Apoiado no cabo da enxada, Nhu Seis planeia como e onde beber um grogue fiado. Conversa com Djucruco que tem uma enxada ao ombro.
NHU SEIS – Não sei como, mas tenho que beber um grogue já.
DJUCRUCO – Estás a ver?! Tens mau hábito. Tomas fiado e não pagas, já não tens onde mais pedir.
NHU SEIS – Mas vou ter que beber.
DJUCRUCO – Como?!
NHU SEIS – Tens aí uns cinco que me emprestes?
DJUCRUCO – Mesmo que tivesse. Tu não pagas!
NHU SEIS – Quando é que te devo e não te paguei?
DJUCRUCO – Ainda anteontem pediste-me cinco escudos emprestados. Mas já sei que não mos vais pagar.
NHU SEIS – Como é que sabes que não tos pago? Alguma vez fiquei a dever-te?
DJUCRUCO – Não tens é vergonha na cara. Já te esqueceste a semana passada?
NHU SEIS – Não te paguei ainda mas vou pagar. Não te fico a dever!
DJUCRUCO – Tu não me deves só a mim. Deves a meio mundo.
NHU SEIS – Quem mais que eu devo?
DJUCRUCO – Não te lembras?
NHU SEIS – Faz-me lembrar.
DJUCRUCO – Quanto estás a dever a Pique?
NHU SEIS – Apenas um grogue.
DJUCRUCO – Segunda de Bia? …
NHU SEIS – Um grogue e duas postas de peixe frito.
DJUCRUCO – Domingos Prego?
NHU SEIS – Domingos Prego foi uma cadeira que lhe tomei fiado…
DJUCRUCO – Por quanto?
NHU SEIS – Setenta escudos.
DJUCRUCO – Há quanto tempo?
NHU SEIS – Ainda não fez três meses.
DJUCRUCO – Sete meses. Esqueceste que fui contigo?
NHU SEIS – Só ele é que devo há mais tempo!
DJUCRUCO – E a Segunda?… e a Pique? Já as deves há quanto tempo? Ou as dívidas delas não contam? Não pensas em pagá-las?
NHU SEIS – Delas também estão atrasadas um coxi. Mas pago-as quando eu receber.
DJUCRUCO – Estão atrasadas quanto tempo?
NHU SEIS – Quase um ano.
DJUCRUCO – Um ano e tal. E quanto é que deves a Bibinha do Alírio?
NHU SEIS – Quanto é que lhe devo?!
DJUCRUCO – Há dias que lá fomos… ela disse-te que já tinhas tomado cinco grogues.
NHU SEIS – Só tomei mais dois ontem… e um hoje quando vinha para o trabalho. Mas vou pagar-lhos.
DJUCRUCO – Quando?
NHU SEIS – Logo que receber.
DJUCRUCO – Já pagaste a renda de casa?
NHU SEIS – Só estou a dever quatro meses.
DJUCRUCO – E achas pouco?
NHU SEIS – Costumo dever um ano!
DJUCRUCO – Ah! Já estás viciado. Já acostumaste.
NHU SEIS – Assim que eu receber, pago-os a todos, tiro-lhes os olhos de mim.
O telemóvel toca, ele vê o número e não atende.
DJUCRUCO – Porque é que não atendes?
NHU SEIS – É uma chata que quer dar por cima de mim, mas não estou pelo negócio de mulheres.
DJUCRUCO – Negócio de mulheres, como?
NHU SEIS – Ela tem o marido dela, mas está maluca para eu ir…
O telemóvel do Djucruco toca.
DJUCRUCO – Está!
SENHORIA [V. O.] – DJUCRUCO…
DJUCRUCO – Sim. Quem fala?
SENHORIA [V. O.] – Estás ao pé de Nhu Seis?
DJUCRUCO – Sim. Quem é a senhora?
SENHORIA [V. O.] – Passa-lhe o telemóvel se faz favor.
DJUCRUCO – Você quer falar com Nhu Seis?
NHU SEIS (arregala os olhos e pergunta-lhe através de gestos) – Quem é?
DJUCRUCO – Ok. Espere que já vou-lhe passar.
Nhu Seis fica atrapalhado e faz sinal ao amigo para dizer que ele não está. Djucruco mete o telemóvel em alta voz e dá-lho.
NHU SEIS – Tou!…
SENHORIA [V. O.] – NHU SEIS?!
NHU SEIS – Oi, Dona! Tudo bem?
SENHORIA [V. O.] – Sabes perfeitamente que não está tudo bem…
NHU SEIS – Passo por lá hoje depois do trabalho. Estou quase a sair.
SENHORIA [V. O.] – Porque é que desde manhã estou a ligar-te e não me atendes?
NHU SEIS – Tinha o telemóvel no bolso de uma outra camisa… estava no silêncio, não ouvi.
SENHORIA [V. O.] – Se já não queres a minha amizade não vais tê-la.
NHU SEIS – Não vamos chegar a esse ponto.
SENHORIA [V. O.] – Não sei se não vamos chegar.
NHU SEIS (não sabe que o telemóvel está em alta voz) – Você está a falar muito alto.
SENHORIA [V. O.] – Estou a falar como costumo.
NHU SEIS – A sua voz até está a sair para fora do telemóvel.
SENHORIA [V. O.] – Não quero saber da minha voz, nem do telemóvel. Quero saber quando é que pensas pagar-me a renda de casa?
NHU SEIS – Passo por lá hoje.
SENHORIA [V. O.] – É sempre assim que tu dizes. Olha que já vai fazer treze meses que não pagas a renda. (Djucruco espanta) Não vou esperar nem mais um mês. Vou trocar a fechadura da porta.
NHU SEIS – Não se preocupe. Dou-lhe a minha palavra.
SENHORIA [V. O.] – Tu dás sempre a tua palavra. Deve ser por isso que já não tens mais para dar. Nunca dizes que não! Só que não cumpres.
NHU SEIS – Já não lhe disse que vou? (O telemóvel desliga, ele volta para Djucruco) Era a Nanda do Zebedeu. Estava a tentar convencer-me a ir ao casamento de sua filha. E pra já… vais comigo.
DJUCRUCO (dá um gracejo) – Já pagaste a Xia?
NHU SEIS – É verdade! Lá é que vamos beber. Ela é armada em esperta, mas é lá que vou beber fiado.
DJUCRUCO – Já lhe pagaste o que estavas a dever?
NHU SEIS – Não é da tua conta.
DJUCRUCO – Há dias eu fui lá, havia muita gente, ela estava a falar muito mal de ti… a chamar-te caloteiro. Fiquei envergonhado!
NHU SEIS – Ficaste envergonhado de atrevimento. Não é nada contigo.
DJUCRUCO – Não é nada comigo mas, quando ouço falar mal de um amigo meu fico triste. Sinto pena dele.
NHU SEIS – Sentir pena não resolve o problema. Se tens pena do teu amigo, paga a conta dele. Ou pelo menos paga-lhe um grogue hoje.
DJUCRUCO – Se tens tido sorte com quem te dá fiado, não hás-de ter com quem te paga as contas.
NHU SEIS – Xia é assim que ela é. Mas no fundo, ela não tem mau coração. Diz que não dá fiado… sem se sentir o copo já está cheio.
DJUCRUCO – E achas que ela ainda vai te dar fiado?
NHU SEIS – Dar… ela não dá. Mas eu sei como tomar.
DJUCRUCO – Como?
NHU SEIS – Queres beber ou não?
DJUCRUCO – Se aparecer…
NHU SEIS – Então vamos lá e deixa de querer saber demais.
DJUCRUCO – Não vais beber para depois fugires e deixar-me lá comprometido!
NHU SEIS – Comprometido porquê? Se for eu a pedir, porque é que hás-de ficar comprometido? Tu não és meu pai… e mesmo que fosses, eu sou maior e vacinado.
DJUCRUCO – Ok.
NHU SEIS – Vamos?
DJUCRUCO – Vamos.
II CENA
Nhu Seis e Djucruco estão parados à porta da tasca da Xia. Dário passa por eles correndo um arco. Nhu Seis chama-o.
NHU SEIS – Eh, puto… (Dário pára) Espera-me aí. (Nhu Seis dirige-se ao puto e fala baixinho com ele) Vou entrar ali em casa da Xia e deixo a enxada ao pé da porta. Tu ficas ciente, quando eu levar o copo à boca para beber, tu apanhas a enxada e foges com ela para a tua casa. Depois vou lá buscar e levo-te gratificação.
DÁRIO – Levas-me chupa-chupa?
NHU SEIS – Chupa-chupa e chuinga.
DÁRIO – Obrigado.
NHU SEIS – Mas faz de maneira que a Xia se aperceberá que alguém apanhou a enxada.
DÁRIO – Podes deixar comigo.
NHU SEIS (para Djucruco) – Came on.
III CENA
Xia está a arrumar a casa, Carlos e Patrick à volta de uma mesa, cada um com um cálice de aguardente a frente, enquanto jogam batota nas cartas. Nhu Seis e Djucruco entram e cumprimentam Carlos e Patrick com apertos de mão.
NHU SEIS – Boa tarde, Xia!
XIA – Já me vens pagar?
DJUCRUCO – Boa tarde.
XIA – Boa tarde, Djucruco. Peço-te desculpa, mas este teu amigo não gosta de pagar as dívidas.
NHU SEIS – Dizes assim, podem pensar que te devo bué dinheiro!
XIA – Não me deves bué de dinheiro, mas já me deves há bué tempo.
NHU SEIS – Também já vais calar a boca. (Abre a carteira e finge tirar dinheiro) Serve-nos dois dez.
XIA – Até que em fim! (Olha para as garrafas das diversas marcas de aguardente) De que marca é que querem? Mel Branco, Nha Dona, Fortinho, Djongago ou Santo Antão?
NHU SEIS – Duas Matxónas.
DJUCRUCO – Eu quero Fortaleza.
NHU SEIS – Então põe uma Matxóna e outra Fortaleza. Eu adoro Matxóna.
Xia serve dois cálices de aguardente, Nhu Seis bebe o seu rapidamente e põe o copo em cima da mesa. Enquanto finge abrir a carteira, Dário apanha a enxada e foge. Xia fica boquiaberta.
XIA – De quem é a enxada que o puto já levou?!…
NHU SEIS – Enxada?!
DJUCRUCO – Si, Nhu Seis. É a tua enxada.
XIA – Então vai atrás dele rápido, antes que te perca no beco.
NHU SEIS – Ave-maria! A minha enxada?! O busca-pão dos meus filhos?! Vou já agarrá-lo. Ladrãozinho, sem vergonha. Vai trabalhar como os outros.
Nhu Seis sai a correr do Dário.
XIA – O mundo está perdido. Está no fim mesmo. Ele vai vender a enxada do coitado já e compra droga. Deus nos há-de perdoar.
Nhu Seis não vai voltar. Djucruco junta-se ao Carlos e Patrick e jogam juntos. Chega Paulito e junta-se a eles.
DJUCRUCO (baralha as cartas e põe o baralho em cima da mesa) – Alguém que corte.
PAULITO (apanha o baralho) – Quem te disse que és tu quem dá as cartas?
DJUCRUCO – Não sei por que é que és assim conflituoso!
PAULITO – Vamos tirar à sorte quem é que dá.
Põe o baralho em cima da mesa e Carlos apanha-o.
CARLOS – Eu faço o sorteio. Quem apanhar a maior carta é que dá.
Paulito ganha a sorte e dá as cartas. Mas ele não ganha as cinco primeiras jogadas. Arrebata o baralho, abre as cartas e confere.
PATRICK – Estás a ver se a tua mãe está aí?
PAULITO – Oh, Xia; traz aquele baralho mais novo. Este aqui há quem já o conhece até ao duque.
PATRICK – Se estavas a ganhar não dizias isso.
PAULITO – Vai pro Diabo, se quiseres?
CARLOS – Calma, Paulito.
PAULITO – Calma, não. O dinheiro é meu, estou a jogar para ganhar. Daqui a nada eu rasgo esta porcaria.
XIA – Isso não és capaz. Eu sou mulher, mas pensas que és o único homem aqui dentro? Se deixares o rabo coçar-te e rasgares as cartas, verás onde é que as mochas se deitam.
PAULITO – Quem é que me mostra onde que as mochas se deitam? Quem… tu? Nem tu e nem os teus homens. Pensam que sou criança? Sou pai de crianças.
CARLOS – Tem calma, Paulito. Se hoje estás a perder, ontem já tinhas ganho, e ganhas amanhã. Respeita a cara da Xia e a ausência do seu marido.
PATRICK – Não precisas de pedir-lhe por favor, Carlos. Se ele não quer ficar aqui como gente, far-lhe-emos…
PAULITO – Far-lhe-emos o quê? Piolho. Levanta-te e vamos ver quem é mais homem. Faço-te entrar outra vez lá donde saíste.
PATRICK (avança, Paulito recua) – Tu?… Não tens hipótese. E cuidado com as tuas palavrinhas para não te fazer engolir a língua… e oxalá alguns dentinhos.
PAULITO – Oh, filho de um corno; não sabes com quem estás a falar? Estás a falar com o teu pai, seu canalha.
PATRICK – Oh palhaço! Nisso ninguém acredita por que eu sou mais velho que tu dois meses. Agora o que todo o mundo sabe, é que aquele filho mais novo da Bia que registaste… eu é que sou o pai dele.
PAULITO – Punoi?! Tu é que és o pai do Punoi?! Não vais negar?
PATRICK – Negar?! Vá perguntar a Bia! Já que não reparaste como é que ele é parecido comigo! Quando é que tiveste um filho branco, loiro e olhos de gato?! Tu sabes bem que a Bia te põe os cornos.
PAULITO – Tu vais ter que provar! Rapazes, vocês são testemunhas.
CARLOS – Eu não ouvi nada.
DJUCRUCO – Eu ouvi mas não percebi.
PAULITO – Vocês são cachorros!…
PATRICK – Se queres provas eu dou-tas. (Paulito enerva) Não te lembras, anteontem, que ela demorou a abrir-te a porta? Pois, estava a espera que eu saísse pelo quintal.
PAULITO – Isto é mentira…
Paulito agride ao Patrick e este joga-o ao chão. A rapaziada separa-os. Paulito fica com um olho inchado.
IV CENA
Paulito preparado para sair, Bia nota nele um olho inchado.
BIA – O que é que te aconteceu no olho, Paulito?!…
PAULITO (hesitado) – Não… não é… não é nada, não. Deve ser ploca… ou alguma infeçãozinha.
BIA – Aquilo ali não é ploca nem é uma infeçãozinha. É mais parecido com um murro que levaste no olho.
PAULITO (dá uma gracinha) – Está inchado?
BIA – Quem foi que te inchou o olho?
PAULITO – Ninguém!
BIA – Ninguém? Quando é que um olho se incha sozinho?
PAULITO – Estava com duas canas no corpo, bati com a cara na parede.
BIA – Mentira. Se batesses com a cara na parede, não era a órbita do olho que ficava negra. Machucavas a testa… ou pelo menos fazias um galo.
PAULITO – Não te queria dizer, mas… foi ontem quando estava a separar Carlos e Nhu Seis que se engalfinharam, conforme um deles deu um soco ao outro, acertou-me no olho.
BIA – Esses rapazes… não deixam das suas birras! Andam sempre em chinfrim, como se são comborços!
PAULITO – Hoje devo vir mais tarde. Vamos fazer uns regos e enquanto não acabamos não podemos sair.
BIA – Não me digas que vais voltar outra vez lá pela madrugada!
PAULITO – Depende. Mas não te preocupes se eu demorar. Estará tudo bem.
BIA – Não vais sair com esse olho assim como tens! (Levanta-se) Deixa-me untar-te um pouco de pomada penicilina e tapo com gaze.
PAULITO – Ah! Ok.
Bia cura-lhe o olho, põe-lhe na mesa um pedaço de cuscuz e uma caneca com leite dormido para matar o bicho.
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