSOS GRANDES, O CARINHO DOS AMIGOS, A NOSSA COMIDA SÁBI, OS LUGARES EM QUE MORÁVAMOS E AONDE ÍAMOS VISITAR OS NOSSOS PARENTES AMADOS… O MAR…TUDO O QUE ERA BOM E BONITO TINHA UMA PALAVRA GOSTOSA, NA LÍNGUA DE BERÇO.

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E todos éramos felizes.

Um dia, veio uma cheia muito forte que levou tudo o que havia na Ribeira de Manguinhos: gado, casas, pedras, bidões de milho, tamboros de feijão …e até a nossa Tia. Foi tudo parar ao mar. Nunca a Passadeira teve nome mais verdadeiro. Tudo por lá passou. Passou gente, passou mula, passou cacho de banana, passaram porcos gritando, pedras rolando, patos reclamando e galos que perderam o poleiro. No mesmo dia, nosso Pai quase morreu, mais umas dezenas de pessoas, a bordo do Zero Seis. A chuva levou algumas pessoas de Santiago para o mar. E até o carro Azulinha foi levado pelas cheias de Rocha Lama. Os passageiros foram se safando como puderam, com a ajuda dos moradores, desde Salina a Achada Fátima. O que vale a este povo é a amizade de sempre e a vontade de rebater, dizendo-fazendo, os desatinos do tempo; e socorrer os que precisam, sendo eles amigos ou desconhecidos.

Quando Azulinha, enfim, se safou, as pessoas deram Graças a Deus, mas, logo depois, chegaram notícias de Calhetona. Era o momento em que o Zero Seis também corria perigo. Mais valia terem ficado do lado de lá da ponte, quando puderam atravessar a Ribeira e passar pela Variante de Flamengos. Porque a Ponte de Calhetona ruiu e estavam a caminho de parar ao Mar.

As pessoas gritaram muito, de medo e de terror. Outras rezaram tanto, tão rapidamente, que, diz-se, Nha Maninha atropelou duas mil e quinhentas palavras de uma só vez; e foi isso que os salvou a todos. A bem da verdade, ANTES DA MAIOR CACHUPA DO MUNDO, FOI A ORAÇÃO DE NHA MANINHA QUE LEVOU OS CABO-VERDIANOS, PELA PRIMEIRA VEZ, AO GUINESS BOOK. Ela entrou em choque e continuou rezando por três dias, até que a chuva parou: Santa Bárbara, generosa: “Nha da-nu bida ki nha vivê Ka nha da-nu morti ki nha morê.” E fazia todas as orações de que já ouvira falar, uma atrás da outra. O Guiness Book registou, assim, a oração mais longa de todos os tempos.

Foi inacreditável: as cheias puxando para um lado o Zero Seis; as pessoas e o condutor, puxando para o outro lado. A ponte ruiu e foi parar ao mar. Levou tudo e, só por milagre e estratégia do motorista, não conseguiu levar o autocarro cheio de gente. Zero Seis aguentou firme e o Condutor foi um herói. Quem esteve lá conta que sentiu a estrada a se abrir e a água a entrar por debaixo do carro. Logo deveras, a fé move pontes e salva pessoas. E foi assim que Papai Velho, sensato como era, decidiu que, quando se tratava de chuvas e cheias, não estava nada compassado. E fez que nem o Nache: Ergueu sua casa branca de janelas azuis em Achada Batalha. Abriu o chão na ponta de praia, onde se ouvia a txabeta das ondas e o finason da Encantada.

No final das contas, do outro lado, a Tia nem sabia nadar, mas conseguiu, entre pedras, barrancos e tudo o mais, chegar viva ao mar. E lá foi salva por não me lembro quem. Não desafiemos a sorte. Então sim. Todos para Achada Batalha. Adeus Passadeira. Adeus Manguinho.

Assim foi.

Naquele ano, todos os lugares mais próximos foram afetados: perdeu-se gado, perdeu-se terreno, perderam-se os mais diversos produtos agrícolas. Desde Ribeireta e Txan pa Riba, Flamengos, Saltos, Ribeira de São Miguel, Ribeira de Principal e o seu querido Ortolon, até o Mangue das Sete Ribeiras... E a água abundante das cheias, mais serviu para estragar as nascentes e arrebentar os canos e as redes, do que outra coisa.

Enfim, só Pilão Cão permaneceu como dantes. Íamos lá apanhar água, encher os boiões, para levar aos mais diferentes cantos de São Miguel.

E assim ficámos durante três meses, até que as férias, enfim, terminaram. Em Outubro, reiniciaram as aulas e as crianças voltaram aliviadas para as escolas. É esta a história, do Ano da Graça, em que Pilon Kan passou a ser a Capital de São Miguel Arcanjo. E o seu Tadju, que, como todos os lugares crioulos, tinha o seu próprio sentido, sua própria razão de ser, com certeza, nada tinha a ver com talho. Na minha infância e, especialmente naquele ano cansado, achava que o nome Tadju devia ser de tadja, em crioulo (derivado de talhar, em português): de defender, de proteger.

Era bonito estar ali e olhar para baixo, naquela imensidão de verde. O verde, sim, era um bom filho da Chuva.

Logo deveras.

Camoes, mos, ba respondi Nhu Padri.

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Redação