Donald Trump disse que, se injetássemos inseticida nas pessoas, estas se tornariam imunes ao Coronavírus. Sendo certo, para o sistema cabo-verdiano, político e judicial, é urgente a aplicação de injeções com raticida, por que já, só a ratoeira têm-se revelado ineficaz quanto a sua desratização. E os gatos de hoje já não comem ratos. São bué compinchas e até nas salas de baile já se coabitam ao ponto de se dizerem: «resta-m dama pa N da un vólta té», ou seja: «permite-me dançar um pouco com a tua namorada». Esta suposta metáfora retrata a realidade do nosso sistema e o impacto da acoplagem reinante no nosso Parlamento, onde os Doutorados e os Camaradas se acusam, mas entrementes, nem este, nem aquele se interessa em remeter suas delações às instâncias julgadoras para que haja sentença final. O que se passa em Cabo Verde, faz-me pular às páginas de um romance da minha lavra, que ainda está por publicar, e que vou aqui, compartilhar convosco um pequeno extrato:
«…Num encontro presidido pelo Rei da Selva, o majestoso Leão, depois deste ter desfolhado um volumoso dossiê, lançou um esfuziante olhar em direção a um chinês que estava acusado de vários delitos. Era um chinês um tanto ou quanto adverso aos outros. Não possuía a pequenez que normalmente caracterizava as estruturas chinocas. Tinha cerca de um metro e setenta e dois centímetros de altura e o seu peso oscilava entre os 68 e 75 quilos. Possuía uma compleição atlética, trajava quase sempre fato de treino combinado com umas sapatilhas da Nike, sempre novinhas. Só não se pode jurar, se no que concerne a originalidade, não paira apenas aí o nome. Viera da colossal cidade de Xangai, a maior da República Popular da China e uma das maiores áreas metropolitanas do mundo, com mais de 24 milhões de habitantes. Havia apenas três anos que morava em Achada Fátima, no concelho de Santa Cruz, mas já falava o Crioulo como qualquer badiu di fóra, com a exceção da pronúncia da grafia R que, por mais que tentasse, sempre lhe saía L. Pois, sempre que os chineses, que já são centenas ou mesmo milhares em Cabo Verde, fazem publicidade de que na loja deles tudo é barato, dizem:
– Vem complal na loj China, fleguês. China vende tudo balato.
Também os Sanpadjudus quase não pronunciam o L. Ao contrário dos Chineses, eles pronunciam o R no lugar do L. Imaginem uma Sanpadjuda a trabalhar com um computador e lhe pedem para executar algumas funções com o Rato, como por exemplo, dar-lhe um clica. Seria complicado, pois não? Imaginem ainda, um chinês e um Sanpadjudu a darem aulas de inglês. O chinês não conseguiria ensinar aos seus alunos como dizerem: direito ou direita, isto é: right. Ensinar-lhes-ia a dizer: Light. E o Sanpadjudu não conseguiria, de igual modo, ensinar aos seus como dizer esquerdo ou esquerda, que se diz left. Ensinar-lhe-ia a dizer reft. Se um foguense for instrutor numa Escola de Condução num país anglófono, e quisesse mandar o seu instruendo para voltar à esquerda, diria: vorta para reft; e o chinês, se quisesse mandar o seu virar à direita, diria: vila à light.
Mas esse chinês já era considerado um típico badio branco. Já bebia grogue-fede mais do que muitos terra-terra. Comia cachupa, xerém, feijão com toucinho salgado, caldo-Peixe de banana-verde, caldo d’ovo, cabidela, requeijão, tenterém, papa, suanca, cuscuz ou camoca com leite-dormido e assobiava que nem Pardal. Aprendeu até a fabricar grogue e fazer vinho de farelo e de cascas de banana madura. Não fosse a obliquidade dos seus olhos, se não lhe ouvisse pronunciar uma palavra que tivesse a letra R, o mínimo, pode-se confundi-lo com Sanpadjudu. Tinha raparigas [Amantes, concubinas] em mais do que uma localidade. Engraçado é que ele aprendeu a montar no Vicente, inclusive, comprou um macho que o levava às casas das amantes em Achada Ponta, Achada Bel-Bel, Cancelo, Rocha Lama e Cutelinho. Tinha antes pensado comprar uma Vicenta [Besta] que também pudesse parir e lhe desse uns Vicentinhos. E esses poderiam ser comercializados na China e consumidos nos restaurantes onde ele era acionista maioritário. Mas alguns amigos, entre os quais o Barrusco Silva, Chitoco Vieira, Jorge Sacutelo, compadre Kipy, Nezinho Lobo Tavares e Sema de Nha Domingas aconselharam-no a não ousar porque alguns rapazes da zona, como James, Tipinga e De Dom não lhe iam arredar os pés do redor da casa. Era muito conhecido, e sempre como os outros, respondia pelo nome de China ou Chinoca.
Estava acusado de trazer da China muitas coisas mareadas [Esquisitas, falsificadas], como arroz e ovos feitos com plástico, e cigarros de bostas do Vicente, que comprava e levava para Xangai, dentes de Elefante e de rinoceronte nos musseques Angolanos; peles e banhas da Cobra nas tabancas da Guiné e nas roças de São Tomé; peles da Chita e do Crocodilo em Moçambique; barbatanas dos Tubarões nas ilhas do Sal e São Nicolau; lãs, couros e chifres das Ovelhas nas ilhas do Maio e nas barracadas da Boa Vista; grogue de Santo Antão; ponches de coco, de calabaceira e de azedinha, e vergalhos de Tartarugas adquiridos nos funcos da ilha de Santiago. Entre os crimes de que estava acusado, havia dois que eram considerados delicados. E por qualquer um, se fosse julgado na China, seria condenado a ficar sem a cabeça. O crime de poligamia e a subversão da lei que institui a norma do filho único. Pois, o vergalho de tartaruga é um material que tem efeito afrodisíaco muito potente. Comercializado na China, onde há mais machos do que fêmeas, estaria a promover a homossexualidade que, até 1997 era considerado crime e encarado como doença mental. E pensou-se mesmo em legislar para que cada mulher viva marital com até 4 maridos em comunhão de cama e mesa. Então para quê usar verga de tartaruga se não há fêmeas suficientes e disponíveis para tantos machos?
No concelho de Santa Cruz tornou-se num cliché, qualquer mulher que tivesse um filho estrábico, vesgo, zarolho ou com olhos rachados conforme ali são designados, a esse chinês era imputado a responsabilidade paternal. Era ele quem tinha que levar caldo [Manteiga de vaca cozinhada, milho cochido, feijão, etc.] à recém-mamã e cueiro ao imputado filho. E, todavia, reclamava sempre o privilegiado de ser o cortador do leite. E ele sentia-se feliz por isso, por que na China, conforme tinha dito atrás, o crime de adultério, como a não obediência à lei que estabelece o regime do filho único, é condenado com pena de morte. E Chinoca, em 3 anos de residência no conselho de Santa Cruz, já era pai de 17 filhos de 13 mulheres diferentes, dentre os seus verdadeiros e os que lhe imputaram por terem nascido com olhos tortos. E respondia sempre quando lhe perguntavam por que tinha tantas mulheres:
– Pulque xe uma está com xuxanku [Menstruação, período], vou pala outla.»
«… existe um mandado do TPIB – Tribunal Penal Internacional dos Bichos – contra o Leão. Pois, ele agora, na qualidade de juiz, quer a todo o custo condenar o pobre Chinoca, o Cão e sobretudo o desgraçado Macaco para quem rugiu:
– Caro deputado Macaco, os Homens-Bichos estão atulhados de razão. Vocês roubam-nos nas hortas, e sendo verdade, eles estão no direito de arranjar Cão para defender o que é deles, de qualquer desastroso corsário. Desculpa lá, mas são muito macacos!
– Ah, é?! Está a insinuar que são os Homens-Bichos que andam a mandar Cachorros para nos incomodar?! Vergonha é que eles não têm na cara. Macacos são eles, que nasceram Macacos, cresceram Macacos, continuam Macacos e hão-de morrer a macaquearem-se. Nós não somos Macacos. Não somos ladrões. Não encontramos essa mácula na nossa raça nem na nossa geração. Não o geramos pelo sangue do nosso papê, nem pelo leite que amamentamos da nossa mamê. E nem a aprendemos durante a nossa educação na infância. Ladrões são os Homens-Bichos que roubam e inculpam os outros.
O deputado Grilo que se encontrava sentado sob o reflexo da luz de um candeeiro podogó [Uma garrafa com petróleo e uma tira de pano que vem do seu interior e funciona como pavio], por ser negro e não seria visto se fosse sentar-se num sítio sem muito alumiamento, estridulou ao deputado Macaco em tom conciliador:
– Por que não trabalham e deixam de entrar nas hortas dos outros para roubarem?
– Entrar nas hortas dos outros para roubarmos, não senhor – corrigiu o deputado Macaco, refilão. – Malha essa tua língua, sua negrona. Já vos disse, não sei quantas vezes, que nós não roubamos. Que não somos ladrões. Nós procuramos algo para comermos, simplesmente para pegarmos a nossa boca-do-estômago.
– A mim me parece que se saíssem à procurar trabalho, ganhariam que vos desse para comprar algo que vos mataria o jejum sem necessidade de surripiar nada dos outros!
– Quem é que nos arranja trabalho? Quem? Quem é que confia em nós? Diz-me lá quem, enquanto estamos condenados a suportar o estigma deste horrível nome… carregando atrás de nós este enorme rabo? Ou já se esqueceram de que o cliché do bichismo [Equivalente ao racismo] existe? Que a macacofobia [Equivalente a homofobia] é uma realidade? Que a discriminação hoje em dia está na lei? E que este rabo que carregamos no traseiro torna-se um empecilho para nós e faz com que os Homens-Bichos fiquem sempre de olhos em nós? – Virando-se para o Leão: – Para já, quero que nos mude este nome. Não quero que continuem a chamar-nos Macaco. Nós não somos Macacos!
O Leão entesou as orelhas, endireitou-se no cadeirão e, um pouco ofegante, denotando-se nele um certo ar de arrepio e semblante levemente afogueado, fitou nos olhos do deputado Macaco e rugiu depois de um sorriso mordaz:
– O que é isto, deputado? Que disparate é esse? Trocar o nome que Deus vos deu?!
Até ao momento, a Macaca manteve-se encabrestada. Era, pois, muito submissa ao autoritarismo do marido e, no território das macacadas a lei que imperava era a de onde o Macaco se encontra, a Macaca não guincha. Mas dada a afronta que pendia sobre o eleito Macaco, a Macaca resolveu advogar a favor dele, mesmo sem estar inscrita na Ordem dos Advogados Macacos. Trepou o seu bebezinho pela parte da frente, levantou-se e guinchou:
– Caríssimo Senhor Doutor, Engenheiro, Arquiteto, Economista, Primeiro-Bicho e Sua majestade senhor rei Leão e Presidente dos selvagens…
– E Pós-Doutorado e Geógrafo das Savanas – retificou Leão com vaidoso arbítrio. – Com imensos trabalhos científicos retirados da Internet para publicar e criar um portfólio.
– Peço desculpa – continuou o Macaco. – Já que os Homens-Bichos são atrevidos, desprovidos da decência, de tudo e qualquer pudor, quero que Sua Majestade puna, urgente e com a mão de aço, as suas esposas por plagiarem a nossa ideia macacálica de carregar os filhos pela frente e não bonbudu riba kósta [Atado às costas, envolto num pano] como antes faziam. Elas agora trazem os seus filhos trepados à nossa imagem e semelhança, e não às costas como Vicente quando carrega o Chinoca – voltou e pediu confirmação ao marido – Não é assim, meu Macacas?
Incapaz de esconder a inquietação que na alma lhe transparecia, o deputado Macaco fitou nos olhos da esposa e congratulou-se com os argumentos que teceu em defesa de seus representados – Obrigado, minha querida – olhou para a mesa e guinchou num tom visceralmente gélido:
– Macacos são os Homens-Bichos. Nós desenrascamo-nos para não morrermos à fome.
Toda a sala ficou calada como um túmulo, ou seja, como a justiça cabo-verdiana. E sob pesarosas lamentações, o Macaco enxugou das faces duas torrentes de lágrimas que em nada se comparavam com as do Crocodilo. Eram, efetivamente, lágrimas de dor. E esse sofrimento causou no Leão um certo sentimento de pena e reconhecimento das prementes necessidades, ao abrigo da Lei Natural, ou seja, da Lei de Sobrevivência, ou ainda, da própria aplicação lógica do Direito das Coisas ou, querendo, Direitos Reais enquadrados algures no capítulo do Código Civil vigente. E num tom tranquilizador, expôs como um bom justiceiro:
– Caríssimos, o deputado Macaco tem toda a razão. Indubitavelmente, eles também têm direito de comer. É o ditame da sobrevivência, um imperativo inalienável e inquestionável. Eles não têm carro, não têm loja nem casa. Vivem nas íngremes e côncavas lapas, sem portas nem janelas, nem casa de banho para fazer as suas prementes necessidades. E não o vejo com forças suficientes para fazer todas essas diabruras pelo qual estão a acusá-lo. Não estarão a caluniá-lo tão simplesmente? Não estarão a ser gratuitamente injustos para com a sua simpatia?
Quiçá, pelo respeito ou receio em contrariar o Leão, continuou a flutuar na sala um fúnebre silêncio. Um silêncio comparado ao do Presidente da República Cabo-verdiana em reação à morte suspeita do advogado Vieira Lopes e dos demais crimes graves encobertos sob a batota dos Tribunais e das Procuradorias da República. Só a Macaca ousou emitir um sorriso, ao remeter para o marido um tranquilizador piscar de olho. Sorriu para não chorar e rabendar [Imitar, copiar, repetir, reproduzir] ao marido que, só não ficou mudo porque ainda conseguia gaguejar. E com olhar notoriamente desafiante, a Macaca argumentou num tom bem-humorado, à altura de uma brilhante causídica:
– Ah! Estão calados?! Seus fala-baratos! Engoliram a língua?! Falem agora! Bando de indecentes – virando-se para o Leão. – Muito obrigado pela sua justiça. Você é um verdadeiro Salomão das selvas. Um autêntico filho de David, parente distante de Nosso Senhor Jesus Cristo.
– Amém!
Responderam todos, à exceção do deputado Crocodilo que se sentiu beliscado com o pronunciamento da frase «estão calados?» pela Macaca. Considerou deselegante, inoportuna e desadequada essa observação, pelo que protestou num tom bem desafiador:
– Estamos calados, mas não é por que não temos nada a dizer. Todos sabemos que a ladroagem está enraizada no âmago da vossa alma e não nos vossos franzinos músculos. Não têm força, mas têm habilidades e são malabaristas particularmente. Isto é que falta ao rei Leão perceber.
– Que desajeitada mentira – Recalcitrou a advogada sem carteira – E cala-te, deputado sem vergonha. Não tens moral nem idoneidade para dizer nada contra nada. O teu ato vergonhoso ultrapassou todas as fronteiras da decência. Inclusive, a tua desavergonhada postura suscitou uma máxima que perdura e perdurará no tempo. Uma máxima que diz: – Não venhas chorar lágrimas de Crocodilo – virando-se para plateia – Sabem o que é isso?
Uma Zebra moçambicana, eleita entre todas as outras, trajava um pijama de riscas brancas e pretas, como se tivesse fugido de uma prisão de alta segurança vigiada pelos impiedosos jiahdista do Daesh, baixou a cabeça, rodopiou na sala, abanou a curta cauda e disse:
– A Macaca tem razão. O Crocodilo faz coisas horríveis, depois chora e finge-se arrependido. Às vezes até se finge de vítima.
– Por que não te calas, guindaste? Tens provas? – reagiu o deputado Crocodilo.
– Guindaste são esses teus olhos! Sabes perfeitamente que tenho provas.
– Então regurgita lá mais uma das tuas tóxicas mentiras.
– Então podes preparar-te para ouvir.
Sabendo que não era necessário ouvir para se admitir, o deputado Crocodilo tapou os ouvidos com os dois dedos indicadores e murmurou numa voz estrangulada:
– Deixa-me proteger os meus tímpanos das tuas pontudas mentiras.
– Também não é necessário que tu oiças. Quem precisa de saber são estes aqui que talvez até te possam tomar por um bicho de valiosa estimação e de um Espírito Santo incorporado – voltou para plateia. – Caríssimos, uma vez, a minha família e eu fomos comprar cacau a São Tomé e Príncipe para a minha mãe fazer bolo e mousse de chocolate para a festa do casamento da minha irmãzinha. Ora, quando já íamos a atravessar o rio Yo Grande, já estávamos quase próximos da outra margem, para lá da barragem hidroelétrica, o Crocodilo despontou debaixo de um lamaçal e, de forma sorrateira, atacou mortalmente o meu irmão. Aflita, a minha mãe desferiu-lhe dois coices no queixo, ele pôs-se a chorar lágrimas e ranho. Acreditem que o desgraçado pediu desculpas à minha mãe, disse que foi um incidente fortuito e muito contra a sua vontade. E a minha mãe, crédula na sinceridade deste bicho traiçoeiro, confiando piamente na sua inocência, pôs-se de cócoras a fazer massagem e respiração boca-a-boca ao meu irmão para ver se o reanimava, o Crocodilo atirou-se a ela pelas costas, agarrou-a ao pescoço enquanto ria e lacrimejava. Matou também a minha mãe.
O Crocodilo ficou calado e com os dedos tapando os ouvidos. O Leão então rugiu, querendo saber o porquê daquele horripilante silêncio crocodiliano e, qual a razão para o cometimento daquele monstruoso Zebracídio.
– Que tal, Crocó? Já não falas? A tua boca virou pequena para a língua se mexer? Mas tens razão! Quando cometemos barbaridades desta dimensão, temos é que engolir sapo.
Todo o hemiciclo ficou alvoroçado com um inédito e insólito acontecimento. Uma Rã que estava mais ou menos perto do deputado Crocodilo, sonambulando e, de vez em quanto escapulia um coaxante ressono, despertou subitamente e com os olhos fora da órbita, ainda cansados do sono, pôs-se a correr pelos cantos da enorme sala, até que se enfiou e escondeu-se no bolso das calças do Leão, tremendo de medo, borrando-se todo, embora com os poros ativados, pronto para expelir o veneno que lhe servia como defesa. Porém, o ambiente tornou-se cómico e hilariante quando se aperceberam de que a máxima popular utilizada pelo Leão, «Quando cometemos barbaridades desta dimensão, temos é que engolir sapo» terá provocado um curto-circuito na descodificação comunicativa. Havia-lhes caído como um Fake News em como algum atentado terrorista ou ajustes de conta estivessem iminentes. Pois, aquele encontro era equiparado a um ato político, todavia, de alto risco.
O deputado Macaco congratulou-se com a interventiva defesa da deputada Zebra.
– Muito obrigado, deputada Zebra. E já agora… os meus sentidos pêsames pela trágica perda dos teus dois entes mais queridos. Deus há-de devolver-te o consolo e castigar aqueles que te importunam e, sem vergonha, nem sentem remorsos. São como os Partidos Políticos quando estão em campanhas eleitorais. Dão beijos e abraços a todas e a todos, mesmo estando de quarentena, em pleno Estado de Emergência provocado pela pandemia do Covid-19. E fingem esquecer-se que, há poucos meses sensivelmente, uma família foi despoticamente despojada de sua barraca e abandonada no olho da rua.
– Muito obrigada – agradeceu Zebra, por sua vez. – Que Deus te devolva o sossego e, também, que castigue os teus perseguidores.
– Amem! – Deputado Macaco retribuiu os agradecimentos e continuou –
– Essa família de que falaste foi vituperada por que ocupou um pedaço de terreno da Câmara Municipal para construir a sua habitação e dar aconchego à sua família. Porém, o outro que usurpou e vendeu toda a Praia Maria, falsificando documentos e substituindo folhas do livro de matrizes, recebeu a bênção do Presidente da República.
Concluiu deputada Zebra, o deputado Macaco prosseguiu:
– Os Homens-Bichos sim. Eles roubam e guardam para virem bazofiar depois. Para comprarem bons carros, construírem ou comprarem vivendas luxuosas na Prainha, dúplex com varandas em Quebra Canela, majestosos prédios no Palmarejo ou em Achada de Santo António, triplex com vista para o mar na Cidadela e em Palmarejo Grande. Arranjam bués namoradas, algumas até, esposas dos seus melhores amigos. Comem boa comida, calçam sapatos de marca como: Vela, DR Martens ou Timberland. Viajam de avião para o estrangeiro na classe executiva, com tudo pago pelos zezinhos, fazem abuso aos colegas e até à própria família. Eu nunca pus dinheiro no bolso, muito menos depositado no Banco. Não bebo, não fumo, não uso drogas, não jogo batotas, não vou aos bordéis, nem faço paródia da pesada, com lagostas e whisky velho. Nunca pus sapatos nos pés, nem gravata ao pescoço ou os óculos nos olhos. Não uso relógio no pulso. O meu tempo é regulado pelas circunstâncias da conveniência. Não tenho amantes, nem amigas especiais. A minha única esposa é esta aqui – aponta o dedo à Macaca. – Coisa fêmea mais linda que alguma vez a Natureza arquitetou, o Santo Deus concebeu, a Mãe Macaca engendrou, o mundo conheceu e um macho teve a feliz sorte de tê-la por esposa. Eles vão de férias de 3 em 3 meses, acompanhados por uma amante de cada vez.
Sentindo-se lisonjeada, a Macaca abriu a boca e exibiu as amareladas dentuças, antes de aguçar o negro beiço para trocar um telepático beijo com o marido. E não suportou ficar sem o coadjuvar na enumeração das diferenças entre eles e os Homens-Bichos.
– Conforme disse o rei, a nossa casa fica nas côncavas lapas, sem portas nem janelas, não temos rádio nem televisão, nem luz elétrica nem água canalizada. Não aquecemos comida em microondas e as sobras não vão para o frigorífico. Aliás, nunca há sobras.
Sem pedir licença e muito revoltado, o deputado Macaco retomou a explanação para concluir o raciocínio e reiterar as teses da esposa:
– Não temos telemóvel, nem computador, nem Internet. Não vamos ao teatro, nem ao cinema, nem aos estádios assistir aos jogos de futebol. Os nossos filhos não podem ir à escola porque seriam chacoteados pelos alunos que julgam serem melhores do que eles. Seriam perseguidos e agredidos pelos patifes Cachorros que nutrem um ódio implacável contra nós. Não teríamos dinheiro para lhes pagarmos as propinas que custam os olhos da cara. Nas Universidades estrangeiras não conseguem estudar porque, não só, não lhes concedem Vistos, como nunca lhes irão dar bolsa do estudo como dão aos filhos dos Ministros, Deputados, Diretores e Chefes de Serviços, Professores, eleitos Autárquicos e PCAs das Empresas ditas mistas como as TACV que o Estado cobre os prejuízos com milhões no final de cada ano. Nem aqui na UNICV, na Jean Piaget, na UNICA, na Lusófona, na ISCEE, na Santiago, na FaED, e por aí fora, eles podem estudar porque as propinas são avultadas e a nós não arranjam trabalho nem nas FAIMO. O valor da propina é superior a um mês do salário que o Chinês paga às empregadas.
– Os seus filhos antes de acabar o curso têm emprego reservado – Intrometeu Macaca.
– Emprego à escolha, com salário de bradar aos céus. E em pouco tempo já têm casa própria, motos e carros topo de gama – concluiu o deputado Macaco.
– Conforme cantou Legemia: «Es ta bira finu» – rematou a Macaca.
– E o nosso filho, mesmo terminando o curso com boa média, o destino condena-o a continuar a morar connosco lá pelas lapas da Cumba ou do Porto Mosquito. Nem uma bicicleta, triciclo ou trotineta conseguem comprar – lamentou o Macaco.
Perante essas verdades o deputado Macaco e a esposa não podiam ficar calados, mesmo que os acusassem de monopolização do discurso. E o eleito Macaco continuou:
– Nem um Vicente eles conseguiriam comprar. E sabem porque é que nós não temos essas coisas? Que não temos um carro, nem um Starlet, por exemplo?
– Porque Macaco não sabe conduzir – respondeu a eleita Borboleta.
– Cala-te – ordenou o deputado Macaco um pouco abezerrado. – Não temos nada disso porque não roubamos para depois nos virmos armar em importantes. Só quando estamos com fome, isto é, com muita fome, é que observamos bem se nenhum patife do Cachorro está por perto e que nos possa apanhar em flagrante, com muita cautela, entramos rapidinhos, subtraímos com prudência e o necessário para comermos na hora.
A maioria dos bichos presentes deu razão ao deputado Simão. E o Leão concordou porque ele também havia sido perseguido. A Organização Internacional Para os Direitos dos Bichos e a Amnistia Internacional tinham posto a circular nas redes sociais como: Facebook, Viber, Twitter, WhatsApp, Messenger, Instagram e Youtube, um abaixo-dedo-na-tinta, solicitando ao TPIB que o prendesse e procedesse ao seu julgamento pelo crime de lenocínio. Estava acusado de matar e comer Cabra-Gazela e, até o Búfalo que é muito maior e mais forte do que ele. A Interpol tinha em sua posse um mandado de captura para o deter e fechá-lo no calabouço onde quer que o encontrasse. O mundo inteiro tinha decretado sanções contra ele, proibindo-o de aparecer nas suas cidades. O único lugar onde ele podia permanecer e, inclusive, mandar, era nas matas, mas de olhos bem arregalados. Para viajar a Cabo Verde utilizou um passaporte com nome falso, depois de se ter submetido a uma cirurgia plástica, adulterando a fisionomia. E três dias antes, havia mandado dois emissários, num jato particular, com malas de dinheiro para virem negociar com o Governo.
– Tens razão – disse Leão. – Enquanto vos chamam “Macacos” e arrastam esse rabo por trás, nenhum Bicho confiará em vocês. Por onde passarem vos soltarão seus Cães.
– Felizmente ainda não disseram que somos bruxos. Que temos lume no traseiro ou que voamos numa vassoura. Apodam-nos de rabo comprido, mas por bruxo não nos tratam.
Questionou Macaca, para de seguida, a eleita Borboleta opinar, cheia de desconfiança:
– Na vossa cara podem não dizer nada. Mas pelas costas, sabe-se lá o que não dizem?
– Nas nossas costas podem dizer o que quiserem. Costumo ouvir que «Olho que não vê, coração não chora». As nossas costas são largas e mais abaixo temos um tanque fundo.
A deputada Balambuta, detentora de uns olhos disformes, cuja órbita lhe ocupa quase toda a cara, como se fosse parente chegado do Sapo, Crocodilo ou Jacaré, aconselhou-o:
– Se puder evitar… convém fazê-lo. Os Macacos devem evitar certas bocas.
– Fazem isso por abuso! – respondeu Macaco, nitidamente chateado. – Os Homens-Bichos roubam que nem ratos, ninguém lhes diz nada. Nós desenrascamo-nos para não morrermos à fome, todos nos apontam o dedo, e nos chamam ladrões! Isto é injusto!
O deputado Rato, que estava metido num buraco, completamente acantoado, deixando apenas os olhos de fora para mirar uma fatia de queijo que se pousava à beira do deputado Gato, contradisse, um pouco arreliado, o deputado Macaco:
– O que é que queres dizer com esta frase? Os Homens-Bichos roubam que nem ratos. Quando é que os Ratos vos roubaram? Seria melhor se fosses cuidar da tua vida e deixasses o nosso nome em paz!
– Perdoa-me, deputado Rato. O que eu disse foi apenas um «ndemo, comparação de conversa» [Um exemplo da comparação de conversa]. Na verdade, não vos chamei ladrões propositadamente. Longe de ser essa a minha intenção – o deputado Rato quitou-o e ele prosseguiu. – Os Homens-Bichos roubam até a si próprios. As momices estão- lhes embrenhadas no sangue.
Aí já o Leão não foi muito comedido com o deputado Macaco.
– Os Homens-Bichos já não são mais macacos. Foram-no num passado bem longínquo. Evoluíram e agora respondem pelo nome de Homem-Bicho. Deixaram de andar à macaquinha e passaram a andar sobre duas patas traseiras.
– Evoluíram sim. De não sei o quê para Macacos! Agora é que são macacos.
Como se a intromissão sem autorização se tornasse num cliché, a Abelha inferiu:
– Acho que o colega deputado Macaco tem razão. Os Homens-Bichos são atrevidos, apáticos e parasitas. Atacam-se uns aos outros com armas e surripiam o que lhes não pertence. Nós somos reiteradamente vítimas das suas pérfidas sevícias.
– Com que arma é que eles vos costumam atacar? Arma branca ou outro tipo?
– Com arma vermelha.
– Arma vermelha? Isso existe no Código do Direito Pena, deputada Abelha?
– Existe, sim. O fogo. Ateiam fogo nas nossas colmeias e matam-nos a todos. A mim, aos meus filhos, até ao meu marido Zangão, que por acaso é um grande preguiçoso.
O deputado Fonfom estava na cumeeira, ao lado da Abelha, metido no buraco de uma cana, bem caladinho, com queixo encostado ao peito. Conhecia Zangão muito bem e sabia o quão preguiçoso ele era. Olhou para o lado e segredou Abelha ao ouvido:
– Pra Zangão está bem feito. Devia morrer sozinho. Molengão, só sabe comer e dormir!
– Cala a boca, seu burlão e falsificador de mel. Mesmo sendo ele um mandrião e preguiçoso, jamais lhe desejaria uma morte daquela forma. Afinal, ele é meu marido!
– Tens razão – disse Leão. – O deputado Fonfom está a ser extremista… um radical.
– Também acho – aquiesceu Abelha.
– Vê-se que se converteu àquela religião. Naquela que promete aos jovens sete virgens para desflorarem, quanto maior número de Homens-Bichos exterminarem.
Todos se riram, inclusive o próprio deputado Fonfom.
– Camarada Leão – retomou a Abelha o fio à meada – os Homens-Bichos ateiam fogo nas nossas colmeias, roubam o mel que produzimos e vão vendê-lo a um preço astronómico.
– Também, Deus vos pague – disse o deputado Fonfom. – Vocês dão-lhes cada ferroada!
– A nossa mãe pariu-nos cegos – aquiesceu e concluiu a deputada Abelha. – Então não ficaram com medo de nós?! Desgraçados foram inventar trapiches e fornalhas, agora fazem mel por conta própria. Mas o mel deles não se compara, nem de perto nem de longe com o nosso. O deles, provoca diabetes e outras doenças; o nosso dá saúde, faz-se crescer e cura as diabetes. Eles estão armados em espertos. Fazem-nos lembrar Fonfom.
– Lembrar Fonfom… como? – Quis perceber Leão.
– Fonfom pediu-nos que lhe ensinássemos a fazer mel, mal cagou doce, disse que já sabia e que não precisava da nossa ajuda. Deixamo-lo e ficou só com a caca doce.
Até aí, o deputado Fonfom estava cooperante e do lado das Abelhas. Mas acabou por perder aquela confiança e chamou a atenção à deputada fazedeira de mel:
– A que propósito vens dizer isso aqui? Perguntaram-te? Gente burra pá! Vives ainda no tempo em que se falava sem olhar para o lado, que se roía [Falar mal de outrem nas suas costas] a carne em cima dos ossos.
– E é mentira?
– Mesmo que não fosse, é aqui no parlamento que vens colocar um assunto destes? Um assunto meramente pessoal e de caráter sigiloso?
A deputada Abelha deu a mão a torcer e teve a hombridade de pedir desculpas ao colega, jurando-lhe que nunca foi sua intenção humilhá-lo. E o eleito Fonfom acabou por aceitar o pedido de desculpas, pese embora, ter-lhe dito que o mal já havia sido feito e que as consequências eram imprevisíveis e irreversíveis. Que já nem se quisessem vender o mel que produziam, ninguém o comprava porque a colega havia dito para todo o mundo que o seu mel não era genuíno, mas sim, uma réplica da caca melificada. Que a rival estava a fazer publicidade difamatória contra o seu produto para poder vender, sozinha, os dela. E que aquele ato se configuraria numa infração denominada de concorrência desleal, punível pelas leis reguladoras das atividades económicas, ou seja, ARME – Agência Reguladora Multissetorial da Economia. A eleita Abelha, entretanto, assumiu meia culpa e pediu meia desculpa.
– Posso até admitir que errei, pela forma e no local em que fiz a denúncia. Mas qual é que o colega preferiria? Publicidade que considera difamatória sobre o vosso mel-caca que coloca em perigo a saúde pública e viola de forma drástica e flagrante as diretrizes da OMS – Organização Mundial da Saúde –, ou publicidade enganosa, como querias fazer, vendendo caca dulcificada por mel aromático e nutritivo como o nosso?
– Não é da tua conta. Tu não o ias comprar de certeza! E aqueles que vendem gato por lebre? Que vendem sebo por banha de Cobra? Que traficam drogas, raptam crianças e sequestram mulheres? Os que planeiam assaltar o Parlamento e sequestrar deputados? Que vendem o país ao desbarato e cobram taxas aos nacionais para entrarem no próprio país, enquanto aos brancos não carecem de Vistos porque legalmente as portas lhes estão escancaradas? Que protegem criminosos e muitas vezes a eles se aliam. Porque ninguém os persegue?»
Espero que gostem. É um pequeno extrato do meu futuro romance. Havendo patrocínio, pode sair já este mês.
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