Fela Kuti, o"anti-establishment" músico é herói na sua Nigéria, e a sua renaissance vai para além dos santuários de África. Os hits do rei do Afrobeat chocam, incomodam e inspiram. Eles celebram a vida, a espiritualidade africana, a verdade, o poder, e a humanidade do homem que tinha 28 mulheres.
Venerado como um ícone, visionário, humanísta, idealista, “anti-establishment”, a legacia do excêntrico rei do afrobeat choca, incomoda e inspira. É um épico sobre poder, racismo, sexo, violência e espiritualidade. Seu nome? Fela Anikulapo Kuti. Mas para os amigos, as 28 mulheres e os inimigos políticos, ele era apenas Fela.
Fela Kuti é uma figura que em um primeiro momento parece ser bem excêntrico, e pode até o ser. Toda gente conhece este ou aquele pormenor rocambolesco da sua vida. Porém, para entender o mais complexo e extraordinário das figuras do século XX, é necessário compreender a sociedade na qual ele se formou e é algo que pode parecer simples, mas não é. Isso por conta da complexidade de se entender o que é a Nigéria e a África, principalmente pós-colonização europeia.
Mas como era realmente este homem que podia tão facilmente despertar a hostilidade violenta das elites governantes africanas quanto à lealdade inabalável dos oprimidos de todo um continente e mesmo além dele? Para já, se se simplificar o entendimento desta sociedade estar-se-á sendo apenas mais um reducionista e não se dará conta quem foi Olufela Olusegun Oludotun Ransome-Kuti, o seu nome de baptismo. Mudou-o por Fela Anikulapo-Kuti, por considerar que o seu nome do meio original, Ransome, era um nome de escravo.
Este é um tributo a esse monstro sagrado da negritude rebelde africana e mundial, uma jornada comovente ao centro de sua sofrida alma. A trajectória da vida tumultuada, provocadora e exuberante do cantor, compositor e saxofonista e o mais proeminente nome do jazz e provavelmente de toda a música do continente se torna tão imortal quanto seu sujeito. Fela não acreditava em fronteiras, via o mundo africano como algo planetário. “O mundo negro é um mundo sem fronteiras físicas com múltiplas identidades que não são fechadas e se comunicam umas com as outras”, dizia
Alcançou fama internacional numa onda de controvérsias e com uma postura política intransigente a favor dos pobres e fica na História - apesar de não constar na lista do Rock N' Roll Hall Fame - como o rei do género musical Afrobeat, (fusão dos ritmos Funk, Salsa, Calipso com Juju e Higlife e padrões percussivos dos Yoruba com jazz) estilo musical criado pelo músico nigeriano. A sua música hipnótica, suas apresentações vulcânicas e seu estilo de vida provocador, renderam uma enorme legião de seguidores em todo o mundo. Mas também lhe inflingiram experiências terríveis.
Fela foi a voz da África oprimida por quase três décadas mesmo sem ser "marketável". Não há ninguém mais importante para o movimento político nos anos 70 como "entertainer" que o Fela Kuti. Para muitos, ele está no mesmo pódio que Bob Marley, e, acima de John Lennon, Jimi Hendrix, Bob Dylan, Henry Belafonte, Joan Baez, Nina Simone, Woody Guthrie, Mirian Makeba, Maya Angelou, Lélia Gonzalez e outros tantos.
Fela Kuti é um visionário, humanista, idealista e transgressor da lei. Não temeu ofender os poderosos nem vacilou em defender os desfavorecidos. Fela era um farol anti-racista, faz parte de uma “elite” de poucos artistas que marcaram a consciência Humana, sobretudo, os do “terceiro mundo”. Denunciou o racismo e a alienação cultural como sendo tão maléficos quanto o imperialismo económico e político. Pregava para todo mundo ser forte, se desprender do medo.
Venerado como verdadeiro ícon pelo Black Panther's, a legacia do rei do Afrobeat, fica ainda, como o músico que deu a cultura e a política nigeriana uma nova direcção. A sua música inflamatória contra as corrupções políticas, injustiças e desigualdades em África fizeram dele um verdadeiro Rebel.
O Marerick Activista Pan-Africanista Fela Anikulapo Kuti: Música é uma Arma
“Música não é para Entertainment, mas sim uma forma de fazer Revolução”. Fela Kuti foi um artista que actuou além da arte. É indispensável conhecer os pensamentos políticos, religiosos do criador do afrobeat. Músico de uma criatividade ímpar, acreditava que a sua música falava por ele. Para Fela, “música não é para entertainment, mas sim uma forma de fazer revolução”.
As suas composições assentam na fusão da herança poética e harmónica misturando os temas e os géneros, resultando assim numa linguagem própria que toca todos quantos os escutam. A música etérea com os riffs de órgão e guitarra, a bateria juntando polirritmia africana com pegada funk, os instrumentos se entrelaçando no contratempo, o ataque de sopros, os solos sobre harmonias jazzísticas, os vocais conclamando a participação do coro, com batidas de tambores e pulsações ancestrais com uma intensidade rítmica de influências e génese africana era a sua receita musical.
Militante do pan-africanismo, Fela lutou com unhas e dentes contra a opressão de vários governos ditatoriais que se instalou em sua Nigéria e transpôs todas as fronteiras, expressando assim sua raiva e angústias por meio de uma música alegre e vibrante, com letras críticas que denunciavam as atrocidades dos governantes de seu tempo e expondo as hipocrisias de uma Nigéria colonizada e unificada a fórceps, assim como todo o território africano que foi dominado e colocado sob o julgamento de um continente atrasado e sub-desenvolvido aos olhos do ocidente europeu.
O que o distingue dos outros pensadores pan-africanistas é que ele desenvolveu a luta não no contexto da luta pela descolonização, mas dentro da problemática complexa e terrível que representa a sociedade africana pós-colonial; ou seja, uma sociedade controlada, oprimida e esmagada não directamente pelas potências europeias ou por regimes minoritários brancos, como na África do Sul ou na Rhodesia (actualmente o Zimbabwe).
Descobrir África em América
Fela Kuti tem uma relação intensa de amor e ódio pelos Estados Unidos. Em 1969 fez a sua primeira digressão aos EUA à procura de sucesso. Fracassou!
Fela e sua banda aterraram no aeroporto Internacional John Fitzgerald Kennedy (JFK) em Nova Iorque a 10 de Junho de 1969, com um visto de seis meses. Porém, passaram 10 meses. Se esbarrou nas portas da deportação quando eventualmente, conseguiu prolongar os vistos. Estes foram os mais turbulentos e significativos da sua carreira. A empresa African Tours Ltd, que patrocinou a sua tournée os havia abandonado. Sozinhos, decidiram prosseguir com o sonho da USA Tours.
Todavia, foi na América que Fela Kuti viu aquilo que muitos africanos da classe alta da sua Nigéria e de África não conseguiam enxergar: o câncer do problema racial nos EUA. Fela entendeu que o problema dos africanos não era só o colonialismo europeu, mas também a "greed" (ambição) do capitalismo americano. Fela Kuti viu ainda que os revolucionários negros estavam lutando não só pelos seus direitos básicos, mas sobretudo, pela sua afirmação sociocultural. Isso inspirou Fela que aplicou a ideologia Pan-africanista na África pós-colonial que sob ditaduras militares (Western puppets - as marionetas do oeste) estavam fazendo o oposto. O colonialismo tinha apagado grande parte da cultura africana. Todavia, a elite africana ("Os assimilados") que herdaram o poder continuaram com as mesmas políticas cancerosas contra a afirmação sociocultural do homem negro.
Apesar de tudo, a jornada pode ser descrita ainda como the turning point na sua evolução musical e política: Fela descobriu algo muito mais valioso do que a fama e o sucesso. Cresceu em si o orgulho e sentido de identidade africano. "Devo impressionar meu povo primeiro”, expressou. “Quando eu for aceite pelo meu povo, os estrangeiros apreciarão a minha música”, concluiu.
Vivendo na ilegalidade, antes de terem de se retirar do país, realizaram uma rápida sessão de gravação em Los Angeles, que mais tarde viria a ser lançado como "The '69 Los Angeles Sessions". Foi ainda nesse período em que esteve no Hollywood club, que Fela mergulhou na filosofia e literatura africana. Testemunhou in locco as transformaçðes sociais ocorridas com a revolução dos ‘60's, o acordar sexual, os movimentos dos direitos racial e humanos, assistiu os assassinatos de Dr. Martin Luther King e do Presidente John F. kennedy, decobriu ainda o apetite louco pelas drogas.
Foi também em Los Angeles que ele conheceu a activista e cantora Sandra Izadore(Smith), antigo membro dos Black Panther. Foi com ela que Fela leu livros de pensadores como, Cheikh Anta Diop, Michel -Rolph Trouillot, Franz Fannon, Martin Luther King, Jr., Kwame Ture (Stokely Carmichael), Nikki Giovanni, The Last Poets, Jesse Jackson, Nina Simone, Eldridge Cleaver, Angela Davis, e sobretudo, a autobiografia de Malcom X que afectou-o profundamente. Fela viu as semelhanças entre o racismo norte-americano e os cometidos pelos colonialistas Britânicos na sua Nigéria. Começa a se envolver e escrever seus primeiros protestos em forma de música. É deportado para Nigéria que se encontra em guerra civil.
Um dos eventos mais dramáticos e comoventes da África, dois anos de guerra de Biafra, chocou o mundo com suas imagens marcantes e comoventes de adultos e crianças em estado de extrema subnutrição, ou simplesmente mortas. O agente causador da guerra foi um choque entre dois grupos étnicos da Nigéria.
A Nigéria se tornou independente em 1960, foi formada pela reunião do povo ibo com o povo hausa. Os ibos eram provenientes da província de Biafra, a leste do país, e formavam a elite da Nigéria. De uma forma geral eram os que tinham os melhores empregos e os melhores salários. Num golpe de Estado, em 1966, um grupo de oficiais do exército da etnia Ibo tomou o poder. No entanto, em um contragolpe, o novo governo foi derrubado e os Ibos passaram a ser caçados e massacrados. A província de Biafra era muito rica em petróleo. Por esse motivo, o governo não iria aceitar sua separação, tudo porque a região é a mais rica do país. Factor que resultou numa guerra civil que teve início a 6 de Julho 1967, e fim em 13 de Janeiro de 1970. Morreram, aproximadamente, um milhão de pessoas, em sua maioria Ibos. Biafra se rendeu e foi anexada novamente ao território da Nigéria.
Fela condena a guerra. A sua música reflecte a sua dor. Assim, o músico teve de desenvolver o pan-africanismo no contexto da opressão dos africanos pelas oligarquias e as elites africanas surgidas da independência do continente. Em 1972, Fela abriu the Afrika Shrine club em Lagos e com ela uma comunidade totalmente independente: A famosa “República Kalakuta" à mítica casa nocturna "Shrine - templo", em Ikeja, a 30 km do centro de Lagos, onde vivia numa comuna auto declarada independente, e à notória zona de perigo para o governo nigeriano. “Kalakuta I”, sua primeira comuna que fora incendiada e destruída em 1977, ficava no bairro popular de Surulere.
O Ataque Militar à República Kalakuta
No auge de sua carreira numa Nigéria caótica, criou um partido de oposição que chamou de Movement Of People - Movimento do Povo (MOP). A maior afronta, porém, foi tentar concorrer à presidência da Nigéria duas vezes. As candidaturas não vingaram, mas renderam ao músico a eterna alcunha de Black President (Presidente Negro).
A resposta do governo aconteceu na noite de 18 de Fevereiro de 1977, toda brigada militar do exército nigeriano, liderado pelo ditador Obasanjo tinham uma missão a cumprir: calar o maior popstar africano, Fela Kuti. Por isso, mil soldados responderam com um brutal ataque à sua comunidade, violentando suas mulheres e jogaram pela janela do segundo andar sua mãe de 78 anos, a activista Funmilayo Ransome-Kuti, uma militante movida pela causa comunista na Nigéria, o que a levou à morte pouco depois.
O Soldado desconhecido
O episódio, que resultou na morte da mãe levaria o músico a contemplar o suicídio mas também serviria de inspiração para composições demolidoras como Zombie e V.I.P, cuja sigla significa vagabundos no poder. Fela ridicularizavam os militares e a elite nigeriana, que cada vez mais exploravam os pobres e macaqueavam o modo de vida ocidental. O músico, é claro, discordava de tudo isso e fazia muito barulho para engajar o povo na luta por uma África livre da miséria e corrupção.
Fela é uma referência para muitos músicos e pensadores negros, o "presidente negro", foi um constante questionador das corrupções políticas, injustiças, desigualdades na Nigéria e colonizações africana. O músico deixou um legado que inspira e influência a música contemporânea de várias partes do mundo. Paul McCartney e Steve Wonder são entre tantos célebres que fizeram questão de visitá-lo no Shrine (Santuário).
Culto aos Deuses Orixás
Os Orixás não são deuses. Os Orixás são as forças da natureza como: Terra, Fogo, Vento e Água.
Depois de um período de 2 anos de exílio em Ghana, o músico retornou à Nigéria. Na altura, estava totalmente paranóico e com mania de perseguição. Não queria comer, nem beber nada e dizia que estava ouvindo vozes. Ele achava, com razão, que os militares, que já o tinham aprisionado várias vezes, queriam matá-lo e estava se tornando obcecado com isso. Segundo ele, foi a própria Funmilayo quem apareceu em um sonho para o avisar.
Por isso, toda noite no meio da sua performance que envolvia a estética ímpar das rainhas, dançarinas e esposas do músico com a música suando forte em alto-falantes. Fela ficava sempre atrás, num lugar onde comia, fumava igbo (xaro) e recebia os amigos; ele só começava a cantar uma meia-noite, a banda começava às 9 horas. A música rolando, as pessoas dançando e quando ele chegava o pessoal já estava louco, eufórico. Os iorubas gostam de música alta, forte. Durante o seu show a música pára. As luzes apagam, há um silêncio absoluto, um silêncio de morte. É hora dos espíritos sagrados. É hora para o culto dos Orixás.
Os Orixás são deuses africanos que correspondem a pontos de força da Natureza e os seus arquétipos estão relacionados às manifestações dessas forças. Cada orixá tem ainda o seu sistema simbólico particular, composto de cores, comidas, cantigas, rezas, ambientes, espaços físicos e até horários. Exu é um Orixás, é um Deus de suma importância e que é louvado antes de todos os outros Deuses, Orixás. O culto é prática quotidiano no seu “Shrine”, é um culto familiar ligado à região de origem da sua família. Ele acreditava que os espíritos iam protegê-lo. Fela era um idealista, mas era ingénuo também. Ele acreditava que os espíritos iam ajudar o povo africano a se levantar contra os governos corruptos. Só não conseguia dizer como isso ia acontecer de fato.
Fela cresceu dominado pelas ideias cristãs de seu pai e avô, ambos reverendos protestantes. O culto dos Orixás era uma crítica aberta o cristianismo e o islão; o mundo pós-colonial. Fela era muito oral, na tradição do continente, e prezava apenas a mensagem da boca para o ouvido. Em África a oralidade é tida como ciência viva. Tradições ancestrais são transmitidas de gerações em gerações. Assim, descartou a possibilidade de fazer concessões a indústria da música. Decidiu cantar em um Pidgin baseado no inglês de forma que sua música pudesse ser apreciada por indivíduos de toda a África, onde as línguas faladas locais são muito diversas e numerosas. Dizia que só queria falar para o povo africano, que não tinha interesse no Ocidente. Nada mais.
Apesar disso, no legado seu musical constam mais de 70 discos, ajudou a derrubar um ditador, teve a oportunidade de enriquecer e ter uma vida glamorosa, mas optou por viver sua ideologia até o fim. Fela Kuti tirou vantagem do crescente poder político e económico do bairro para promover seus interesses e em revitalizar a sua república Kalakuta.
República Kalakuta 2
Depois da morte da sua mãe, Fela se tinha tornado ainda mais desafiador das autoridades, tendo reconstruído a comunidade, dessa vez em pleno ghetto. Diferente da primeira Kalakuta, que ficava numa área remota, a nova ficava no centro do ghetto, como se fosse dentro de uma favela, de modo que se os militares numa nova invasão, teriam que passar pelo meio do povo, que idolatrava Fela.
O lugar, um conjunto de casas pintadas de amarelo e cercadas por arame farpado, tornou-se o lar perfeito para o retorno às raízes africanas que Fela tanto buscava em suas canções. Ali, ele criou um país à parte, cujas leis eram feitas por ele. No lugar, ele também guardava todo o seu dinheiro, já que não queria contribuir para um governo que considerava, com razão, corrupto e autoritário. Aliás, um dos motivos dos ataques a ele feitos pelos militares era roubá-lo.
Fela é “anti-establishment”, o que tem grande apelo sobre os jovens que se opõem às instituições financeiras. Fela condena os que se submetiam à mentalidade colonialista. Com o propósito de expressar a sua opinião política Fela comprou um espaço nos diários The Daily News e Punch onde tinha a sua coluna sob o título:The Chief Priest Says (O chefe dos Padre disse). Escrevia sobre temas sociais cadentes da Humanidade actual como a opressão dos africanos, a corrupção, a febre da dictadura, a ecologia, poluição, pobreza, exclusão social quer racial, económica, quer política e religiosa.
Outra vertente abordada eram sobre as “diabólicas” empresas internacionais, a alienação cultural, os valores e atitudes do homem africano, etc. A coluna era popularíssima entre o povo. Entretanto, para o governo era necessário calar Fela a todo custo. Assim, em 1984 ele foi novamente atacado pelo governo militar, que o prendeu sob uma dúbia acusação de lavagem de dinheiro. Seu caso foi acompanhado por vários organizaçðes dos direitos humanos e, após vinte meses, foi libertado pelo General Ibrahim Babangida.
Em 1986, Fela tocou com Carlos Santana, Bono Vox e the Neville Brothers no Giant Stadium em Nova Jersey num concerto organizado pela Amnesty International Conspiracy of Hope. Em 1989, Fela & Egypt 80 lançou o álbum anti-apartheid "Beasts of No Nation" que exibe em sua capa o presidente dos EUA Ronald Reagan, a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher e o primeiro-ministro da África do Sul P.W. Botha com caninos pingando sangue.
Os seus duelos constantes com as autoridades são pormenores que contribuíram sem dúvida para a sua aura. Mas, não eram esses o propósito do rei do afrobeat.
As 28 Rainhas de Fela
Fela Kuti, viveu intensamente sua vida regada a boa música, muitas mulheres. Em 1978 em uma cerimónia tribal que faria inveja a qualquer rockstar americano Fela casou-se com vinte e oito mulheres de uma só vez, muitas das quais eram suas dançarinas e vocalistas, para marcar o aniversário do ataque na República Kalakuta. O matrimónio quebrou todos os tabus sobre regras das práticas sócioculturais de um casamento.
De modo indubitável, as sociedades humanas acrescentam infinitos detalhes para definir socialmente o que significa o homem e o que significa a mulher, as qualidades e o status respectivos que enraízam suas relações com o mundo e suas relações entre si. Nunca vi mulheres em uma relação tão libertária como na Kalakuta do Fela. O casamento desenha contornos outrora jamais pensados para o que se configurou como feminino. Sim, o músico dividia tensos momentos com suas várias esposas, que viviam com ele na mesma casa. Pregava que as mulheres são capazes de uma evolução espiritual mais rápida que a dos homens, e que se eles quisessem progredir teriam que cultivar qualidades femininas como a pureza e a falta de egoísmo.
Quando havia uma briga entre suas mulheres, ele mesmo fazia um julgamento e decidia quem era a culpada. Não há reivindicações. Todas são tratadas como irmãs e mães de todos os residentes ali (a depender da sua idade relativa). Todas elas ganhavam um salário e trabalhavam dentro da comunidade. Fela conta apenas e tão-somente com a compreensão das mulheres. Para ele, elas eram as suas rainhas, um mosaico com lindas e felizes mulheres. Querem que elas entendam as suas dificuldades em saber como devem se comportar para conquistá-lo e – o mais difícil – fazê-las felizes. Anos mais tarde, Fela se separou de todas, por acreditar que o casamento era uma forma egoísta de manter alguém por perto.
A família garante que a relação poligâmica não dá confusão. Todavia, aos olhos da cultura ocidental a poligamia é crime. Para a classe governante Fela é uma ameaça ao 'stablisment” que diante de tantas ideias retrógradas repudia o seu estilo de vida do “Pimp”.
Fela fez referência sobre a história da mulher e o seu crescimento na conquista de espaço em todos os sectores da vida social, económica, política e desportiva. Sobre as anónimas mulheres negras do campo e da cidade; as serventes, as empregadas domésticas, as varredoras de rua que, de uma forma ou outra, estão presentes na luta por se organizarem nos sindicatos, nas associações de classe, nos movimentos de ghettos e bairros periféricos. Até hoje algumas mulheres continuam engajadas politicamente.
Fela Renaissance
Nascido numa família de professores e activistas de Abeokuta, na Nigéria, deixou o país em 1958 para estudar medicina na Inglaterra. Mas, interessado por música desde pequeno, desviou a rota para a Trinity School of Music, em Londres, contra a vontade dos pais. Koola Lobitos foi a sua primeira banda musical. Já nesse tempo Fela estava inventando um mix novo, injecting jazz com os ritmos da salsa. Regressou a Nigéria com a sua banda em 1963. Uma viajem para os Estados Unidos em 1969 colocou o nigeriano em contacto com o jazz de Miles Davis, John Coltrane, pelo som de James Brown e pela onda funk que explodiu no fim dos anos 60.
Em 3 de Agosto de 1997, a notícia da sua morte invadiu a alma dos seus fãs. Um milhão de pessoas foram ao enterro, preparado com honras militares. Ironicamente, o mesmo regime que o caçou por toda a sua vida decretou quatro dias de luto oficial.
Apesar de ter morrido, aos 58 anos, Fela Kuti está cada vez mais vivo entre a nova geração do jazz, do rap, do rock ou qualquer outro género musical. Não é a toa, quase simultaneamente estão lançando novos álbuns dois filhos e seguidores de Fela: o mais velho, Femi Kuti, 59 anos, e o mais novo, Seun Kuti, 38. Os dois artistas nutrem profunda ligação musical com Fela. Ainda crianças começaram a se apresentar com o pai, e Seun até hoje grava e toca com a Egypt 80, a excelente banda do pai que contínua a alimentar a imaginação dos dez integrantes que buscam estreitar laços entre o passado e o futuro através de uma leitura da música de países como Ghana e Nigéria, dos tambores dos terreiros e dos afro sambas.
Uma nova África Shrine foi aberta depois da morte de Fela em uma diferente secção de Lagos sob a supervisão do seu filho Femi kuti. Seu estúdio o Shrine «santuário» torna-se o único templo dinâmico para a música africana viva. Erykah Badu, Damon Albarn, Stephen Marley, Youssou N' Dour, Hugh Masekala tem feito gravaçðes recentemente. Em 1999, o filho Femi Kuti trouxe o seu Shrine ao festival da Gamboa. O show passou quase que despercebido. Ainda assim, deixou Gamboa com o pulsar vibrante do África Shrine. Este ano comemora-se 100 anos da existência da gravadora. O filho Femi tem planos para organizar um festival excepcional, e em seguida promover seu novo álbum.
Até então Fela é o único músico entre muitos predominantes activistas a ter a honra de Broadway, em New York (EUA) em uma das avenidas mais famosas do mundo, sendo conhecida principalmente pelos seus shows musicais, peças e teatros na área perto da Times Square. Jay-Z, Will Smith e Jada Pinkett Smith são co-produtores do ambicioso e bem-sucedido musical Fela!, um sucesso de bilheteira deste da sua estria a 22 Novembro, 2009 no Eugene O Neil Theater em Nova Iorque tem inspirando homenagens em todos os formatos pelo mundo a incontáveis festas, compilações, estilos, cenas, bandas. E, em 2013, deveria virar filme: à frente do projecto, o incensado director Steve McQueen e o actor Chiwetel Ejiofor (conhecido por Salt e Gângster Americano).
As canções de Fela falam da sua vida e da vida dos outros. Ou seja, Fela Kuti é essencial para quem gosta de boa música. É um sentimento que se junta, paralelo, que renasce quando recordo de artistas da sua craveira. Aqui, as palavras ecoam a música perfeitamente. A beleza e a forma cortante destes versos não permitem que a capacidade de indignação de seres humanos sensatos permaneça adormecida. É por isso que ela nos atrai, contamina, carregam a sensibilidade e a lucidez, a ironia e a humildade, a alegria e a solidão, provoca um êxtase colectivo que fazem você cantarolar e balançar ao som das melodias. Elas deixam também aquele feeling de querer ouvir mais. Assim, assim nasceu a febre afrobeat.
Fela Kuti representa a injustiça que estamos a cometer ao esquecê-lo, ao não o ouvirmos, ao não o conhecermos. Vê-mos músicos nascer, crescer e desaparecer no e com tempo mas, Fela Kuti é daqueles que veio para ficar. O rei não está morto. Viva Fela! Fela Anikulapo (aquele que tem a morte no bolso) Kuti é imortal.
Comentários