Língua cabo-verdiana[1]: desconstruindo mitos[3/12]
Cultura

Língua cabo-verdiana[1]: desconstruindo mitos[3/12]

1. Introdução

Persiste ainda, na nossa sociedade, um sistema articulado de conceções equivocadas sobre o crioulo de Cabo Verde[1] (e os crioulos de um modo geral). Apesar de não terem bases científicas, esses equívocos estão profundamente registados no senso comum e infiltrados em alguns de nós. Por isso, têm desempenhado um papel impeditivo importante na concretização de medidas de política linguística favorecedoras do desenvolvimento da língua cabo-verdiana como sejam a sua oficialização e o seu ensino. Tendo em conta o papel do conhecimento na desconstrução dos mitos, discutem-se 12 dessas ideias[2], mostrando evidências científicas que as contrariam, tendo em vista contribuir para a construção de uma comunidade mais harmonizada em que as línguas de Cabo Verde se possam expandir livremente.

2. Mitos sobre a língua cabo-verdiana

Esses mitos, que menorizam a língua cabo-verdiana (LCV), são produtos de uma configuração sociocultural dominada por uma ideologia linguística colonial que exigia e impunha o domínio da língua do império, apresentada como o modelo ideal de língua e, como contraponto, o aniquilamento das outras, entendidas como símbolo da inferioridade dos seus falantes, para, assim, impor a sua cultura e o seu projeto político. Por isso, esses equívocos foram amplamente difundidos, naturalizados e inculcados na mente dos cabo-verdianos, determinando as suas atitudes face à sua própria língua materna, a ponto de alguns, cada vez menos, felizmente, admitirem que não falam uma língua ou falam algo que ainda não o é.

Assim, na sequência da discussão do Mito 1: O crioulo não é língua e do Mito 2: O crioulo cabo-verdiano é um dialeto do português, prosseguimos com o mito 3.

Mito 3: O crioulo é uma deturpação, corrupção do português, português malfalado

     Esta ideia é um desenvolvimento da anterior. Além das razões apontadas, existe outra: quando os portugueses ouviam os falantes dos crioulos de base lexical portuguesa, ao mesmo tempo que entendiam as palavras, não compreendiam o que as pessoas diziam, exatamente porque a estrutura dessas línguas é diferente da do português. A explicação encontrada para esta contradição foi que os escravos, tidos como seres inferiores, eram incapazes de aprender e falar bem uma língua de civilização como o português. Só a podiam falar mal, de uma forma incompreensível, deturpando-a e corrompendo-a.

O facto de as palavras da língua cabo-verdiana terem origem no português não colide com o facto de ela ser uma língua autónoma, com uma estrutura própria. Quando as línguas não têm palavras próprias para exprimir determinadas ideias vão tomá-las de empréstimo a outras línguas. É o que acontece com o português que, por exemplo, foi buscar a palavra aeroporto ao francês, a palavra software ao inglês ou, em tempos mais antigos, as palavras alface e oxalá ao árabe.

O que se acaba de dizer pode ser percebido através dos exemplos abaixo:

(1) (a) N da João un bolu (LCV)

   (b) Dei um bolo ao João (LP)

            Estas frases mostram que:

            - Claramente, as palavras da língua cabo-verdiana da frase (1) (a) são originárias da língua portuguesa.

            - Contudo, veja-se o que acontece quanto à ordem de palavras, uma característica importante das línguas. Tão importante que, das frases seguintes, do português, em que a única diferença é a ordem das palavras, uma pode ser verdadeira e a outra não, no mesmo intervalo temporal: O João ama a Maria/ A Maria ama o João. Enquanto no português, em frases declarativas simples como a frase (1) (b), a ordem das palavras é: Sujeito – Verbo – Complemento Direto – Complemento Indireto, no cabo-verdiano, a ordem típica é: Sujeito – Verbo – Complemento Indireto – Complemento Direto. Na verdade, a frase (1) (b) *N da un bolu João, que segue a ordem típica do português, é agramatical de Santo Antão à Brava, ou seja, está errada em qualquer das variedades dialetais da língua cabo-verdiana, independentemente da pronúncia com que for lida.

            - Além disso, relativamente à propriedade de Sujeito Nulo, por exemplo, – outra característica importante das línguas –, enquanto na variedade europeia do português, o sujeito, tipicamente, é omitido como em (1) (b), pois o verbo já contém toda a informação sobre as suas especificações, viabilizando a sua recuperação (na frase em análise, o sujeito só pode ser a pessoa que fala, eu); na língua cabo-verdiana, o sujeito deve ser explicitado, como em (1) (a), porque a forma do verbo não permite, por si só, recuperar o sujeito.

            Portanto, pode-se sustentar que a língua cabo-verdiana é um sistema linguístico autónomo que se formou como resultado da reanálise, reelaboração e reestruturação do material lexical da língua portuguesa e das regras gramaticais das línguas africanas e portuguesa, então em contacto.

[1] A expressão crioulo de Cabo Verde/ crioulo cabo-verdiano será usada para referir à língua cabo-verdiana em situações históricas ou para tipificar a língua.

[2] Os contra-argumentos dos números 1 a 5 e 7 foram redigidos com base em Pereira, Dulce. O Essencial sobre os Crioulos de Base Portuguesa. Lisboa. Editorial Caminho. Pp. 13-15. 2006. e os restantes com base em Lopes, Amália Melo. As línguas de Cabo Verde: uma Radiografia Sociolinguística. Praia. Edições Uni-CV. 2016.

*Linguista

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