Referindo-se aos objectivos da luta de libertação (bi)nacional da Guiné e de Cabo Verde escreve Cabral, na sua “Análise de Alguns Tipos de Resistência”, que o seu essencial fundamento residiria na vontade dos dominados no sistema colonial (incluindo os letrados e os funcionários coloniais nativos) em demonstrar que não éramos “portugueses, mas africanos da Guiné e de Cabo Verde”. Deste modo, essa primeira expressão do complexo e controverso processo do suicídio de classe devidamente aplicado ao caso caboverdiano visaria fundamentalmente a subjectivização por parte dos sectores nacionalista e revolucionário da pequena burguesia caboverdiana de serviços da sua inaceitável condição de colonizados e da sua correlativa marginalização histórica, e, assim, a superação da dupla assimilação, ainda e essencialmente por via da consciencialização política e cultural.
(CONTINUAÇÃO DA TERCEIRA PARTE)
Se tornarmos as lições teóricas de Amílcar Cabral extensivas ao caso caboverdiano poder-se-ia concluir que em Cabo Verde se teria assistido a um fenómeno complexo de dupla assimilação das elites letradas crioulas e da pequena burguesia burocrático-administrativa caboverdiana em geral. Relembre-se neste contexto que, como referido, Cabo Verde não fora muito particularmente focado pelo grande estratega e pensador nos dois volumes das suas Obras Escolhidas, aliás, editadas postumamente, e em outras publicações conhecidas e largamente divulgadas da sua autoria. Essa situação e a correlativa percepção da obra teórica e da obra prática de Amílcar Cabral viria a alterar-se radicalmente com a publicação, em 2015, do livro Cabo Verde - Cartas e Reflexões, de Amílcar Cabral, pela caboverdiana Fundação Amílcar Cabral. Com efeito e entre muitas outras candentes e surpreendentes abordagens, o pan-africanista e bi-nacionalista caboverdiano-guineense Amílcar Cabral considera o caso identitário caboverdiano como carecendo de um tratamento reflexivo especial, por ser na essência da sua génese assaz especial no quadro geral da dominação imperialista das colónias africanas. Essa mesma especialidade adveria, entre outras coisas, da circunstância histórica de, à semelhança das Antilhas e das Américas, mas sem o genocídio dos índios nativos, Cabo Verde ter experienciado e vivenciado um longo e real período de cinco séculos de dominação colonial e, por isso, abrangente de todas as fases do colonialismo, desde o mercantil até ao clássico. É por isso, segundo Amílcar Cabral, que, em resultado da miscigenação cultural entre africanos e europeus no quadro da sociedade colonial-escravocrata, o povo caboverdiano se teria constituído já no século XIX como uma entidade cultural singular e diferenciada enquanto comunidade humana com território, identidade cultural e expressões culturais próprios como a língua crioula, podendo por isso ser qualificada como uma nação crioula atlântica susceptível de exercer o seu direito à auto-determinação e à independência políticas já nessa altura (tal como, aliás, efectivamente ocorreu com as populações europeias nativizadas nas três Américas e com uma parte importante dos povos crioulos nas Antilhas e nas Caraíbas), sendo ademais assaz relevante que essa fase independentista ocorrida no outro lado do Atlântico seja coincidente com a ocupação efectiva dos territórios africanos continentais e o início da dominação imperialista na sua forma de colonialismo clássico desses mesmos territórios.
Tendo em conta os pressupostos acima elencados e caracterizados, somos da opinião que a dupla assimilação da pequena burguesia caboverdiana no seu todo residiria:
i) Por um lado, na sua condição de elite letrada e/ou burocrático-administrativa, isto é, de classe colonial de serviços, detentora de uma postura identitária largamente mimética em relação à cultura colonial portuguesa, dominante em Cabo Verde e aos padrões comportamentais e simbólicos inculcados pela Escola e por outros aparelhos ideológicos do sistema colonial, em especial pela Igreja Católica. A faceta dual e bifrontal da pequena burguesia caboverdiana de serviços, ou de uma sua influente fracção, foi detectada por Gabriel Mariano no seu ensaio “Nome de casa e Nome de Igreja”, tendo a sua dimensão mimética e alienada sido particularmente diagnosticada, fustigada e vituperada por A. Punói (pseudónimo de Manuel Duarte) no panfleto político, de excelente recorte estilístico, intitulado “Cabo Verde e a Revolução Africana” (constante do livro póstumo Cabo-Verdianidade e Africanidade, e Outros Textos, de 1998, bem como no celebrizado opúsculo anti-claridoso intitulado Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana, editado, em 1963, pela muito festejada e historicamente relevante CEI - Casa dos Estudantes do Império - e traduzido para o francês e publicado, em 1967, pelas Éditions Présence Africaine, sendo a sua autoria assumida primeiramente por Onésimo Silveira, mas, depois de algumas controvérsias e muitas tergiversações, ficando-se a saber que efectivamente elaborado e escrito por Manuel Duarte a partir de um outro texto de Onésimo Silveira elaborado para ser lido num encontro de intelectuais angolanos, como, aliás, expressamente revelado/corroborado pelo próprio Onésimo Silveira no livro de entrevistas concedidas a José Vicente Lopes e intitulado Onésimo Silveira: Um Mar de Histórias, podendo-se e devendo-se por isso considerar doravante o icónico livro-manifesto da primordial autoria de Manuel Duarte.
ii) Por outro lado, na sua condição de pequena burguesia intelectual e burocrático-administrativa constituída no contexto histórico específico herdado da colonial-escravocracia e emanada de um povo também, ele próprio, sujeito durante toda a sua multissecular e, por vezes, trágica história, à assimilação e à despersonalização culturais, primacialmente consubstanciadas nos reiterados intuitos e práticas visando primeiramente a ladinização dos escravos negro-africanos recém-desembarcados nas ilhas e, depois, o aportuguesamento da cultura caboverdiana entretanto estoicamente erigida no solo madrasto das ilhas. Como é por demais sabido, o aportuguesamernto da cultura caboverdiana visava fundamentalmente a obliteração da dimensão africana da sua identidade, como logram fundamentar Manuel Duarte no ensaio “Cabo-Verdianidade e Africanidade”, no panfleto/manifesto político-cultural “Cabo Verde e a Revolução Africana” e no livro Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana, e Dulce Almada Duarte na comunicação “Os Fundamentos Culturais da Unidade”, apresentada ao Simpósio Internacional Amílcar Cabral, de 1983, e, depois e com grande gabarito académico, Gabriel Fernandes na sua obra A Diluição de África (...), acima referenciada, e na sua outra obra Em Busca da Nação (..), bem como ainda por outros estudiosos e intelectuais caboverdianos. No caso de Cabo Verde e tendo em grande conta as suas especificidades histórico-culturais, o suicídio de classe, agora visto na sua vertente cultural, visaria prioritariamente a superação do estado de alienação resultante da condição de ser-de-dois-mundos das elites letradas e da correlativa dupla assimilação da pequena-burguesia intelectual e burocrático-administrativa caboverdiana. Sublinhe-se que, por isso, a superação da dupla assimilação não deveria, em caso algum, ser confundida com uma qualquer perda da integridade, da originalidade e da singularidade crioulas da cultura caboverdiana. Como é sabido e evidente, a cultura caboverdiana pode ser definida como síntese antropológico-cultural e diaspórica das matrizes continentais afro-negras e euro-ocidentais iniciais ocorrida num processo longo e doloroso no chão afro-atlântico do sahel insular caboverdiano, podendo por isso ser considerada como perfazendo dos pontos de vista identitário e antropológico uma característica situação de homem-de-entre-dois-mundos (ainda aplicando a expressão cunhada por Manuel Ferreira no texto acima citado, ainda que partindo de bases de reflexão assaz diferentes e por vezes opostos).
Assim, a superação da dupla assimilação da pequena-burguesia intelectual e burocrático-administrativa (ou de uma sua importante fracção) nunca poderia significar uma qualquer diluição da cultura caboverdiana em culturas continentais negro-africanas ou euro-ocidentais. Dito de outro modo: essa superação não poderia, por qualquer forma, implicar o desembocar da identidade cabo-verdiana numa das duas situações seguintes:
i. O seu retrocesso quer à primordial co-matriz afro-negra chegada às
ilhas e, depois, renovada por sucessivos apports e levas de novos escravos negro-africanos durante todo o período da subsistência do tráfico negreiro e da sociedade colonial-escravocrata, quer ainda à inicial co-matriz cristã euro-ocidental , e, assim, ao estado em que a cultura caboverdiana (ou, melhor, a cultura proto-caboverdiana) se encontrava nos períodos iniciais do já remoto passado escravocrata, isto é, na ante-madrugada do seu nascimento, segundo a bela expressão poética utilizada por Osvaldo Alcântara no poema “ A Terra Roxa de Massapé”.
ii. A aceitação da matriz euro-ocidental, no sentido utilizado por Artur
Ramos na obra O Negro Brasileiro e retomado por Baltazar Lopes da Silva no acima referido ensaio “Uma Experiência Românica nos Trópicos”, significando a capitulação da cultura caboverdiana perante a cultura europeia colonial, inicialmente imposta a escravos despidos de retaguarda social e, depois, sucessivamente actualizada e tornada dominante durante todo o tempo de duração da dominação estrangeira mediante a prática reiterada das políticas coloniais de assimilação cultural. É essa cultura colonial dominante que é, aliás, objecto principal da pugna anti-assimilacionista e, assim, da contestação cultural anticolonial.
Como é sabido, tanto a inicial matriz afro-negra e a sua re-alimentação étnico-cultural e étnico-racial, frequentemente ocorrida durante todo o período do tráfico negreiro, como também a primordial matriz euro-ocidental, depois re-actualizada como cultura colonial dominante, foram reelaboradas, ambas, na medida em que foram expurgadas do seu carácter estranho e estrangeiro e interiorizadas pelos actores sociais caboverdianos mediante os processos antropológicos e sociológicos que perfizeram a mútua diluição de ambas as co-matrizes culturais iniciais numa nova identidade cultural e conduziram à emergência e à plena consolidação em Cabo Verde de uma crioulidade historicamente constituída e insularmente diferenciada.
No plano da identidade cultural, o processo de suicídio de classe deveria ser, pois, entendido sobretudo como processo de catarse e des-alienação culturais, primacialmente dirigido contra as políticas coloniais de assimilação. Para o caso particular de Cabo Verde, o mesmo processo visaria, antes de mais, um duplo objectivo:
i. A assunção consciente e deliberadamente pensada da cultura caboverdiana na integridade da sua historicidade e da sua completude crioula, incluindo a sua dupla matricialidade afro-latina (ou, dito de outro modo, negro-europeia) e, assim e, também, necessariamente, com inclusão das manifestações e expressões culturais crioulas e sincréticas radicadas tanto na co-matriz afro-negra como igualmente na co-matriz euro-ocidental, mas com necessária superação do mimetismo colonial eurocêntrico e patente com particular evidência em certos sectores mais lusitanizados das elites letradas caboverdianas, e, aliás, ainda persistente nos tempos pós-coloniais das elites intelectuais e burocrático-administrativas crioulas nativas e das burguesias compradoras neo-colonias caboverdianas.
Referindo-se aos objectivos da luta de libertação (bi)nacional da Guiné e de Cabo Verde escreve Cabral, na sua “Análise de Alguns Tipos de Resistência”, que o seu essencial fundamento residiria na vontade dos dominados no sistema colonial (incluindo os letrados e os funcionários coloniais nativos) em demonstrar que não éramos “portugueses, mas africanos da Guiné e de Cabo Verde”. Deste modo, essa primeira expressão do complexo e controverso processo do suicídio de classe devidamente aplicado ao caso caboverdiano visaria fundamentalmente a subjectivização por parte dos sectores nacionalista e revolucionário da pequena burguesia caboverdiana de serviços da sua inaceitável condição de colonizados e da sua correlativa marginalização histórica, e, assim, a superação da dupla assimilação, ainda e essencialmente por via da consciencialização política e cultural.
ii. Sequente a esse processo de consciencialização, os integrantes da fracção mais nacionalista e patriótica da pequena-burguesia crioula caboverdiana poderiam, livres da alienação assimilacionista inculcada pelo conjunto totalizante do sistema de dominação colonial, poderiam ressuscitar como trabalhadores intelectuais e actores sociais progressistas de pendor socialista e/ou revolucionário porque largamente identificados com as camadas mais simples, humildes e anónimas do povo laborioso e trabalhador e com as suas justas aspirações ao progresso social, à felicidade e ao resgate da liberdade de desenvolvimento do seu processo histórico, da integridade da sua cultura e da sua dignidade humana espezinhada, contra as chagas maiores do sistema colonial que, segundo Amílcar Cabral, seriam a disseminação entre o povo explorado e oprimido da quotidiana humilhação, da pobreza, da miséria, das doenças, da ignorância e do medo generalizados. A par desse processo de suicídio de classe mediante a identificação do sector progressista e revolucionário da pequena-burguesia intelectual e burocrático-administrativa com os interesses perenes e de longo prazo das largas massas populares, tem lugar um outro e concomitante processo histórico-social resultante da eventual opção político-estratégica socializante do movimento de libertação nacional e social para se contrapor à eventual deriva ou degeneração neo-colonial do processo emancipatório que veio a culminar nas independências políticas e nas soberanias bi-nacionais das Repúblicas irmãs de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, previsivelmente em processo de concretização do projecto da sua gradual e paulatina unificação orgânica na pátria africana forte, progressista e solidária pensada e sonhada por Amílcar Cabral: as franjas e os sectores mais assumidamente patrióticos da pequena burguesia possidente no quadro colonial caboverdiano encetam o processo histórico do seu emburguesamento, todavia não no sentido da sua conversão numa burguesia burocrática e compradora dominante dos pontos de vista económico, social, cultural e político, e em necessária aliança com o capital monopolista financeiro internacional e transnacional como é característico dos sistemas neo-coloniais, mas no sentido da sua reconversão a uma verdadeira burguesia nacional, empreendedora, patriótica/nacionalista e identificada com os interesses e as necessidades de desenvolvimento da sociedade e do povo caboverdianos na sua totalidade, deste modo contribuindo ela também para a liberdade de desenvolvimento das forças produtivas nacionais e, deste modo, para a retoma desenvolvimentista e em liberdade do processo histórico caboverdiano e para a consolidação e o enriquecimento da cultura crioula caboverdiana como cultura nacional, patriótica, científica, humanista e universalista, tal como propugnado por Amílcar Cabral.
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