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Stribilin (58ª parte)
Cultura

Stribilin (58ª parte)

CCXLII CENA (continuação)

OFICIAL (com um dossier na mão) – Sr. Dério Dias Martins (O Dério aparece) Vá pôr-se em pé diante da Drª Juíza.

JUÍZA – A testemunha não é parente da ofendida, nem do Arguido?

DÉRIO – Não, senhora. Não sou parente de nenhum deles.

JUÍZA – Mas conhecia os dois?

DÉRIO – Conhecia os dois, embora conheço melhor o Dário.

JUÍZA – Isto não lhe obsta em nada falar a verdade?

DÈRIO – Absolutamente em nada, Drª Juíza.

JUÍZA – Então jura por Deus e sua honra dizer a verdade?

DÉRIO – Juro por Deus que é maior que a minha honra.

JUÍZA – Então repita comigo: «Juro por Deus - Dizer a verdade - Só a verdade – E nada mais do que a verdade». Já sabe que a partir de agora está sob juramento e não pode mentir. Se não responder com a verdade, incorre num crime de falsas declarações, previsto e punido por lei.

DÉRIO – Sim, senhora Juíza.

JUÍZA (para acusação) – A Acusação quer dirigir o interrogatório?

ACUSAÇÃO – O Sr. Dério deu o seu carro emprestado ao seu amigo, e por pouco não matou uma senhora. Foi ou não foi?

DÉRIO – Eu não lhe emprestei o carro. Ele pediu-me a chave, eu dei-lha, mas, pensando que fosse para se servir do corta unhas. Só depois do acidente é que soube que era com o meu carro, pela boca da Gisela, uma amiga nossa.

ACUSAÇÃO – Mas o senhor costumava dar-lhe o carro emprestado?!

DÉRIO – Sim. Emprestava-lhe quando ele estava a treinar para fazer a carta. Depois de me avisarem que ele andava em excesso não lhe emprestei mais.

ACUSAÇÃO – Então quer dizer que ele furtou-lhe o carro.

DÉRIO – Não sei se é furto ou se outra coisa que se diz, porque eu não percebo de leis.

Acusação faz sinal à juíza e Defesa pede a palavra, levantando o dedo.

JUÍZA – A Defesa tem a palavra.

DEFESA – E o senhor considerava-se amigo do Arguido?

DÉRIO – Sou amigo de toda a gente.

DEFESA – Sim, eu sei. Mas estou a perguntar-lhe neste caso concreto. Vocês eram ou não amigos?

DÉRIO – Somos amigos.

DEFESA – Foi o senhor que o convidou para aquela festa… não foi?

DÉRIO – Foi, sim, senhor.

DEFESA – O que é que o senhor acha sobre a conduta do Arguido?

DÉRIO – É boa pessoa… às vezes.

DEFESA – Às vezes como?

DÉRIO – Ultimamente ele tem andado muito convencido... muito showento.

A Defesa faz sinal à Juíza de que não tem mais pergunta a fazer.

JUÍZA (para o Escrivão) – A Testemunha respondeu que: «não emprestou o carro naquele dia ao Arguido; que este pediu-lhe o chaveiro e ele julgou que era para se servir do corta-unhas; que soube do acidente com o seu carro por uma amiga, a Gisela, que apareceu na festa a dar notícia; que antes de o Arguido ter tirado a carta de condução lhe emprestava o carro para se treinar; que ao ser avisado de que o Arguido acelerava muito, deixou de lho emprestar». Disse que «é amigo do Arguido e que foi ele quem o convidou à festa; que às vezes é boa pessoa, mas ultimamente tem sido muito convencido e “showento” entre parêntese – exibicionista». (Para o Dério) Pode ir a sua vida (Para o Oficial) Mande entrar o declarante, o agente Diabo Dada.

OFICIAL (em cima da porta, com dossier na mão) – Senhor Diabo Roberto Dada.

Diabo entre e vai pôr-se de pé diante da Juíza.

JUÍZA – Na noite de 1 de Abril do ano passado o Declarante encontrava-se de serviço no Hospital Baptista de Sousa. Certo?

POLÍCIA – Sim, Drª Juíza.

JUÍZA – Descreva então o que assistiu nessa noite.

POLÍCIA – Eu estava de piquete no hospital nesse dia. Enquanto fazia as minhas voltas e fiscalizar o recinto, passou por mim um carro com as quatro piscas ligadas, em direção às urgências. Fui de imediato tomar a ocorrência, constatei que este senhor que está aqui sentado, aparentava ar preocupado… ou mesmo perturbado. Identifiquei-o e disse-lhe para me esperar na sala, enquanto ia ter com a senhora e inteirar-me da gravidade do ferimento. Foi então que ele se aproveitou e pirou-se.

DEFESA – Gostaria de pedir ao Declarante um pequeno esclarecimento. (A Juíza faz sinal de concordância) O senhor Agente deu a voz de prisão ao Arguido?

POLÍCIA – Não! Mandei-o esperar enquanto ia ter com a senhora e inteirar-me da gravidade do ferimento, antes de decidir se o detinha ou não.

DEFESA – Não seria mais sensato se o tivesse levado à Esquadra e esperasse pelo relatório médico?

POLÍCIA – Eu mandei-o esperar e fui identificar a senhora.

A Defesa faz sinal à juíza de que está despachado.

JUÍZA – O Arguido não tem nada a alegar em sua defesa?

DÁRIO – Tenho. Tenho umas poucas palavras que espero traduzirem a obtestação da minha inocência. Tenho verificado que alguns dos depoimentos que aqui tiveram lugar, pronunciaram contra mim, deliberadamente, um severo requisitório. Contudo, continuo firme na minha inocência e espero que a análise do processo forneça luz suficiente para justificar esta minha alegação. Noto na sua candura, Sra. Drª Juíza, que até este momento não duvidou um só instante da minha inocência. Embora sei que há alguém que quer fazer deste caso uma farsa para se puder rir à vontade. O meu caríssimo amigo Dério, movido pelo rancor que não sei de quê e nem porquê, aliás, talvez por estar alinhado na onda do ódio e rancor que a sua amiguinha Gisela nutre contra mim, oferece-se aqui voluntário para ser meu carrasco. Mas, seja o que Deus quiser. Sra. Dra. Juíza, não creio que esteja a tirar ilações precipitadas. Mas, se eu for condenado, não é a primeira vez que um inocente é condenado. Cristo já o fora.

A Juíza manda o Arguido sentar-se e passa a palavra ao Ministério Público.

ACUSAÇÃO – Na qualidade de representante do Estado, aqui estou para fazer valer o direito da Vítima, senhora Ruth Lally, que, no dia 1 de Abril do ano transato, quando no usufruto do seu direito, foi atropelada pelo Arguido que vinha a conduzir num carro que ficou provado que era produto de furto a um amigo. E este não se coibiu em ser sincero e o confirmar perante este Tribunal. Meritíssima, este Tribunal não ficou com dúvidas de que a razão do acidente foi o excesso de velocidade e condução negligente. A transgressão das normas do Código da Estrada não nos passou despercebida. O Arguido não teve a atenção suficiente e nem considerou a distância para uma travagem de emergência. Ia com a namorada ao lado, num carro furtado, exibindo a sua sinistra brincadeira – como bem confirmou que ia a conversar com a acompanhante – esqueceu-se que a estrada também poderia ser dos outros. Não acatou as ordens de um agente da autoridade e, enquanto este se identificava a Vítima, aproveitou e fugiu. Não teve piedade da infeliz! Por que teríamos nós para com ele qualquer espécie de comiseração? Não nos convenceu o depoimento da Vítima, tentando ilibar o Arguido. Compreende-se perfeitamente as razões. Ela fora, em tempo, criada de um tio do pai do Arguido. E segundo ela afirmou, o pai do Arguido foi visitá-la vezes amiúde. Não terá o velho lhe dado uma mão de luvas para obstruir a justiça? Meritíssima, não ficaram dúvidas de que o Arguido cometeu os crimes de: abuso de confiança, furto, transgressão ao Código da Estrada, homicídio na sua forma tentada, desobediência, fuga à autoridade e obstrução à justiça. Apesar de o Arguido considerar-se inocente, permito-me fazer notar, que, de uma maneira geral, um criminoso apressa-se em fazer desaparecer a prova dos seus crimes. Razão que explica a sua fuga e o querer ludibriar a Vítima a favor do silêncio. Peço justiça, para que este caso se traduza num corretivo para o Arguido e exemplo aos demais perturbadores da tranquilidade mindelense. Obrigado.

JUÍZA – Tem a palavra a Defesa para alegar a favor do seu constituinte.

DEFESA – Meritíssima Dra. Juíza, digníssimo representante do Ministério Público, excelências. Durante as sessões deste julgamento, não surgiram provas que evidenciem as acusações imputadas ao meu constituinte. Nenhuma delas, mui toscamente arquitetadas, logra afetar o meu constituinte. Foram sim, invocadas algumas incriminações fantasiosas, cozinhadas no fogão da malícia e atiçadas com o fogo do ódio. E isso permite-me concluir que há aí uma imprecisão curiosa, que apesar de tudo, dá-me vontade de rir. Acusá-lo pelo crime de furto, se ele ia a conduzir no carro do amigo que o levou para àquela festa? Como é possível um amigo convidar o outro a uma festa e pôr depois em causa a amizade dos dois? É preciso compreender que essa testemunha pode estar influenciada e as suas declarações viciadas. A Acusação acha que as visitas que o pai do Arguido fez à Vítima, terão sido com intuito de obstruir a justiça. Não consigo perceber. Desde quando e onde é que visitar uma pessoa hospitalizada ou acamada não é um ato de solidariedade, de filantropia, de altruísmo e de amor? Isto é de loucos. E deve-se aplicar apenas numa peça de teatro, isto é, bem burlesca. Esta tese faz-nos lembrar aquela máxima que diz: «Preso por ter cão, preso por não ter cão». Se nenhuma família do Arguido tivesse visitado a Vítima, seria acusada de omissão dos deveres e desrespeito pela pessoa humana. O contrário aconteceu, a moral é ignorada, o altruísmo é desconsiderado e as boas maneiras são manietadas. O meu constituinte não se encontra sob acusação de nenhum desses crimes de que lhe estão sendo imputados. O crime de homicídio muito mal se encaixa, pelo que o torna um regateado disparate. A Vítima confessou-se culpada por atravessar a Avenida sem se precaver. Porque então, não a tentativa do suicídio? O Arguido não fugiu, nem desobedeceu à autoridade. Sobre ele não pesava nenhum mandado judicial, nem lhe foi dada a voz de prisão, isto é, confirmado pelo próprio declarante. Meritíssima, o meu constituinte é um jovem, com futuro promissor, arquiteto de grandes projetos para a vida e para o país. Tem 31 anos de idade, é pai de uma filha que na altura do acontecimento tinha 3 meses de idade. É Engenheiro Agrónomo de formação, idóneo e com reputação reconhecida no seu meio social. É uma pessoa que se enquadra perfeitamente nos perfis dos homens necessários para a edificação deste país. Por isso, espero a absolvição como desfecho deste processo. Muito Obrigado!

JUIZA – Muito obrigada. Ora, com as alegações finais da Acusação e da Defesa, chegou ao fim deste julgamento, pelo que dou por encerrado a sessão, marcando a leitura da sentença para o primeiro dia do próximo mês, pelas 15 horas. Notifique as partes. (Confere as horas no relógio que traz no pulso e olha para o Oficial) Está encerrada a sessão.

OFICIAL – Por ordem da meritíssima Juíza, declaro encerrada a sessão.

A Juíza levanta-se, arruma os livros e papeladas, a Acusação e Defesa fazem o mesmo e saem juntos.

CCXLII CENA

DIAS DEPOIS

A Juíza lê a sentença.

JUÍZA – Analisado e ponderado o presente processo, o Tribunal vai agora proferir o veredito, ou a sentença. Ora, durante as perquirições preliminares foi ouvido o Acusado que, mais tarde, passou a responder-se como Arguido. Ouvidos também a Vítima, o Declarante e a Testemunha, concluiu-se, que: «Na madrugada do dia 1 de Abril do ano transato, o senhor Dário Tute Simoa da Cruz, unido de facto, filho de João da Cruz de Alexandra e de Helena Tute Simoa, de 31 anos de idade, Engenheiro Agrónomo, cabo-verdiano e residente na Rua 3, nº 86, Mindelo – São Vicente, se encontrava numa festa de finalistas dos liceus. A dada altura, pediu emprestado a chave do carro ao amigo Dério, quem o tinha convidado àquela festa. Em plena Avenida Marginal, atropelou a senhora Ruth Lally Lima Leite, identificada nos autos, causando-lhe fraturas múltiplas com incapacidade para o trabalho por 60 dias, conforme o relatório médico junto ao processo. O Arguido prestou-lhe a devida assistência, levando-a às Urgências. Tendo sido abordado por um agente da Polícia, de forma subtil e sorrateira pôs-se em fuga». O Tribunal apurou que alguns dos factos ficaram provados, pelo que julgou-os procedentes e, condena o Arguido pela prática de 5 crimes: ofensa corporal; abuso de confiança; excesso de velocidade; desobediência e fuga à autoridade. Não ficando suficientemente provados os crimes de homicídio, obstrução à justiça e furto, o Tribunal julga-os improcedentes. Pelos crimes que ficaram provados, vai o Arguido condenado em 12 meses de prisão por ofensa corporal involuntária; 8 meses por abuso de confiança; 8 meses por negligência na condução; 9 meses por desobediência e 12 meses por fuga à autoridade. Feito o cúmulo jurídico, tendo em conta que o Arguido não tem antecedentes criminais, é pai de uma filha menor, terminou uma licenciatura a bem pouco tempo, o Tribunal sustenta nestas atenuantes e condena-o na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão efetiva. Vai ainda condenado a 18 meses em pena de multa no valor diário de 500$00. E nos termos do Art.º 67, f) da Constituição da República, por despacho de S. Ex.ª Sr. Presidente da República, de 5 de Julho, publicado no B. O. nº 38/00, por Decreto Presidencial nº 78/00, fica perdoada a pena de multa. Por indulto presidencial, exarado no citado diploma legal, fica perdoado um quinto da pena e o Arguido vai cumprir 33 meses e 6 dias de prisão. Fica condenado ainda a pagar uma indemnização de 200 mil escudos à Vítima, e 30 mil escudos de custos do processo. Com bom comportamento, ao fim de 21 meses pode requerer a liberdade condicional. (Assina o dossier e passa aos colegas) Está encerrada a audiência.

OFICIAL – Por ordem da meritíssima Juíza, declaro encerrada a audiência.

CCXLIII CENA

No pátio de uma penitenciária, os reclusos estão no recreio. Dário está cercado de colegas que o escutam. O Guarda Rui aproxima-se com uma AK-M às costas.

GUARDA RUI – De que assunto estão-se a tratar nessa reuniãozinha, reclusos?

PEDUCA – Por quê?

GUARDA RUI – Vá, dispersem-se imediatamente. Não quero ver esta aglomeração aqui. Estarão a preparar tramar alguma?

GRUPO – O que é isso, Rui?! Nós não estamos a fazer nada!

DE DJULA – Vai-te levar na peida, que te saberá melhor. Nós não podemos conversar uns com os outros?!

RUI (aproxima-se deste recluso e dá-lhe um ponta pé no traseiro) – Toma na peida, seu paneleiro. E dispersem-se rapidamente. Não estou aqui para brincadeiras.

DE DJULA – Eu não vou a lugar nenhum. Preso uma vez já estou.

DÁRIO – Mas porquê, Sr. Rui? Estamos a conversar tão simplesmente! Não estamos a fazer nada de mal!

RUI – Cala a boca, atrevido. Estás armado em quê? Em sabichão… ou carapau de corrida? Mas olha… aqui, não há Doutor nem Engenheiro mande! És um recluso e tens só que obedecer as nossas ordens. Percebeste, delinquente? Se lá fora tinhas alguma influência, cá dentro tens que meter o rabinho dentro do cú.

DÁRIO – Sr. Rui, você pode não ter a 4ª classe, mas acho que já tem idade para ser educado. Para perceber que é funcionário do Estado… que deve ter linguagem própria e postura adequada com o que faz.

RUI (introduz a bala na câmara e aponta a espingarda para o grupo) – Vá! Quero ver todo o mundo deitado de barriga para o chão. (Todos obedecem menos o Dário) E tu, recluso, não obedeces porquê?

DÁRIO – Porque não mereço ser tratado deste jeito, na terra que também é minha, pelo meu próprio irmão. Pois, estamos na época pós «um – sete – oito – nove; os meus país sobreviveram a 2ª Guerra Mundial e eu pulei no dia 25 de Abril».

RUI – Atrevido! Vou contar até três: «um…»

DÁRIO – Pode disparar e mata-me se assim entender.

RUI – «Dois…»

DÁRIO – Não fiz nada para merecer tamanha humilhação.

RUI – Não fizeste nada? Então estás aqui porquê? Foste preso dentro de uma igreja enquanto rezavas?

DÁRIO – Pelo que fiz, aliás, pelo que acharam que fiz, estou aqui a cumprir a pena. Sei que estou preso, sou consciente da minha privação de liberdade. Mas também estou certo de que até aos últimos momentos manterei a minha personalidade.

RUI – «Três».

Faz um disparo pelo ar e aplica uma coronhada ao Dário. Chega o Carcereiro com mais dois guardas, Mário e Marcolino. Começam a bater nos reclusos, mandando-os despir e ficar só com cuecas. Levam-nos para cela disciplinar, todos algemados.

CCXLIII CENA

No gabinete do Diretor.

DIRETOR (para o Carcereiro) – Conte o que se passou.

CARCEREIRO – Estava na secretaria a conferir escala de serviço, ouvi barulho no pátio e, de repente, uns disparos. Fui ver o que se passava, vi o Rui cercado pelos reclusos, tentando retirar-lhe a arma. Chegaram os Guardas Mário e Marcolino, imobilizamos os reclusos e metemo-los na Cela Disciplinar.

DIRETOR – Fizeram muito bem. Por isso, vão ter o direito a um dia de folga a cada um de vocês. (Para o Rui) O que é que eles pretendiam?

RUI – O Engenheiro estava a mobilizar os reclusos para se revoltarem contra o senhor Diretor e contra nós os Guardas. Eu estava a passar, ouvi-o a dizer-lhes que estava na altura de se organizarem e tomarem uma posição, porque só lhes damos canja ao almoço e cachupa ao jantar, com água e sal. Que o senhor Diretor não lhes dá licença para irem ver a família… e muita coisa.

DIRETOR – Atrevido mas é o que esse Recluso é! (Para o Mário) E você, o que também sabe?

MÁRIO – Quando ouvi disparos, fui logo a correr. Vi o Engenheirinho a ameaçar o meu colega Rui, dizendo-lhe que não tinha a 4ª classe e que o senhor Diretor não tem nem o 5º ano. Eu dei o meu apoio ao colega.

DIRETOR – E o senhor Marcolino o que viu… ou ouviu?

MARCOLINO – Vi e ouvi. E foi exatamente o que o colega Mário acabou de lhe contar. Esse Engenheiro é um granda burro.

RUI – Já me ia esquecer de dizer-lhe mais umas coisas que ele disse.

DIRETOR – O que é que ele disse mais?

RUI – Ele disse que o senhor Diretor não pára aqui na Cadeia por mais que 3 ou 4 horas por dia; que usa o carro da Cadeia para os seus assuntos e, para eles irem ao Hospital tem de o fazer a pé ou pagar um táxi de seus bolsos.

DIRETOR – Mas que atrevimento é esse?!…

RUI – Disse ainda que o senhor Diretor conquista as suas mulheres e, se elas não o atenderem, o senhor Diretor embirra com eles e não lhes dá licença. E que sendo assim, as suas mulheres sentem-se obrigadas a aceitar-lhe.

DIRETOR – O que é que eles têm a ver com a minha vida? Se as suas mulheres não prestam, não sou eu a condoer-me deles. Senhor Carcereiro, quantos é que estão na Cela Disciplinar, envolvidos neste caso?

CARCEREIRO – Três, mais o Engenheiro que está numa Cela à parte.

DIRETOR – Mande os três virem cá falar comigo. A propósito… os Guardas andam a cumprir as ordens do Diretor-geral?

CARCEREIRO – Que proíbem os Reclusos de terem livros, jornais, revistas ou rádios nas celas?

DERETOR – Exatamente.

CARCEREIRO – Rigorosamente, senhor Diretor.

DIRETOR – Muito bem!

MARCOLINO – O senhor Diretor-geral teve uma ideia inteligente.

RUI – Também acho.

CARCEREIRO – O Diretor-geral foi seminarista! Estava quase a ser Padre!

RUI – Ficam por aí a ler jornais e revistas estrangeiros, a ouvir rádios com notícias sobre revoltas nas Cadeias e tentam vir fazer o mesmo cá.

DIRETOR – Congratulo-me completamente com essa decisão.

CARCEREIRO E GUARDAS – Nós também!

DERETOR – Não se esqueçam de que qualquer correspondência do Engenheiro, que entre ou que saia, deve ser aberto e verificado o conteúdo antes de o entregar ou enviar ao destinatário.

CARCEREIRO – Sim, senhor. (Para o Rui) Vá buscá-los na Alpina enquanto vou terminar um trabalho na Secretaria.

RUI – Com licença.

Saem do Gabinete e fica só o Diretor muito zangado.

CCXLIV CENA

Na Cela Disciplinar.

RUI – Olá rapaziada? Já estão mais calmos? Descansaram-se bem?

DE DJULA – Quem deve estar descansado e súper contente és tu. E cuida-te para não ires ainda parar ao pavilhão dos malucos.

RUI – Sei que estão zangados comigo, mas como sou cristão, sou justo e tenho coração bom, já falei com o senhor Diretor e intercedi ao vosso favor.

PEDUCA – O que foi que disseste ao Diretor?

RUI – Expliquei-lhe que tudo o que aconteceu foi provocado pelo Dário. Que quando vos dei ordens, todos vocês obedeceram, menos ele. Vocês só vão ter que confirmar isso, depois vão para as vossas celas.

DE DJULA – Mentira. O Dário não fez nada. Nenhum de nós fez algo errado. Tu é que arranjaste toda a merda.

RUI – Tu estás armado em bravo, não é? Vais ficar aqui sozinho e os teus colegas vão sair. Vamos rapazes, saiam todos, menos o De Djula.

JOÃO LUÍS – Deixa de arranjar mais confusão, De Djula.

DE DJULA – Não estou a arranjar nenhuma confusão. Eu não sou traidor. Se o Dário não fez nada, querem que eu vá dizer que ele fez?!

JOÃO LUÍS – Pensa na tua situação, rapaz! Safa a tua pele e deixa por lá a dos outros.

DE DJULA – Eu não faço isso. Sou amigo de uma pessoa de corpo inteiro. Aqui e ali… ontem, hoje e amanhã. Agora e sempre, mesmo que me custe a vida.

JOÃO LUÍS – Olha que neste lugar não dá para passar muito tempo. É tão exíguo o espaço… só tem dois metros de comprimento por um e meio de largura. Não tem casa de banho, se sentires xixi, tens que encostar ao gradeamento, tirar a tua coisa para o fazeres. Se sentires vontade de fazer cocó, tens que fazer num pedaço de papel, se tiveres, e colocar num canto até que te venham dar a refeição a que tens direito. Só aí é que vais poder deita-lo à retrete. E o cheiro incomoda-te.

RUI – E só vai ter direito ao jantar, amanhã. Queres sair ou não?

JOÃO LUÍS – Estás a ver? Hoje ainda só tomamos o pequeno-almoço.

DE DJULA – Que me importa! Já estou acostumado. Não é a primeira vez que aqui venho, nem sou o único! Se os outros não morreram eu também não vou morrer.

JOÃO LUÍS – Podes ter razão, mas se ele quer que tu saias… sai, rapaz! Olha o calor que aqui faz, e conforme faz calor de dia, a noite faz frio. Estás sem roupa, não tens colchão nem lençol. O ar que aqui entra vem através do tubo que está dentro da parede. Pode aparecer algum engraçado a tapar o tubo no telhado, não entra o ar, como respiras? Se sentires uma indisposição quem te irá acudir? Os Guardas só vêm ter contigo, às vezes, à hora do pequeno-almoço e à do jantar do dia seguinte.

DE DJULA – Só saio se o Dário também sair. Nenhum de nós fez nada.

RUI – Se não queres sair… olha… nós vamos embora. Apago as luzes e deixo-te às escuras.

JOÃO LUÍS – Estás a ver? Ficas às escuras, podes mastigar barata enquanto comes, ser mordido por centopeia ou mijado na boca pelos ratos.

RUI – Um preso delinquente não merece ver a luz. Queres sair ou não?

PEDUCA – Sai, De Djula. Sai e vamos daqui.

Sem dizer nada, De Djula toma a sua roupa, veste e sai.

RUIEu sei que erraram, mas todo o mundo erra. O importante é reconhecer o erro. E penso que foi precisamente o que acabaram de fazer. Continuemos amigos, se quiserem pedir ao Diretor uma licença eu me ofereço para vos acompanhar.

JOÃO LUÍS – E eu preciso mesmo de ir ver a minha mãe que está doente.

RUIMas têm que dizer ao Diretor que o Dário andava a falar mal dele, da comida e de algumas coisas que já sabem que o Diretor vai gostar de ouvir. Vocês conhecem bem o vosso Diretor! Qualquer um de vocês aqui, é reincidente mais do que uma ou duas vezes.

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