NOTA:
Caros leitores, para aqueles que vêm seguindo STRIBILIN desde o início, quero alertar-vos que, se notarem incongruência nas últimas estruturas, terá sido por exigência dramatúrgica. Por exemplo, a Cena seguinte já havia sido publicada na 59ª parte, mas, por imperiosa necessidade, vem agora para aqui transferido.
CCL CENA
Dário sai em liberdade condicional depois de cumprir a metade da pena. Vai ter de enfrentar, doravante, adversidades mil, algumas extremamente delicadas e surreais. Está sentado no sofá da sala com um jornal na mão a ler.
DÁRIO [V. O.] – «”ANÚNCIO!” O Ministério da Agricultura, através do Gabinete de Sua Excelência, senhor Ministro, abre concurso para uma vaga de Técnico Superior de 3ª classe, para prestar serviços na Delegação do Mindelo, coordenando toda a região norte do país, ou seja, todo o Barlavento. Oferece-se remunerações compatíveis, bom ambiente de trabalho e progressão na carreira. Exige-se: ser licenciatura em Agronomia, idade superior a 25 e inferior a 35 anos, sexo indiferenciado, nacionalidade cabo-verdiana, disponibilidade imediata. Documentos obrigatórios: - Certificado de habilitação literária, certidão de nascimento, atestado médico, registo criminal e curriculum vitae. Dá a preferência ao detentor do certificado e habilitações literárias com a melhor nota».
DÁRIO (muito feliz) – Iupo! Agora é que é! O lugar é seguramente meu! Se aparecer muita gente iremos ao concurso e eu não tenho medo de concursos. Vou já dizer a Diana! Ela vai ficar muito contente! A coitadinha está farta de trabalhar por mim! Até que em fim! (Entra a Diana com um saco de compras na mão) Minha querida, estou feliz.
DIANA – O que é que se passa? Ganhaste no totoloto, na lotaria ou no euromilhões?
DÁRIO – Quase, Diana! Há uma vaga no Ministério da Agricultura, para trabalhar aqui em São Vicente como coordenador da área de Barlavento. Pedem licenciatura em Agronomia… e não somos muitos. Vou já fazer o meu curriculum e envio-o ainda hoje. (Pega numa folha de papel e começa a escrever. Depois dá a Diana para conferir) Verifica se não falta nada.
Diana vai deitar-se no sofá, com a cabeça no regaço do Dário e lê em silêncio.
DIANA [V. O.] – «”CURRICULUM VITAE”».
Nome: DÁRIO TUTE SIMOA DA CRUZ.
Filiação: João da Cruz de Alexandra e Helena Tute Simoa.
Nacionalidade: Cabo-verdiana.
Idade: 33 anos.
Estado Civil: Unido do Facto.
Bilhete de Identidade, nº 287392.
Morada: Monte Sossego, Rua 3, nº 86 – Mindelo, São Vicente.
Telefone nº 311828.
HABILITAÇÕES LITERARIAS:
Licenciado em Agronomia pelo Instituto Superior de Agronomia de Lisboa.
MÉDIA DO CURSO: 19 Valores.
CONHECIMENTOS DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS:
INGLÊS – Bom (5 anos no Liceu).
FRANCÊS – Bom (5 Anos no Liceu).
LATIM – Razoável (2 Anos no Liceu).
EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL:
ÁREA DO ENSINO:
Alfabetizador na Escola de Ribeirinha – São Vicente - Cabo Verde; Professor do Ciclo Preparatório em São Vicente – Cabo Verde. (Depois de leitura) Que bom meu amor! (Dário inclina-se e dá-lhe um beijo) Vais passar. Conseguir 19 valores na faculdade!… Não é para qualquer macaco.
DÁRIO – Vou ter um ordenado ao fim do mês, vamos mobilar a nossa casa, o nosso próximo filho vai viver como um príncipe. (Quando ele diz «o nosso próximo filho», a Diana lembra-se da filha falecida e fica triste) Bem, vou tirar os outros documentos para juntar e envio ainda hoje. (Levanta e dá mais um beijo à Diana antes de sair) Até já, querida.
CCLI CENA
Dário está sentado no sofá, contente com uma carta na mão.
DÁRIO [V. O.] (abre a carta e começa a ler em silêncio) – «Delegação do Ministério de Agricultura do Mindelo. Exmo. Sr. Dário Tute Simoa Da Cruz, vimos através desta informá-lo de que a sua candidatura para uma vaga de Técnico Superior de 3ª classe foi apreciada por nós e mereceu o nosso parecer favorável…».
Dá um pulo e deixa escapulir uma viva de contentamento. Diana entra na sala.
DIANA – Credo, Dário. O que foi?!
DÁRIO (continua com a leitura, já em voz alta) – «Houve quatro candidatos, mas as suas médias estão muito aquém da sua. Só para lhe dar uma ideia, a melhor nota depois da sua é uma de 13 valores. Pois, entretanto, é de lamentar, o Tribunal de Contas ter recusado o visto no seu processo, pelo facto de no seu Registo Criminal…
Pausa.
DÁRIO [V. O.] – Constar que esteve preso e condenado a pena maior. E como sabe, quem já tenha sido condenado pelos crimes descritos no seu RC, não pode ser admitido na Função Pública.
DÁRIO (arremessa a carta e levanta-se do sofá de um pulo) – Droga!
DIANA – Então?!…
DÁRIO – Desgraçado! O que vai ser da minha vida?
DIANA – O que é que aconteceu, meu bem? Estavas agora tão otimista!
DÁRIO – Estamos perdidos. A minha condenação foi perpétua.
DIANA – Perpétua?! Estás-te a passar, ou o quê? Desde quando em Cabo Verde isto existe?
DÁRIO – Apanha a carta e lê. Fui o melhor candidato… o único que apresentou um certificado com a média de 19 valores. Mas não me admitiram por causa do registo criminal! E agora? O que será da minha vida?
DIANA – Não desesperes, nem desanimes.
DÁRIO – Achas que consigo?! Aliás: achas que alguém conseguiria?
DIANA – Vou à casa de meus pais, na volta passo pela dos teus.
DÁRIO – Mas para quê?!
DIANA – Ocorreu-me uma ideia que… possivelmente poderá ser alternativa. Vou pedir-lhes uma opinião.
DÁRIO – Que alternativa? Que opinião? Eu já não aguento viver assim? Se as coisas persistirem deste jeito, mato-me e tudo fica resolvido.
DIANA – Credo, rapaz! Casta de ideia é esta?
DÁRIO – Não vou roubar para voltar de novo à prisão… e desta feita como um criminoso… como um ladrão!
DIANA (vai abraçá-lo e dá-lhe o conforto) – Reza e pedes a Deus que te livre de tentações e de maus pensamentos. Não penses fazer asneiras! O mais difícil já passou. Vai descansar no quarto enquanto vou à casa dos nossos pais. (Diana dirige-se a ele e dá-lhe mais um beijo e sai) Não demoro.
CCLII CENA
Na sala, sentados no sofá.
DIANA – Falei com o meu pai e com o teu também, contei-lhes o que se está a passar contigo, mandaram-me perguntar-te se não te interessava abrir uma empresa e trabalhar por tua conta.
DÁRIO – Para isso exige-se algum fundo, não é?
DIANA – Eles emprestam-te o dinheiro para iniciares.
DÁRIO – Óptimo! Pelo menos isso já é uma boa notícia.
DIANA – Telefonas amanhã para a Direção-geral do Comercio na Praia e pedes informação sobre um licenciamento para Importação e Exportação.
DÁRIO – Porque não tentar agora? Ainda os serviços públicos estão abertos! São ainda quatro horas da tarde.
DIANA – Então vai lá tentar.
DÁRIO – A nossa empresa vai chamar-se: «Sociedade Comercial Dário & Diana, Importação/Exportação – Lda.»
DIANA – D & D, traço, Limitada. (Abraçam-se) Vai agora ligar.
DÁRIO (ao telefone) – Estou sim? É da Direção-geral do Comércio? (Pausa) Quero uma informação, por favor. (Pausa) Quais são os documentos exigidos para uma licença de Importação/Exportação? (Pausa) Sim… (pausa) croqui de localização… (pausa) sim, senhora. (Pausa) Um plafond de cinco mil contos… (pausa) pode ser bens ou dinheiro. (Pausa) Certidão de registo… criminal?! (Pausa) Desculpe… quanto ao registo criminal, por que é que pedem? (Pausa) Como? (Pausa) Quem já foi… o quê? (Pausa) Condenado a pena superior a dois anos… (pausa) não pode? (Pausa) Não pode mesmo? (Pausa) Ok. Muito obrigado. (Pausa) Boa tarde.
Desanimado, Dário pousa o telefone.
DIANA – Não dá?
DÁRIO – Não. O registo criminal. Tinha ou não razão quando te disse que a minha condenação foi perpétua?
DIANA – Não desanimes. Tenho uma outra ideia.
DÁRIO – Agora nenhuma ideia serve. A minha vida acabou. Estou transformado num zero à esquerda.
DIANA – Tens razão! Uma pessoa licenciada, num país que também é seu, onde há escassez de quadros e de profissionais qualificados, não consegue trabalhar?! (Pára e pensa um bocado) Tens a tua carta de condução?!
DÁRIO – Tenho. Mas para que serve a minha carta de condução?
DIANA – Com o dinheiro que o meu pai e o teu te irão emprestar, compramos um táxi ou Toyota Hiace e ficas a fazer carreira entre o Aeroporto e a Morada.
DÁRIO – Mas a minha carta não dá para conduzir táxi nem Hiace. Ela é de ligeiros e amadora. Para conduzir táxi ou Hiace com passageiros é preciso ter carta de pesados, profissional e com serviço público averbado. Pelo menos com carta de pesados. Sem serviço público ainda… com quinhentos paus fechados na mão… o polícia poderá fechar um olho, já dá para safar.
DIANA – Porque não vais passar a tua carta para a categoria de pesados?
DÁRIO – Olha… deste-me uma boa dica.
DIANA – Então amanhã começa a tratar disso.
DÁRIO – Até porque, carta de pesados para mim é fácil. Só faço exame de condução e de mecânica. Isto é, mecânica, porque tenho carta de amador.
DIANA – E na condução tu não tens problema.
DÁRIO – Claro que não. Já conduzo há bastante tempo. Mas… é preciso de dinheiro para as papeladas, aluguer do carro e inscrição para o exame.
DIANA – Tenho um dinheiro guardado, da venda de seis jogos de rendas que fiz há dias. Com o meu ordenado que vou receber depois de amanhã, governamos a casa até ao fim do mês.
DÁRIO – muito obrigado. És o meu anjo.
Abraçam-se com ternura.
CCLIII CENA
Dário entra na sala todo contente.
DÁRIO – Diana, já meti os papéis, disseram-me que na próxima semana vão me chamar para o exame.
DIANA – Que maravilha! Nesse dia vamos jantar a casa dos meus pais.
DÁRIO – Se já estava a trabalhar, pagava-te o jantar num restaurante chiquérrimo.
DIANA – Há-de chegar esse dia. E se Deus quiser não vai demorar.
DÁRIO (dá-lhe um beijo) – Querida, vou descansar-me um pouco no quarto, porque estes dias vivi muito tenso.
DIANA – Então vai descansar enquanto eu aproveito ir ter com os meus pais.
Dário entra no quarto, Diana arranja-se e sai.
CCLIV CENA
Dário está na sala, sentado no sofá. Diana entra com uma carta na mão
DIANA – Querido, tenho esta carta pra ti. Encontrei-a na caixa de correios.
DÁRIO (de um pulo, retira a Diana a carta da mão. Beija a carta e depois a Diana) – Meu Deus! É da Direção-geral de Viação!
DIANA – Deve ser para te comunicar o dia do exame.
DÁRIO – Deixa-me ver quando é que é o exame. Só a condução… faço-a a brincar. (Abre a carta e começa a ler em silêncio) «Senhor Dário Tute Simoa da Cruz, o seu requerimento para o exame de condução foi indeferido. Na sua certidão do registo criminal consta que esteve preso e condenado a pena de prisão maior, o que lhe obsta de obter a carta de condução».
DIANA – Querido, lê em voz alta para eu ouvir também. Estou ansiosa em saber que dia é que vais ao exame! (Dário fica um pouco pasmado) Alguma coisa desagradável?… (Dário dobra a carta) O que te mandaram dizer? (Dário dá-lhe a carta e, cabisbaixo, afasta-se sem dizer uma palavra) Vais aonde, meu bem?
Preocupada, Diana vai atrás dele
CCLV CENA
Diana está na sala, sozinha, com uma carta na mão. Abre-a e lê baixinho.
DIANA [V. O.] – «Direção Nacional de Polícia de Ordem Pública. Excelentíssimo senhor Dário Tute Simoa da Cruz. A Direção-geral de Viação enviou-nos a cópia de um ofício provindo do Tribunal da Comarca de São Vicente, comunicando-nos a sua interdição de conduzir qualquer tipo de veículo motorizado. Tem 30 dias para entregar, de forma voluntária, a carta amadora que possui, sob pena de responder pelo crime de desobediência e de condução ilegal. Esta Direção vai extrair uma circular para todos os Postos e Esquadras do país para o autuarem se o apanharem a conduzir. Informamo-lo de que poderá vir a limpar o seu registo criminal, pedindo, para efeito, a devida reabilitação, após 4 anos ao término integral da pena».
DIANA (Atrapalhada) – Meu Deus! Não vou dizer isto ao Dário! Ele não vai gostar, e muito menos aguentar. Nem eu! O que é que eu fiz para merecer esta sorte, meu Deus? Aqui em Cabo Verde, onde só se trabalha no Estado, um Engenheiro Agrónomo, com boas notas no diploma, 19 valores, sem emprego?! Já sei: não lhe vou dizer nada. Não lhe vou mostrar esta carta. E escondo-lhe a carta de condução para não cair na tentação de conduzir e ser apanhado pela Polícia, até que complete os 4 anos fora da prisão. Aliás, vou eu mesma entrega-la no Tribunal, quando completarem os 4 anos vou pedir a sua reabilitação. Far-lhe-ei uma grande surpresa. Vou trabalhar dia e noite, por mim e por ele. O que ganho e com o que os nossos pais nos ajudam, dão para suprir as nossas necessidades básicas.
CCLVI CENA
Um voo da TRANSAIR aterra no aeroporto da Praia. Os passageiros descem e vão passando pelo controlo dos passaportes. Aos brancos são cumprimentados com continências e, nalguns casos, acompanhados até apanharem um táxi. Chega a vez de um cidadão negro, rasta, de ténis e calça jeans slim, portando um passaporte Bissau-Guineense. Entrega todos os documentos a um Agente da Polícia.
AGENTE DA POLÍCIA (depois de verificar os documentos) – O que vens fazer em Cabo Verde?
CIDADÃO GUINEENSE – Estou de passagem [em trânsito] para o Brasil para tratar dos assuntos finais do meu doutoramento.
AGENTE DA POLÍCIA (com o Cartão de Residência brasileira na mão) – Este Cartão de Residência não me parece ser autêntico.
CIDADÃO GUINEENSE – Qual é a bases legal que o leva a afirmar isso?
AGENTE DA POLÍCIA (abre o passaporte) – Passaporte está quase a caducar-se.
CIDADÃO GUINEENSE – Eu sei. Expira a 29 de Janeiro de 2020.
AGENTE DA POLÍCIA – Não podes prosseguir a viagem. (O Passageiro arregala os olhos) Tens que voltar à Guiné e renovar o passaporte.
CIDADÃO GUINEENSE – Senhor Agente, a minha viagem é para o Brasil, onde tenho residência permanente. O meu passaporte tem ainda quase 4 meses de validade e estou em trânsito por Cabo Verde só por horas.
AGENTE DA POLÍCIA – Não podes continuar a viagem com um passaporte prestes a caducar.
CIDADÃO GUINEENSE – Senhor Agente, eu estou de viagem para o Brasil onde tenho residência permanente. Mesmo que o passaporte caducasse amanhã, ainda posso entrar no Brasil e pedir a renovação por lá. Sou residente aí, e o senhor tem nas mãos todos os documentos que comprovem.
COLEGA DO AGENTE – Quando é que o seu Cartão de Residência caduca, colega? (O Agente dá-lhe o Cartão para ver) O seu Cartão de Residência brasileiro ainda está válido até 21 de Dezembro de 2021. Por isso, o prazo da caducidade do passaporte é irrelevante.
AGENTE DA POLÍCIA – Mas ele tem que regressar à Guiné.
CIDADÃO GUINEENSE – Senhor Agente, o seu colega já disse que eu posso viajar e o senhor insiste em barrar-me?
AGENTE DA POLÍCIA – No meu serviço eu é que sei como é que faço. Dispenso a tua opinião.
CIDADÃO GUINEENSE – Eu não estou a imprimir nenhuma opinião, senhor Agente. Simplesmente disse-lhe que não vejo nenhum embasamento jurídico-legal para impedir-me de prosseguir a viagem.
AGENTE DA POLÍCIA (num tom ameaçador) – Xinta la bu spéra, bu ta odja kuzé ki e enbazamentu. [Senta-te e espera, que já vais ver o que é embasamento]. (Arruma coisas, levanta-se e vai ter com o Passageiro) Vamos fazer o Raio-X para ver se não carregas nada ilegal. (Nada se acusa no Raio-X. O Passageiro é colocado numa cela) Espera aí.
O Agente fecha-lhe a porta e sai. Cerca de duas horas depois, chega uma agente.
A AGENTE – Boa tarde!
CIDADÃO GUINEENSE – Boa tarde!
A AGENTE – Isto é que é a vida! Vem da vossa terra, encontram logo quarto para morar sem pagar a renda… banco para se sentar… (faz um sorriso malicioso) O que é que tu fazes na vida?
CIDADÃO GUINEENSE – Sou professor universitário.
A AGENTE (faz uma gargalhada) – Eu também sou professora, a minha família toda o é. E cuidado porque não há nada que possas dizer e que eu não saiba.
CIDADÃO GUINEENSE – Que bom.
A AGENTE – Bom mesmo.
CIDADÃO GUINEENSE – Então qual a razão da minha permanência aqui nesta cela há mais de duas horas?
A AGENTE – Eu não sei. Vim substituir o meu colega Agente e ele não me passou a sua ocorrência. Por isso vais ter que aguardar o chefe chegar.
CIDADÃO GUINEENSE – Estou preso?
A AGENTE – Não. (Olha para todos os lados) Tira os cadarços dos sapatos e todos os acessórios e dá-mos para guardar.
CIDADÃO GUINEENSE – A senhora agente não se importa de me facultar o telefone para comunicar a pessoa que me vem buscar, e mandar-lhe embora? Deve estar aflito, lá fora à minha espera.
A AGENTE – Não posso. O telefone é só para uso interno da Polícia.
CIDADÃO GUINEENSE – Mas eu tenho esse direito.
A AGENTE – Esse direito não existe cá em Cabo Verde.
CIDADÃO GUINEENSE – Se não estou preso não vou entregar os meus pertences. E até porque não há motivos para que eu esteja preso.
UM OUTRO AGENTE (entra em cena) – Se não fizeres o que a colega Agente está-te mandar, obrigo-te a fazer à força.
O Passageiro tira o telemóvel do bolso e põe a filmar. Os dois Agentes caem-lhe por cima, golpeiam-no brutalmente, retiram-lhe o telemóvel e jogam-no para a cela. Cerca de 20 minutos depois, voltam a ter com ele na cela.
A AGENTE – Desbloqueia este telefone e apaga o vídeo imediatamente.
CIDADÃO GUINEENSE – Não vou apagar.
O Agente dá-lhe um tabefe, a Agente empunha o bastão, o Passageiro toma o telemóvel e apaga as filmagens. Os Agentes retiram-lhe o telemóvel novamente e ficam a ver tudo o que lá está, rindo-se da cara dele.
CCLVII CENA
Fechado durante 48 horas na cela, humilhado e incomunicável, chega uma nova equipa de duas Policias. A Agente «A» e a Agente «B».
AGENTE «A» (com estranheza) – Por que é que o senhor está aqui fechado?
CIDADÃO GUINEENSE – Eu não sei. Puseram-me aqui, mandaram-me esperar… já cá estou há 2 dias.
AGENTE «B» – O senhor vinha de onde e ia para onde?
CIDADÃO GUINEENSE – Vim de Bissau e ia para o Brasil, onde resido e sou estudante.
AGENTE «B» – Estuda o quê?
CIDADÃO GUINEENSE – Sou doutorando em sociologia.
AGENTE «A» – Não lhe disseram por que razão ia ficar detido?
CIDADÃO GUINEENSE – Não. Perguntei, disseram que eu não estava detido.
AGENTE «A» – Vá. Anda comigo.
As duas Agentes ficam contrariadas e não se cansam de pedir desculpas.
CIDADÃO GUINEENSE – Muito obrigado. Muito obrigado, mesmo.
AGENTE «B» – O senhor tem alguma pessoa conhecida cá na Praia?
CIDADÃO GUINEENSE – Sim. Quem me vinha buscar ao Aeroporto era o Dr. Cláudio Furtado.
AGENTE «A» – O Professor Cláudio Furtado?
CIDADÃO GUINEENSE – Sim.
AGENTE «B» – Tem o número de telefone dele?
CIDADÃO GUINEENSE – Tenho, sim, senhora.
AGENTE «A» – Vem connosco e vai telefone-lo.
CIDADÃO GUINEENSE – Obrigado, do fundo do coração, senhoras Agentes.
AGENTE «B» – Quando é que vai para o Brasil.
CIDADÃO GUINEENSE – Era ontem. Ia para a ilha do Sal e de seguida para o Brasil. Agora perdi o voo e ninguém se responsabiliza.
AGENTE «A» – Coisas que nos envergonham.
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