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Pátria soletrada à vista do Harmatão – V
Cultura

Pátria soletrada à vista do Harmatão – V

 Sequência do projecto  Pátria Soletrada à Vista do Harmatão do poeta José Luiz Tavares, que escreve o seguinte: "Na continuação da  nossa peregrinação memorialística pelo lugar di biku, hoje evocamos duas figuras particulares da nossa infância nesse Txonbon de outrora, Abel di matxu i Barboza májiku. O subtítulo (os dois do diabo) é, obviamente, irónico, relembrando apenas a nossa percepção de menino".

TXONBON

12.

[OS DOIS DO DIABO]

Com a trovoada a rolar longe, prenunciando chuvada, talvez o melhor refúgio seja evocar duas figuras que a hora ilumina, agora que ao ardor da caminhada sob o sol das achadas sucede a serena peregrinação interior: avelino lopes, abel di matxu, comerciante e benemérito, e ntoninhu barboza, mais conhecido por barboza májiku.

Nhos kunpanha-m.

Chegáramos na véspera da tua partida (quando foi a vida outra coisa senão uma longa despedida?), e, na serra da malagueta, a caminho do tarrafal, surpreendera-nos um nevoeiro ainda mais cerrado do que o habitual. Confiaram-me o papel de guia, caminhando a pé em frente ao jipe que nos transportava, depois de ponderada a continuação da viagem via calheta (uma grande volta agora que estávamos tão perto do nosso destino), pelo facto de ser a primeira vez que a condutora, novel companheira desta vida, demandava tais alturas, e, por isso, desconhecedora das suas curvas e precipícios.

Vencido o estendal do nevoeiro e duas sinistras passagens, onde apenas o vazio nos aguarda lá em baixo, acolheu-nos, do lado de gindon, um sol que abraçava sem pudor casas e pedras, e secava as nossas lágrimas por avistarmos de novo o chão do nascimento. A memória leva-me, porém, por desconhecidas veredas até à dor desse homem que víramos na nossa última visita derrotado pela doença e pelos anos.

A estrada, tal um rio calmo, foi percorrida num ápice ao vento que transporta queixumes e canções. Assim que penetrámos o sossego da casa da irmã, quisemos logo saber de ti. E lá descemos a rua de casas, nomes e rostos familiares, o sol minguando à ilharga do povoado que já foi humilde (então um cenário de poucas e irregulares fileiras de casas de pedra solta, cobertas de tosa, txabeta karapati ou padja kana, plantadas no meio de purgueiras), o nosso espírito recolhido junto ao poial dos avós, à empena da casa materna, o corpo marcando encontro com a derrota aprazada.

Nem foi preciso pedir licença para penetrarmos no quarto onde jazias amarfanhado, tu, ntoninhu barboza, ou apenas barboza májiku «o homem que desafiou a morte», como apregoavam os cartazes das matinés de ilusionismo nas noites da cidade grande. Surpreendeu-me a tua loquacidade, a contrastar com a imobilidade decadente do teu corpo, como se a tua mente pertencesse a um outro lugar, a uma outra vida.

Esquecidas as circunstâncias pesarosas, logo nos entregámos à galhofa, atiçada pelo teu vinho preferido, que bebias em grandes goles (um txeki, como gostavas de dizer) antes do regresso de nanda, a esposa vigilante, que dissera, porém, com um matreiríssimo sorriso, que não te poderia proibir o último dos prazeres.

E quando o meu cunhado, fifi aza branka, explicitara gozosamente aquilo que nanda deixara apenas subentendido, disparaste no teu velho crioulo do fogo: «antan nhô baxâ karsa i nhô birâ kadera, nhô ta odjâ si n ka ta retâ» (tu que falavas dos teus doze filhos como uma completa equipa de futebol mais um suplente, e inclusive apodaras, brejeiramente, um deles de fanadete), e então desatámos numa gargalhada exorcizante que nos fez mover, na ausência de ofensa, para esse comum espaço de entendimento, esse património nutrido de indulgência a que damos o nome de sabedoria.

Dos teus prodígios de mágico afamado, lembro-me das misteriosas notas que surgiam dentre os teus dedos, no remoinho dos teus gestos de inimitável prestidigitador, e as impossíveis proezas de arrancar olhos e línguas, para não falar da contada memorável monda no padjigal do teu pai, na ilha do fogo: doze enxadas a trepidarem no lugar, e sombra alguma de gente, a não ser tu, barboza májiku.

Do teu suposto pacto com o diabo só fazias gala quando, por causa dalguma rapariga, ou por outras domésticas quezílias, emaranhavas em sopapos e tabefes com a nanda, por vezes metendo até sonoras cacetadas no lombo. Então batias em retirada pouco gloriosa, e, na segurança da nossa porta, do outro lado do barranco, trocavas farpas com a borges valerosa, ela citando-te como bravia toureira «barboza, si bo é omi, bu ben li», e tu respondias «dentu'l ku», e viravas para nós justificando «el tenê un kaza di mudjê, n ta bâ es ta bâ djuntâ na mi». E nós, inocentes e perversas crianças, perguntávamos ao mágico derrotado pelas mazelas das contendas, ao que ele retrucava altaneiro: «nada ka fazê, el da ruba suzu (diabo)». Ainda hoje um nostálgico arrepio percorre-me sempre que passo perto do quarto alto, do lado da casa de vinda, onde não nos atrevíamos a entrar, porque se dizia, por ingénua crença, que era onde o demo vivia, trancado.

E como subíramos à achada grande para contemplarmos o sol-pôr, numa lentidão extasiante, e descêramos a barera i kabesa karera relanceando o nosso olhar pela tua porta, lembrámos de ti, abel di matxu, padrinho do meu irmão, compadre da minha mãe.

Ah, abel, esses que falam do teu (con) trato com o demo, não sabem da tua testemunhada labuta: da primeira tosca taberna de dois copos, uma garrafa e meia dúzia de ovos fervidos; das tuas viagens para a grande ilha do norte, ao porto grande de afamadas mulheres e cosmopolitas luzes (embora as almas crentes, ou simplesmente malévolas, digam também que era aí, na ilha abastada, nas noites de morro branco, que se prestavam provas para se saber se alguém podia ser contratado com o anjo negro e transformar-se em masóniku ou não), transportando sacas de mancarra, cachos de banana, até miúdos animais vivos. Depois passaste ao rolo de fazenda, ao bidon de petróleo, aos materiais de construção, às aguardadas móias, aos afilhados inúmeros que te enxameavam a porta, aos carros com nome de santo que levava as gentes à missa de domingo, que, mesmo assim, dizem eles, não te fariam ganhar o reino dos céus.

Para que nunca se arrependessem do veneno da maldade e da inveja, tiveram bem a certeza, lá no triste final, de que homem algum em tal chão poderia prosperar pelo seu simples e abnegado esforço: a tua fortuna só podia ser coisa do diabo, de mais a mais baptizado (para justificarem a tua religiosidade irrepreensível), por isso mesmo impossível de conjurar pelos meios costumeiros. (Lembram-se da inverosímil, caricata estória da irmã do padre Peixoto, a quem, supostamente, abel entregara ao demo)?

Em que inferno te meteram quando se lhes secaram as copiosas lágrimas da hipocrisia, eles que foram hóspedes da tua casa, convivas da tua mesa, peregrinos da tua porta, sem te perguntarem por onde começaste?

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Redação