O Pelé da minha infância!
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O Pelé da minha infância!

Estive a ver velhos vídeos de futebol, sem inicialmente entender o porquê de um sentimento nostálgico, uma procura errática de qualquer coisa. De repente estava a ver Pelé em campo, fintando tudo e todos. E foi imediato! A semelhança é enorme com um miúdo ligeiro, com as mesmas pernas arqueadas, uns pés sem limites para a fantasia. Cada gesto felino, milimétrico, perfeito. Driblava tudo e todos, enquanto sorria divertido, maroto, como se tudo fosse do mais banal e simples, quase sem compreender como é que ninguém sabia pará-lo.


Não me lembro desde quando, parece que o recordo desde sempre. A casa dele era uma espécie de “casa matriz” da Rua Serpa Pinto. Sempre cheia de gente que procurava a sabedoria e as mãos experientes do Sr. Té, e um redopio de amigos de todas as idades, pois de todas elas havia representantes natos. Casa grande, mas simples, e que pulsava felicidade.


O futebol era uma presença permanente. A televisão chegou cedo, numa altura em que era coisa rara – a atracão era enorme e a barulhada recorrente. Mas a Dona Titi, maestra experiente, mesmo na ausência do patrono, tinha estofo para manter a ordem, com uma serenidade que se impunha naturalmente. A família tinha pergaminhos na bola: o tio era lembrado como um dos imortais dos Travadores. Como o pai, aliás. O Zequinha era um tecnicista reconhecido que alinhou ao lado do lendário Rubom e do primo Beto, um bom jogador. O Guey e o Pedro não se saiam mal. E a Lena era já uma referência no feminino.


Mas o Nelito era um caso à parte, um daqueles que todos aguardavam para a lenda, pois não era simplesmente bom jogador: era o melhor de todos, com qualquer pedaço de qualquer coisa que lembrasse hipoteticamente uma bola. Era o tal que fazia a equipa de todos os “kabali” (eu estava sempre no lote!) e desafiava os melhores, para depois calmamente assumir o jogo, humilhar a todos com fintas impensáveis e vencer, não porque fizesse questão de superar a todos, mas pelo gozo da bola gerida sem falhas, tal mágico com o dom que compulsivamente exige ser realizado. Era o artista que conseguia fazer “tchim-tchim” da Pracinha da Escola Grande até à Pracinha do Liceu. Nunca mais ouvi ou vi nada semelhante!


E como se não bastasse, o miúdo cordial e educado era também de uma valentia impar. A educação rigorosa não aceitava a arruaça, mas não fugia à luta quando provocado ou em defesa dos amigos. Quando lhe impunham as brigas, ganhava sempre, mesmo a rufiões conhecidos e “brigadores” credenciados. Era um valente e um amigo confiável.

Quando desceu ao pelado da Várzea, não era mais um a tentar a sorte: era uma estrela brilhante com garantias absolutas! E maravilhou, mostrou lá, no futebol a sério, as credenciais de muitas topadas na calçada da Guerra Mendes, do braço partido na placa do Liceu Domingos Ramos e tanta canela esfolada nos disputadíssimos campeonatos de subúrbio. Sporting e logo a Académica, cumpria-se a sina. O hábito de ir ao Campo Grande, para nós, os amigos, tinha agora o aliciante da confirmação das expectativas de sempre. Ninguém se espantou. Todos esperavam. Afinal era o “Nelito Sôr-Té”! 

Mas a Várzea tinha razões próprias e sentenciava de forma cruel. Veio a lesão e logo o calvário dos dias sem futebol, com tentativas traquinas de superar a limitação. A vida tomara uma dura e irreversível decisão. A Alemanha chegou naturalmente. A Agronomia trouxe o verde de outros campos para preencher uma saudade mal disfarçada de um futuro escrito nas estrelas e que, teimosamente, nunca chegou. O Jung Ingenieur Sapinho é, não obstante, um jovem quadro atento e inquieto, profundamente convencido da necessidade de conjugar a sua profissão com uma presença engajada na cidadania ativa. Era ambicioso porque radical nos princípios, na intolerância ao facilitismo e no compromisso das vantagens comestíveis. Era o menino valente, convictamente disposto a enfrentar o mundo, com a força da sua inocência e o ardor da sua crença. 

Nos tempos do trabalho como engenheiro florestal

Difícil foi conviver com os tortuosos labirintos da Administração: sucederam-se as frustrações e as falsas partidas. A voz afinada, que combinava bem com uma morna cantada às tantas de uma longa noite, foi-se tornando mais rara. E a fé que se perdeu. E a infindável e dolorosa noite dos fantasmas afogados num canto discreto, cada vez mais esquivo, incompreendido e, provavelmente, sem compreender o trem imparável da vida, triturando a flor de um dom sob o cinzento chumbo da rotina dos dias. 

Infelizmente não está escrito na pedra o direito dos bons à felicidade. Às vezes até parece que a vida tem um prazer sádico em torturar as almas mais lindas, estranha e dolorosa sensação de ver o Todo-Poderoso mudo e quedo perante a injustiça de um jogo tão desigual. E nessa partida a doer, tantas vezes, os mais próximos não são suficientes para formar a equipa necessária para levar de vencida a iminência do algar. Quiçá não tivéssemos engenho para a tanto pretender. Mas, justa ou injustamente, longas serão as noites em que rolaremos no colchão esta sensação de não ter estado à altura do que ele precisava. Sejam quais forem os argumentos em nossa defesa, a verdade é que não fomos tão bons quanto se impunha. Ele não encontrou em nós os amigos que gostaríamos de ter sido, quando os olhos envergonhados gritavam um silencioso e lancinante pedido de ajuda. 

Nelito S'ôr Té, nos últimos anos da sua vida

E ficou esta saudade, velho Amigo, que não esquece os muitos dias felizes, tão poucos afinal, o teu coração generoso, a tua coragem de eleito e, inevitavelmente, as tuas fintas malucas, que todos conhecíamos, mas que ninguém conseguia imitar ou, mais difícil ainda, desarmar. Se há um Olimpo do Futebol, espaço perfeito e intemporal, imagino-te de lugar reservado na tua predileta “Squadra Azzurra”, num pelado apinhado, com uma bola imparável, levando ao êxtase os melhores de entre os adeptos, deixando o Beckenbauer de cabeça em água com mais um dos teus impossíveis toques de mágica. Pelé, ali mesmo ao lado, ri-se divertido.

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