Senhores passageiros, acabamos de aterrar no Aeroporto Internacional Cesária Évora, em Mindelo…
Ilha de São Vicente, 27 de Agosto de 2015
- Olá Meninos!
Hoje é um lindo dia de férias e Mindelo esbanja beleza e charme. Volto à cidade, depois de muito tempo, e, ainda de mochila às costas, ouço música suave, por todos os lados, e gente rindo às conversas. Cheiro a marisco grelhado, cores de roupas, casas bonitas, frutas e legumes frescos, brisa do mar … e todos de pés descalços.
Lembro-me do aniversário da Diva, pois, em sua homenagem, os cabo-verdianos decidiram que 27 de agosto passa a ser o Dia dos Pés Nus. Tiro também os sapatos e, ao guardá-los na mochila, cai-me o diário da Clara. Apanho-o rapidamente.
Este diário é um tesouro. É como o dicionário do Tio Sim. Nele estavam escritas todas as palavras do mundo. O Diário da Clara é igual: nele estão descritos todos os costumes das ilhas. Eu sou Camões Crioulo e estou, agora, bem de cara para o MONTE CARA. Limpo e abro o Diário de Viagens, presente mais valioso da Preta, Mana Minha.
A primeira vez que Clara Preta descobriu-se míope foi em Mindelo, São Vicente. Não havia como ver, nem entender, como é que o Monte Cara se chamava assim. Ela não queria passar por ignorante e pesquisou muito bem, nos livros que tinha, o que de importante havia naquela ilha. Nos anos idos de 1983, havia: o Monte Cara, claro; a Baía do Porto Grande, linda, calma, quente e charmosa; a Fábrica Favorita, os Calçados Socal e, também, a Casa Leão. Outras coisas importantes devia haver. A pesquisa não era fácil como hoje: não havia a internet. A televisão pouco noticiava as histórias locais; e Baía das Gatas era o nome de um lugar, onde se faziam acampamentos e passeios agradáveis, mas nada tinha a ver com festivais. A bem da verdade, nem festivais ainda havia.
Então pensou: faço uma lista, pergunto antes, durante e depois da visita, e assim, aprendo mais. E assim descobriu Ovídio Martins, na parte das gentes da ilha. Um professor lhe contou dos poemas e, na Biblioteca Central, viu também os livros: Aspecto da Ironia de Eça De Queiroz, ensaio, de 1937; Recaída; 1947; Noite de Vento, 1951: e Virgens loucas, 1971, de António Aurélio Gonçalves, chamado de Nhô Roque.
Portanto, todas as informações que Clara aprendera, na primeira visita a São Vicente, tinham a ver: com a beleza da cidade, a riqueza cultural e os livros que sobre ela foram escritos. Anos depois, foi descobrir que Monte Cara, ex-líbris, cartão postal da cidade do Mindelo, tem este nome devido ao fato de o seu recorte fazer lembrar um rosto humano olhando o céu. Portanto a cara do Monte não estava a olhar para o visitante, que tanto procurava o seu olhar e o seu sorriso. Estava o Monte deitado, a olhar para o céu. Realmente precisava de óculos.
O Monte Cara já foi chamado, no antigamente, de Cabeça de Washington. Ele tem 490 metros de altitude e fica a Oeste da Baía do Porto Grande, em frente à cidade do Mindelo. Ele é o Guarda Mor da ilha de Ovídio e recentemente foi considerado como uma das sete maravilhas de Cabo Verde. Mas quem conhece os mindelenses sabe que, para eles, o Monte Cara e a Baía são a 1ª Maravilha de Cabo Verde. Se não for a 1ª Maravilha do Mundo inteiro.
A história da ilha levará anos a ser escrita. É a história onde começam as histórias de muitos grandes filhos da terra. O Liceu Gil Eanes que brevemente completará o jubileu de 100 anos, acolheu gente de todas as ilhas. E mesmo Chiquinho, meio gente, meio livro, viveu em Mindelo e está no diário de Clara, que ela escreveu, quando visitou Mindelo e tentou entender o que lá se passou entre realidade e ficção.
Então estava o Chiquinho, no meio da aula, quando deparou com um erro de português, corrigido por Nho Baltas, que era de São Nicolau, mas que, como o Germano Almeida e muitos outros, viveu vários anos em São Vicente.
- Chiquinho, oh rapaz! Afinal? Não se separa o sujeito do predicado. Tira de lá a vírgula. Em vez de “O Carnaval, é a festa do Povo de São Vicente” escreve a mesma frase, mas sem vírgula.
Mas coragem! O domínio da língua portuguesa é uma Terra de Promissão. A vírgula é uma menina sabida: há que poder lidar com ela. Difícil a vírgula? Ná…
Chiquinho matutava muito nas aulas de Nhô Baltas. O Sr. Professor insistia que a língua portuguesa não era, não senhor, a língua mais difícil do mundo. Ele desculpava-se: que era difícil. Que regras eram imensas, excepções maiores ainda. Que coisa, que tal... E assim, insistia o rapaz, para fintar a gramática.
Mas o Professor talhava:
- Então, Chiquinho, com quantos anos começa a falar um menino chinês?
- Por volta dos dois, Sr. Professor.
- E um menino inglês, Chiquinho?
- Por volta dos dois, senhor Professor.
- E um menino de Caleijão, moda você, Chiquinho?
- Acho que com a mesma idade, senhor.
- Muito bem, Chiquinho. E você acha que Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Raquel de Queirós, Germano Almeida e Fátima Bettencourt começaram a falar com dez anos?
- Não, senhor professor. O Senhor também…! (Chiquinho coçou a cabeça).
- Então, rapaz, por que razão o português é a língua mais difícil do mundo, se todos eles falam português desde a tenra idade?
Houve risos e gargalhadas. Só Chiquinho mandingou. Gostava do Sr. Professor, mas, às vezes, as gargalhadas o faziam sentir mais burro que bosta de burro. E bosta de burro lhe trazia o cheiro do chão. E cheiro de chão lhe lembrava sua terra molhada. São Nicolau em tempo de azágua…
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Ao ler isso, pensei, como a Clara, que, realmente, nós moramos numa casa grande, muito bonita e cheia de tranças. É uma casa pintada de cor-de-rosa, por dentro, e de branca por fora. Do lado de fora da casa, estão duas janelas pois que as janelas são os olhos da Casa. O Monte Cara, Guarda Mor, era o vigilante que das suas gentes e de todos cuidava bem. E a Baía, sala aberta para o oceano, era a janela do mundo. Assim, não era difícil entender porque o Monte Cara olhava para o Céu e porque queria ser decifrado. Revelava-se apenas para quem olhasse, com olhos de ver, ou por intermédio de um filho seu, que bem o conhece e dele se orgulha.
É preciso saber olhar, também. Abramos a casa de tranças e, Ilha a ilha, soltemos a língua dos deuses que o mar transporta ao silêncio das rochas. Lembro do Ovídio, que se diz trazer dentro de si todos os mares do mundo. Cheia de encantos, lindas frases moldam o coração dos homens, num Mindelo à noite, à luz da lua, nas canções de ninar e na voz de Cesária.
A história dos mindelenses tem lá dentro todos os mares do mundo, pois que São Vicente foi povoada no fim. Centenas de anos depois das outras. Os codês são assim, sejam gente, sejam ilhas, têm a vantagem de aprender com os mais velhos e de buscar seus caminhos, só deles.
Depois que muitos andaram, estudaram, nasci eu. Depois de muito se ter escrito e cantado sobre Mindelo, escrevo eu. Eu sou Camões Codê, irmão mais novo da Clara, herdeiro de seus escritos e suas memórias. Cabe-me continuar o começado. Faz faço-o do meu jeito. Como todo Codê, sou voluntarioso e criativo. E assim nasce esta história de São Vicente, a partir do Diário Aberto da Clara.
Esta é uma história do saber, para mostrar às crianças como, brincando, também se aprende. Voltaremos em breve. Continuamos a escrever o Livro do Amor. Adeus Mindelo.
E do “Monte Cara vê-se o Mundo”.
Mas voltaremos para escrever a Biografia da Cesária. E contar a todos que a proeza de Cesária, para além dos pés nus, foi o amor por Mindelo, suas gentes. E o amor por Cabo Verde. O estar descalça, ela tendo dito ou não, sempre nos traz a África que existe em nós, da raiz às pontas do nosso ser. E na nossa velha Mãe África, o estar descalço é nos permitir beber de toda a experiência, de todo o afeto, de toda a memória e a certeza ancestral
De regresso no aeroporto, no avião se toca Sodáde oi, Sodáde! Sodáde es nha terra… na voz da Diva.
E por falar em Caminho Longe, rumámos nós para São Nicolau.
Só porque amamos a Diva, todos os anos, dia 27 de Agosto é o Dia dos Pés Nus.
Somos sempre Cesária Évora: que é por quem os sinos dobram!
Ilustrações: Jija Teixeira
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