• Praia
  • 29℃ Praia, Cabo Verde
João da Burra – Quarta parte
Cultura

João da Burra – Quarta parte

XXIV CENA

À porta do quartel, João morde a orelha e o Macaco volta a aparecer.

MACACO – Ó João dá-me a minha orelha; ó João dá-me a minha orelha…

JOÃO DA BURRA – Dou-te a tua orelha, mas depois de uma conversa a sério.

MACACO – Qual conversa?

JOÃO DA BURRA – Vejo que estamos condenados a ser amigos.

MACACO – Amigos?!… Gostarias?

JOÃO DA BURRA – Não vejo inconveniente. Antes pelo contrário.

MACACO – Nem eu. És um homem digno de amizades.

JOÃO DA BURRA – Já percebi que és uma criatura poderosa… que tens alguns poderes ocultos. Por isso, por favor, diz-me onde estão os meus companheiros, quais são as suas intenções, como está a minha família e o que irá acontecer comigo daqui para frente, dou-te já a tua orelha.

MACACO – Vou te contar. Embora seja uma estória comprida e dolorosa… mereces conhecê-la.

JOÃO DA BURRA – Obrigado. E espero poder compensar-te um dia.

MACACO – Havia um rei que adquirira uma escrava mal chegara da Costa da Guiné, no porão de um navio negreiro. Era uma jovem robusta, parecia cheia de vida. Mas não. Vinha grávida da terra dela. Quando o rei se apercebeu da gravidez, deu-lhe uma bruta surra no intuito de lhe provocar o aborto.

JOÃO DA BURRA – Criatura sem coração!

MACACO – Meses depois nasceu uma filha. O rei tinha um filho de 12 anos de idade. Aos 25 anos esse filho sucedeu-lhe ao trono, após o seu óbito. O filho era ainda muito novo, diria até, inexperiente. E a filha da escrava, 12 anos mais nova do que ele, era ainda pré-adolescente. Ele pôs-se a abusar dela e, aos 13 anos ela ficou grávida.

JOÃO DA BURRA – Cão leproso! De certeza não se assumiu.

MACACO – Não podia. Sendo branco, ostentando uma coroa real, não podia casar-se com uma negra.

JOÃO DA BURRA – Como se negra não fosse também filha de Deus!

MACACO – Mandou então um cocheiro preparar uma carroça com os mantimentos e ir deixar a negrinha num sítio ermo.

JOÃO DA BURRA – Sozinha… grávida por cima?!

MACACO – E à mãe da miúda disse que ia vendê-la.

JOÃO DA BURRA – Desgraçado! Criatura sem alma!

MACACO – Nove meses depois, mandou o mesmo cocheiro ver se a criança tinha nascido. E havia nascido, três dias antes, um rapazinho negro, olhos vermelhos, beiços grossos e cabelo crespo.

JOÃO DA BURRA – Jesus Maria!… Deve ficar danado quando soube!

MACACO – Se ficasse só por aí. Mandou o cocheiro buscar o menino, deu-lhe uma navalha e ordenou que o degolasse e atolasse o sangue na navalha e ir mostrar-lhe como prova.

JOÃO DA BURRA – Demónio!

MACACO – O cocheiro levou a criança, deitou-a sobre ervas, encostou-lhe a navalha ao pescoço e ela sorriu como se lhe tivesse feito cócegas. O sorriso inocente da criança comoveu e demoveu o cocheiro.

JOÃO DA BURRA – Graças a Deus.

MACACO – Fez-lhe um corte no dedo médio da mão esquerda, untou o sangue na navalha e levou ao rei. O menino passou três dias no mato, até ser encontrado por um casal que o levou para o funco deles.

JOÃO DA BURRA – Boa gente. Deus os retribuirá.

MACACO – Como eram pobres, deram ao menino de mamar numa Burra que estava parida.

JOÃO DA BURRA – O menino a mamar leite de burra?!

MACACO – Contra a fome, a lei é: “salva-se como puder”. O menino mamava na burra com apetite de um burrinho. (Riem-se) Passado uns tempos, o rei voltou a visitar a negrinha e novamente deixou-a grávida.

JOÃO DA BURRA – Ordinário!… Patife!…

MACACO – Nove meses depois, mandou o cocheiro ver se já tinha dado à luz. Desta vez nasceram duas meninas, brancas de cabelo loiro, retratos do pai. O rei mandou buscá-las e entregou-as num colégio para serem educadas.

JOÃO DA BURRA – A negra só serve para parir! Não serve para criar os próprios filhos. Meu Deus!…

MACACO – E deu a mesma navalha ao cocheiro…

JOÃO DA BURRA – Não acredito que vai mandar matar a mulher!

MACACO – Foi exatamente o que fez. Mandou matar a negrinha no mesmo lugar onde, supostamente, o menino teria sido morto.

JOÃO DA BURRA – Será que desta o cocheiro cumpre a ordem?

MACACO – Não. O cocheiro falou com ela, matou um cabrito bravo, ungiu o sangue na navalha e levou ao rei como prova.

JOÃO DA BURRA – Esse homem é um puro Santo!

MACACO – O mesmo casal que apanhou o menino acolheu a negrinha.

JOÃO DA BURRA – Essas estórias são muito rocambolescas, Macaco.

MACACO – Pois, são. E de que maneira! Esse menino eras tu.

JOÃO DA BURRA – Eu?!

MACACO – As duas gémeas, certo dia, quando regressavam da escola, eu e o meu irmão raptámo-las para o nosso hospício.

JOÃO DA BURRA – Queres dizer que são minhas irmãs… as duas meninas que tirei da tua gruta?

MACACO – São irmãos de mãe e de pai.

JOÃO DA BURRA – Não acredito!…

MACACO – A família que te acolheu está presa em casa do teu pai.

JOÃO DA BURRA (totalmente revoltado) – Presa?! Como?!… Porquê?

MACACO – Apanharam a tua mãe a colher purga na propriedade da tua tia, irmã do teu pai… acusaram-na de roubo.

JOÃO DA BURRA – E a vovó e o vovô? Foram presos porquê?

MACACO – Prenderam a família toda. Estão fechados numa capoeira, juntos com patos e galinhas.

JOÃO DA BURRA – Ajuda-me… ajuda-me por amor de Deus. Ajuda-me por favor a libertá-los. Estão injuriados?

MACACO – A tua mãe está enterrada no quintal, da cintura para baixo, com as mãos atadas atrás das costas, por ordem dos teus camaradas.

JOÃO DA BURRA – Rasga Montanha e Arranca Pinheiro?!… Eles então estão aí?

MACACO – A comer, beber e mandar. Ou melhor, abusar. À tua família só dão sobras dos porcos e dos cães.

JOÃO DA BURRA – Não acredito! É duro demais para que Deus o permita.

MACACO – Para beberem e tomarem banho, dão-lhes água que utilizam na lavagem de pratos, panelas, penicos e casas de banho.

JOÃO DA BURRA – Foi por isso que me abandonaram no hospício?

MACACO – Foi.

JOÃO DA BURRA – Eles vão-me pagar.

MACACO – Estão convictos de que estás morto. Aliás, deixaram-te no hospício para morreres e eles ficarem com as moças e ganharem o prémio que o rei havia prometido.

JOÃO DA BURRA – Que prémio é que o raio do rei prometeu?

MACACO – Que quem encontrasse as filhas herdaria a metade dos seus bens e casaria com elas.

JOÃO DA BURRA – A sério?!

MACACO – Estão casados, cada um com uma delas, ostentando altos cargos na Corte. Arranca Pinheiro é ministro das Finanças e subselente quando o rei está ausente. E Rasga Montanha é ministro da Segurança e conselheiro geral do reino.

JOÃO DA BURRA – Diz-me… diz-me por favor como apanhá-los e como libertar a minha família.

MACACO – Eu ajudo-te.

JOÃO DA BURRA – Muito obrigado… obrigado! Desculpa-me por tudo.

MACACO – Próximo sábado haverá uma festa no Tarrafal. Vão lá estar acompanhados do sogro e das respetivas esposas.

JOÃO DA BURRA – E como fazer para estar lá sem que me reconheçam?

MACACO – Queres ir?

JOÃO DA BURRA – Como?! Não tenho roupas novas… não tenho dinheiro para comprar um fato. Com esta roupa serei reconhecido à distância.

MACACO – Sábado de manhã, depois do banho, fecha os olhos, pensa num fato que queres vestir e num cavalo que queres ter. Quando abrires os olhos estarás vestido e à tua porta estará um cavalo equipado ao teu gosto. (João dá-lhe um abraço) Qualquer coisa que desejares, fecha os olhos e pensa nela. E quando precisares da minha ajuda, pensa em mim, que apareço.

JOÃO DA BURRA – Muito obrigado! Desculpa-me por tudo mais uma vez.

Ele tira a orelha do Macaco do bolso e dá-lho. O Macaco fica muito contente e o agradece com um outro abraço.

XXV CENA

No Palácio do Reis os novos ministros discutem planos.

ARRANCA PINHEIRO – Temos que provar ao senhor rei o quanto valemos e que somos merecedores da sua confiança.

RASGA MONTANHA – Pois claro. Temos que demonstrar-lhe a nossa competência.

ARRANCA PINHEIRO – Quem não pagar os impostos dentro do prazo vai à prisão, assim como toda a família.

RASGA MONTANHA – Depois, ordenamos a forca de todos os prisioneiros, não sobrarão parentes que os herdem.

ARRANCA PINHEIRO – Os seus haveres passarão a pertencer ao Estado.

RASGA MONTANHA – Quer dizer… a nós. Podes contar com o meu apoio. Temos que irradicar a pobreza. Os pobres, velhos, doentes, deficientes e pessoas que pedem esmola vão também todos à forca.

REI (entra) – Vejo que ainda, irrevogavelmente te promovo a meu vice.

ARRANCA PINHEIRO (com ciúme) – E eu, vossa majestade?

REI – Tu ainda não. Pois, do jeito que ele fala, dá-me gozo ouvi-lo.

RASGA MONTANHA – Acho que o senhor rei se irá congratular com essas medidas. Farão da nossa terra a mais próspera e rica do mundo.

ARRANCA PINHEIRO – Vou dar voltas pela capoeira e verificar se os criados estão a cumprir ordens para com aqueles maltrapilhos encapoeirados.

RASGA MONTANHA – Ontem, juntamente com o senhor rei, dei ordens para não deitar urina na retrete. Para atirar à cara dos prisioneiros. E disse-lhes que se algum resmungar para cortar uma orelha.

ARRANCA PINHEIRO – Volto já.

RASGA MONTANHA – Também vou contigo.

REI – E por que não hei-de ir também?

ARRANCA PINHEIRO – Claro que pode, senhor rei.

RASGA MONTANHA – O rei é o rei; ninguém lhe toca a mão nem lhe põe travão.

Saem, rindo-se.

XXVI CENA

Passam a beira da capoeira e vêem Kizy a chorar.

ARRANCA PINHEIRO – Por que berras, negra feia? Estás com desejo sexual a aflorar? (Para o Calixto) Enterra esta pulha da cintura para baixo.

RASGA MONTANHA – Dá-lhe uma boa sova antes de a enterrares.

XXVII CENA

Dia seguinte a comitiva passa outra vez pela Kizy e ela está a comer. Esforça-se para lhes mostrar um sorriso.

RASGA MONTANHA – Para quem estás a grasnar, oh macaca? Julgas que está aqui algum colega teu? (Para o Calixto) Ó pretinho, ata esta alimária as mãos atrás das costas durante três semanas.

CALIXTO – E como é que ela vai ficar a comer?

ARRANCA PINHEIRO – Cala a boca e faz o que te mandaram, seu carvãozinho. Ou queres ficar ao lado dela nas mesmas condições?

CALIXTO – Desculpem-me, meus senhores… desculpem-me.

RASGA MONTANHA – É fácil ser atrevido, não é?

ARRANCA PINHEIRO – Claro que é fácil. Não pagam imposto.

REI – Querem que aplique um imposto extraordinário sobre os atrevimentos?

Riem-se.

ARRANCA PINHEIRO – Se ela quiser comer, faça como os colegas dela.

Riem-se gozando.

XXVIII CENA

As Brancas vão falar com os prisioneiros.

BRANCA DE NEVE (diante da Kizy) – Por que é que a senhora está assim?

KIZY – Minha filha…

BRANCA DE NEVE – Não me leve a mal, mas não me chame de sua filha. Faz-me sentir uma coisa machucar-me por dentro.

KIZY – Desculpa, querida. Eu não sei o que é que eu fiz. Ontem, um daqueles senhores que começou a trabalhar aqui há dias, passou por mim e eu estava a chorar, mandou enterrar-me. Hoje, aquele outro seu colega passou também, eu estava a comer, viu-me a rir, mandou amarrar-me as mãos atrás das costas.

Em lágrimas vão à capoeira e pedem bênção aos velhos.

BRANCA FLOR – Por que é que estão presos?

NHONHÔ LANDIM – Fomos colher uns grãozinhos de purga para vender e comprar café e açúcar, senhor rei mandou prender-nos.

BRANCA DE NEVE – Só por isso?

ROMANA – Ele disse que somos ladrões e que estávamos a difamar a terra dele…

BRANCA FLOR – Já estão cá há quantos dias?

NHONHÔ LANDIM – Quantos dias?!… Já estamos aqui há quase dois anos.

ROMANA – Mas já nos acostumamos. Só nos falta acostumar com aqueles dois senhores novatos.

BRANCA DE NEVE (para Nhonhô) – Como é que o senhor se chama?

NHONHÔ LANDIM – Rebelado do Nosso Senhor Jesus Cristo.

BRANCA FLOR (para Romana) – E a vovó?

ROMANA – Rebelada do Nosso Senhor Jesus Cristo.

BRANCA DE NEVE (dirige-se à Kizy) – E a senhora, como se chama?

KIZY – Rebelada do Nosso Senhor Jesus Cristo.

As irmãs entreolham-se, fazem “adeus” aos velhos e com lágrima nos olhos careciam Kizy no cabelo. Dão-lhe um beijo ao mesmo tempo, cada uma numa face, e saem a correr. Kizy fica emocionada e os velhos admirados com a simplicidade das filhas do rei.

XXIX CENA

As esposas estão a chorar quando os maridos entram.

RASGA MONTANHA – Por que estão a chorar, suas galdérias?

ARRANCA PINHEIRO – Estão com calor naquela parte?

RASGA MONTANHA (para sua esposa) – Levanta-te e manda preparar-me roupa para levar à festa amanhã no Tarrafal.

ARRANCA PINHEIRO (para a esposa dele) – Vai também dizer ao Calixto para dar banho ao cavalo e preparar as selas, que amanhã vou à festa no Tarrafal.

RASGA MONTANHA – As mulheres não prestam! São bichos que não deviam existir. Só sabem chatear os homens!

ARRANCA PINHEIRO – Não sabem colaborar. Não ajudam os maridos.

RASGA MONTANHA – Só ajudam a destruir.

ARRANCA PINHEIRO – Merecem de vez quando uns dois pares de bofetadas.

RASGA MONTANHA – A minha sabe que dou. Que não brinco.

ARRANCA PINHEIRO – Então a minha não sabe?! Tem é couro de sapo.

XXX CENA

João fecha os olhos e medita.

JOÃO DA BURRA [V.O.] – «Quero um par de fatos ornado de diamantes; um cavalo que corre mais do que o vento e voa como uma pomba, com unhas e crinas douradas, que defeca ouro e quando anda caem diamantes pelo caminho».

Abre os olhos e vê-se vestido com um lindo e pomposo fato. Sai à rua e encontra um esbelto cavalo completamente aparelhado.

XXXI CENA

No palácio.

REI – Queridos genros, aquele cavaleiro que estava ontem na festa no Tarrafal, com aquele cavalo e aquelas roupas, temos que vasculhar e descobrir quem é. Temos que saber, porque quando estávamos à entrada da Vila, o ministro do Chinfrim telefonou-me e disse que havia um cavaleiro a preparar-se para partir da cidade da Praia. E em menos de cinco minutos, senti um cavaleiro passar por nós como o vento. Quando chegamos na Esplanada ele estava lá sentado, com os pés cruzados, acabando de beber o terceiro cálice de grogue.

RASGA MONTANHA – Como é que soube que era o terceiro cálice de grogue, senhor rei?

REI – Imbecil! Ele estava com um copo na mão e mais 2 vazios ao pé dele.

ARRANCA PINHEIRO – Se é algum Príncipe impostor de outra terra que quer vir fazer bazofiaria e tentar seduzir as nossas queridas esposas, saberemos.

RASGA MONTANHA – Senhor rei não quer que o prendamos?

REI – Tenham calma. Temos que saber primeiro quem ele é.

ARRANCA PINHEIRO – A partir de agora vou ficar de olho na minha esposa.

RASGA MONTANHA – A minha, não vou deixá-la ir nem a casa de banho sozinha.

REI – Fazem muito bem. Não se esqueçam que foi assim que Páris raptou Helena a Menelau, que tanta encrenca causou à Tróia.

ARRANCA PINHEIRO – E o que é que vossemecê sugira que façamos?

REI – Saber quem ele é e quais são as suas verdadeiras pretensões.

ARRANCA PINHEIRO – Pode ficar descansado.

RASGA MONTANHA – Conte com o meu apoio para uma maioria qualificada, absoluta, relativa, analítica e sintética.

REI – Vamos organizar mais uma festa, fazemos um muro bastante alto, que vede todos os lados por onde ele possa passar e caçamo-lo.

RASGA MONTANHA – Então o meu colega tem que desbloquear algumas “vergas”, eu reúno os “recursos hídricos” e construímos esse tal muro.

REI – “’Vergas’?…recursos hídricos’”?!

RASGA MONTANHA – Exatamente! Com vergas compramos materiais e obrigo os polícias a carregarem pedras e fazerem parede.

REI – Não querias dizer “’verbas?’ ‘recursos humanos?’”

ARRANCA PINHEIRO – É… é. Era isso que ele queria dizer, vossa majestade. O meu colega tem tanta coisa dentro da cabeça dele que as vezes saem aquelas que ele não queria que saíssem.

Riem-se.

Partilhe esta notícia

SOBRE O AUTOR

Redação