LXXXV CENA
Diante do Regedor, Aureliano está em cuecas, cheio de vergonha. Xinoi está de pé, com as calças do Aureliano debaixo do braço.
REGEDOR – Pode entregar-lhe a sua roupa. (Xinoi dá a roupa ao Aureliano e ele veste) A sua besta estava prenhe, parida ou manidjada, senhor Xinoi?
XINOI – Estava parida de cinco meses.
REGEDOR (para Aureliano) – Hoje tu vais dormir aqui na Regedoria, depois de amanhã vais começar a sustentar a tua esposa com um feixe de palha por dia, até que o vosso filho se complete um ano de idade.
AURELIANO – Sim, Senhor.
REGEDOR – E se falhares, mesmo que um dia, mando-te prender e serás levado para Cadeia Civil na Praia.
AURELIANO – Sim, Senhor.
REGEDOR – O senhor Xinoi pode ir. Se ele não cumprir com as obrigações, você vem-me dizer.
AURELIANO – Vou cumprir, sim, senhor Regedor.
REGEDOR (levanta-se) – Vá! Passa para frente, vou fechar-te no calabouço.
Aureliano vai calado, cheio d vergonha.
LXXXVI CENA
A festa continua animada na casa da Ponxita.
PAI DE NHATUDA (Entra de repente e diz bem alto) – Eu é que sou Pai de Nhatuda! Não sou burro nem malcriado, nem feio nem maltalhado.
BETO NHADICENA (arfa o peito e, com muita força, responde num tom bastante provocante) – Eu é que sou Beto Nhadicena, que bebe ovo, arrota pinto, vomita galinha e defeca penas de pavão!
PAI DE NHATUDA – Que atrevimento é esse, de tentar desafiar-me? Não sabe que vendi medo, comprei coragem juntamente com um pouco do desaforo?
BETO NHADICENA – Pela primeira vez alguém se atreve pelejar comigo. Mas fique sabendo que sou homem com todas as peças. Que não visto calças para atalhar o frio, nem por causa do reumatismo.
PAI DE NHATUDA – Então quero experimentar. Se for saboroso, mesmo pouco, quero ver aqui no prato. Se o tiver que mo dê, que não o tiver que mo peça! Conforme me vê, à frente não estou, mas atrás também não é o meu lugar. (Sem reparar na transfiguração do semblante do rival, Pai aproxima-se mais da porta e diz novamente) Sou eu mesmo. Com a roupa no corpo, dinheiro na carteira e carteira no bolso. Quem não acredite, que experimente. Comigo, homem algum, mulher nenhuma! Vá, para a Gaita!
BETO NHADICENA (dá-lhe um murro num olho e ele cai de costas, dá três cambalhotas e vai parar no meio do milheiral) – Eu é que sou Beto Nhadicena, o homem de um cano na mão. Um soco meu, mal apanhado, no Hospital acordará; se acertar devidamente, no Cemitério repousará.
O pessoal dá água de açúcar ao Pai de Nhatuda, abana-lhe com uma folha de papelão e assopra-lhe no dedo mindinho.
PAI DE NHATUDA (Depois de reanimado) – Ah Pai de Nhatuda, farto de batata com leite, no meio de caiumbra com olho furado!
Ponxita vem do quarto, de onde estava exausta a tentar apanhar uma soneca. Ao ouvir o reboliço, levanta-se meio estremunhada, corre para a rua e depara com Pai de Nhatuda caído de costas. Fica fula.
PONXITA – Isto é abuso, rapazes. Fizeram-no, porque sou mulher, sabem que estou sozinha, que o meu marido está embarcado nas ilhas!
NHAMIODA (Levanta-se e dá ordens como uma verdadeira autoridade) – Já chega de festa. Cada qual para a sua casa, e deixem a coitada descansar. Vocês são malcriados.
Pai de Nhatuda levanta-se, Beto mostra-se arrependido, pede desculpa, fazem as pazes e Ponxita atenua a situação.
PONXITA – Não, prima Mioda. Se eles querem continuar a divertir, podem ficar. Baile é que já não quero.
NHAMIODA – Sem toque, então, está tudo bem. Porque Lobo não está, vocês vêm fazer abuso nas costas dele! Tenho a certeza que se ele estivesse cá, vocês não faziam selvajaria em casa dele.
PONXITA (dá à prima uma palmadinha no ombro e ri-se) – Mioda… Lobo mesmo que cá estivesse! Do jeito que ele é mofino!…
Todos dão uma gargalhada.
DOMINGOS DE NHU CONOTE (levanta-se) Então vou contar uma partida, já que não há baile.
TODOS (sobretudo a meninada) Siiiiim. Conta lá, Domingos. Conta.
DOMINGOS DE NHU CONOTE (despeja a garrafa de grogue num copo de meio quarto e bebe de uma só vez. Escolhe um caroço de torresmo e um naco de bofe) – O grogue é para limpar-me a garganta, esses bafios são para reforçar-me as energias.
MINÉSIO – Vá, conta lá a tua mentira.
DOMINGOS DE NHU CONOTE – Vocês sabem que Tute de Simoa, lá do Cutelinho, nunca lava os pés! (Riem-se todos) Um dia, a parede do quintal caiu-lhe em cima de um pé e nem um arranhão ele sofreu.
NHAMIODA – Bem disse o Minésio que ias contar mentira.
DOMINGOS DE NHU CONOTE – Não é mentira, não. É mesmo verdade.
PONXITA – Continua.
DOMINGOS DE NHU CONOTE – Quando Tute libertou o pé dos escombros, por baixo ficaram crostas que ele teve de contratar uma empresa de aluguer de caterpílares para limpar a sujeira.
NHAMIODA – Oh, filho da mãe, mentiroso de uma figa! Sujeira é essa aí, com a qual estás a entupir-nos os ouvidos.
PONXITA – Deixa-o contar, Mioda!
DOMINGOS DE NHU CONOTE – Foi coxeando até a cozinha onde estava Simoa, sua mulher, a esquentar cachupa de ontem para quebrarem o jejum, e disse-lhe: «Simoa minha mulher, se tivesse o hábito de lavar os pés, tê-los-ia hoje partidos. A parede do quintal caiu-me por cima de um pé, nem um arranhão sofri».
CULAU – Eu também sei uma piada do Tute.
TODOS – Conta, conta Culau! Conta lá!
CULAU – Tute encontrou a Quina frente à casa do Rapaz de Kéxa, marido da Emilda, do Porto Abaixo, a subir em direção ao Porto Riba, perguntou-lhe pela notícia da Isabel, sua filha que vivia na ilha do Maio. Quina mostrou-lhe uma carta e disse que era da Isabel que ela tinha acabado de receber pelo Merco, contramestre do falucho “Aleluia”. Que ia levar ao seu irmão Mateus de Chica para que lha lesse. Tute, entretanto, abriu o envelope, retirou a folha da carta e fingiu-se ler em silêncio.
MINÉSIO – Tute é mesmo ator!
CULAU – Quina ficou contente e pediu-lhe que lesse em voz alta. Tute sorriu e começou: «Minha querida mãe, do meu profundo e estimado coração. Faço-te estas duas regras de papel mal feitas, só para te dizer que eu estar de saúde graças ao nosso pai riba lá na céu. Não rapara a encomenda que te manda, pamodi o Merco já estava tudo purparado para sair quando eu chega. Só podia levar esta pouca coisas: um saco de sal, quatro lata de atum, um saco com chacina, três molon, cinco malancia, quatro mascaté e quatro queijo, um é para Tute. Eu sabe que a festa de Nhu Santiago está na porta e que a chuva está quase a chover. Por isso, o Merco leva este duzentos merés para você desgovelhar, te na próximo viaja eu manda meia quarta de milho-quente de li de Djarmai que é para você vai semear na lugar lá Bianga. Cumprimento, largura e altura vai para tudo alguém que pergunta para eu, de riba camba baixo, macho ku fémia, nobu ku bedju, grande ku pequenote. Com saudade na coração desta tua filha que te quero muito, Maria Zabel de João Sancha».
OTÁVIO PRETA – Tute não é ator. É um grande bandido e aldrabão.
CULAU – Quina arrebatou-lhe a carta e voltou para o Cais enfurecida. Começou a descompor e a chamar ao Merco de todos os nomes: «Filho da mãe, sem vergonha, mentiroso, ladrão da merda! Deu-me a carta, mas não me disse que a minha filha lhe tinha dado mais coisas… nem os duzentos escudos. Mas eu rezo e peço a Deus no céu, para que conforme ele tomou o suor da minha filha, para sair-lhe nem se na fus. Estafermo».
NHAMIODA – Coitado do Merco!
CULAU – Quando Quina já ia a descer ao Cais, encontrou o António Quinha, pai da Teta e Fortunata, a atravessar à frente do edifício do Bulimundo. Ele viu que a Quina estava furibunda, perguntou-lhe: «O que se passa contigo, Quina». Quina mostrou-lhe a carta, seguida das reprimendas: «É aquele ladrão e estupor do Merco. Mas ele vai-me explicar já». António Quinha tomou a carta, abriu-a e leu em silêncio. Sorriu de seguida e perguntou: «Quem foi que te leu a carta?» Quina disse-lhe que tinha sido Tute, ele sacudiu a cabeça, sorriu mais uma vez e disse: «Quando e onde é que Tute aprendeu a ler, Quina?» Quina arregalou os olhos, elevou a mão à cabeça, exclamou: «Tute não sabe ler?!» António Quinha explicou-lhe o que realmente estava escrito na carta. «Isabel não te mandou nada, Quina. Apenas mandou cumprimentos e perguntou se João Sanches, seu pai, estava bom. Só isso». Já com as duas mãos à cintura, pés um a frente, outro atrás, Quina pôs-se a praguejar a torto e a direito, desta vez diretamente para o Tute: «O Tute não sabe ler?! Não acredito! Não pode ser verdade! O sacana ainda leu e disse que um queijo era para ele?! Maltrapilho, filho do Nacho!»
ARLINDO DE NHU ANÍBAL (sentado no chão, em cima de um saco, fuma um cigarro falcão e dá umas goladas num copo de grogue) – A família do Tute tem muitas estórias! Uma vez, o João da Cruz, marido da Helena, filha de Tute com a Simoa, apanhou uma bebedeira e pediu à Helena que fizessem amor. Helena disse-lhe que não, porque era de dia, João da Cruz empunhou de uma faca e disse que se a Helena não lhe deixasse, ele a esquartejava.
LUIZINHO DE CHICA – Ahn! É por isso que Josezinho de Txéka, o Madala, fez uma música sobre isso!
PONXITA – Como é que é a música Luizinho? Canta lá!
LUIZINHO DE CHICA (canta) – Nha genti nhos txoma-m Tanáziu / Pamodi frónta dja panha-m / Frónta dentu nha kasa. // Kóre Tute, kóre Simoâ / Kóre Girgoli, fika so Juan / Dentu kasa porta fitxadu. // Nha genti es konfuzon e kusé? / E Djon da Krus ku Elena / Dentu kasa pórta fitxadu. // Nha genti es konfuzon e pamodi? / E Djon da Krus ki pidi Elena / Pa da-l un-kusinha // Elena fla ma e ka ta da-l / Ma e ka ta da-l, / E fla: si bu ka da-m, ma N ta da-bu ku faka. // N ta da-bu ku faka, / N ta da-bu ku faka, / Ai, si bu ka da-m, ma N ta da-bu ku faka.
Todos se riem e se desancam os pés no chão.
PONXITA – Bem, já que estamos a contar partidas, deixem-me contar uma da minha mãe, quando estava a parir os três gémeos. Ela estava com uma barriga enorme, mas ninguém se desconfiava que pudesse estar grávida de gémeos, muito menos de trigémeos. Pois, ela já tinha tido um par de gémeos há dez anos antes, isto é, no seu terceiro parto. Tinha tido dois rapazes. Por isso, no sétimo parto ninguém iria desconfiar que novamente ia parir gémeos, muito menos trigémeos. De repente ela desmaiou e, todo o mundo juntou-se, em pânico, à volta dela. Uns choravam, outros tentavam reanimá-la, dando-lhe água de açúcar, pondo-lhe água fresca na testa e dando-lhe palmadinhas na face com a mão molhada. Alguns rezavam e pediam a Deus que a salvasse… outros ainda esconjuravam e exorcizavam as feiticeiras. Houve até quem insinuasse se pudesse ser obra de comborça.
DOMINGOS DE NHU CONOTE (gozando) – Deitaram-lhe água fresca na testa?!
PONXITA (ingenuamente) – Sim.
DOMINGOS DE NHU CONOTE – Naquela altura já havia geleira, Ponxita?
PONXITA (com uma súbita e irreprimível cólera) – Bardamerda! Água fresca é como quem diz: «água do pote». Água gelada deve ser aquela que sai da torneira que Maria tua mãe tem debaixo da saia. (Olha para Ana, irmã do Domingos, que está sentada ao lado dela) Não é para ti, Ana. É só na parte dele. (Continua) Abanaram-lhe com um pedaço de papelão…
DOMINGOS DE NHU CONOTE (volta a intrometer-se para fazer Ponxita resmungar) – Estava à espera que dissesses que ligaram ventoinha. Como disseste que lhe deram água gelada!
PONXITA – Podes dizer, se quiseres, que também eu disse que ligaram ar condicionado! Filho-de-nacho!
ANA MARIA – Oh Ponxita… tu ligas conversa de Domingos?! Acaba de contar e larga-o da mão!
PONXITA (respira fundo, cospe no chão e continua) – Abanaram-lhe com um pedaço de papelão, mas mesmo assim ela não despertou. A minha avó mandou chamar o Diogo, meu tio, para acompanhar a minha mãe à Farmácia. Mas, por sorte, veio a passar o Simplício Tavares, que andava atrás da Cândida de Manhanha, minha prima, parou o seu Trader e deu-lhes boleia para o Hospital da Praia. Dia seguinte, Diogo voltou carregado de água. Todo o mundo preocupado à espera pela notícia, Diogo anunciou: «A minha irmã está bem. Ela já pariu um, já pariu dois, já pariu três, e está a parir».
Bebeto entra de repente, envolto em risos descontrolados. Entra acompanhado do Pedro Sabininha.
MINÉSIO – De quê é que estás a rir, Bebeto? Ou estás-te a passar?
BEBETO – Aureliano está preso na Regedoria.
MIMOSO (arrelia com Bebeto à maneira de um bom cristão) – É razão para que fiques a rir-te e a gozar dessa maneira?! Se fosse contigo ou com a tua família ficarias contente?
XERÉTA (olha para Lumena, põe a mão no queixo e lamenta) – Coitado! Agora que ele saiu daqui! Por isso que se diz: «Se soubesse, sempre vem depois». Porque é que ele está preso, Bebeto?
BEBETO (não consegue parar de rir) – Dizem que Xinoi apanhou-o a «comer» a besta dele… prendeu-lhe as calças que estavam penduradas no galho de uma purgueira e levou-o à Regedoria só em ceroulas.
DOMINGOS DE NHU CONOTE – Felizmente era de noite. (Para Bebeto) Ele nã despiu ceroulas?
BEBETO – Não. Só tirou as calças e pendurou no galho da purgueira. Xinoi apanhou as calças, pôs debaixo do braço e, com ele à frente foram à Regedoria.
ANTONINA (com ar de gozo) – Quase que ele pensou que estava em casa da esposa ou da amante! Despindo as calças e pondo por lá!
NHAMIODA – Certamente ele já estava habituado naquilo. Habituado a fazer aquela patifaria com o animal de gente.
BEBETO – José Regedor queria chamar os Cabos-de-Polícia, João de Quina e José Pimpim para o levar à Praia, mas resolveu dar-lhe outro tipo de castigo.
PEDRO SABININHA – José Regedor deu-lhe um castigo mais bestial.
BEBETO – Deu-lhe castigo de um ano a sustentar a besta com um feixe de palha por dia. E disse que vai comunicar ao Nhu Joãozinho de Nha Palmira, Cabo Chefe, para avisar e pôr sob alerta todos os donos das bestas daqui da zona: Bajója, Pépi Txentxéna, Alírio Bibinha, Branco de Nha Manazinha, Ina Moniz, Marçal da Costa, Nené Corda, Jorge Sacutelo, Joãozinho de Aleluia, Lázaro, Compadre Bento, Chalino e outros.
FEFÉ DE JOIA – Aureliano teve mas é sorte. Eu não me importava de dar palha à besta durante dez anos, do que ir à Praia a pé e passar vergonha diante daqueles Cabos-de-Polícia malvados, debaixo de espadas afiadas.
ANTONINA (dá uma palmadinha no ombro da Xereta) – Tu é que fizeste com que o rapazinho fosse comer besta de gente!
XERETA – Eu?! Porquê?! Eu é que lhe tirei as calças, que peguei no preparo dele e meti?
ANTONINA – Não foste tu que lhe despiste as calças, não foste tu que pegaste-lhe na coisa e meteste no sítio, mas do jeito que estavas a dançar com ele… que estavas a dar-lhe cola!…
NHAMIODA – Coitado do Aureliano! Hoje é o seu dia de azar. Partiu a garrafa, furtaram-lhe a carteira, agora foi Xinoi que o apanhou na sua besta a maridar.
LUMENA (impetuosamente) – Coitado?! Bem feito. Rapazes de Cutelinho e de Achada Fátima têm vícios de mexer com bestas, como se há falta de mulher em Santiago.
OTÁVIO PRETA (questiona Lumena) – Tens provas de que rapazes de Cutelinho e de Achada Fátima mexem com bestas?
DOMINGOS DE NHU CONOTE – É para comer, sim! Nós vos pedimos e vocês não nos dão! E dizes que mulher há muitas! Há muitas de facto, mas não para muitos de nós.
PONXITA – Ok. Vou fazer-vos um teste e verifico qual de vocês é que nunca comeu besta.
NHAMIODA – Como assim, prima?
PONXITA – Aquele que já comeu besta tem um fio de cabelo na palma da mão direita. (Os rapazes abrem a mão direita, aproximam-se da luz e verificam a palma da mão) Pra já, todos já comeram besta. Se não fosse, não iam abrir a mão à luz do candeeiro para certificarem se tinha ou não o fio de cabelo.
DOMINGOS DE NHU CONOTE – Eu vou ser sincero. Se por cada vez me nascesse um fio de cabelo, eu já tinha cabelos até na sola dos pés.
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