Estórias e comportamentos dos bichos 8
Cultura

Estórias e comportamentos dos bichos 8

CAPÍTULO QUARTO

A OSTENTAÇÃO DO PODER E O PODER DA PECÚNIA

(Primeira parte)

Esmoncado e todo pomposo, entrou na arena o representante dos equestres. Um Cavalo de uma beleza ímpar, extraordinária. Esplendoroso como poucos havia, aparentemente simpático e bem-humorado. A sua pele era suave e tão alva como o pó da cocaína pura, isto é, antes de sofrer o efeito do corte ou mistura engendrado pelos habilidosos traficantes. Era tronchudo, airoso, dócil, com profusas crinas, longa cauda e bonito focinho, apesar de um pouco fendilhado. Muitíssimo veloz, podendo atingir a velocidade de 17 metros por segundo, ou seja, 60 quilómetros por hora. O mais cobiçado meio de transporte de então, equiparado aos atuais e sofisticados automóveis dos Top 10 mais rápidos do mundo, catalogados nos Guinness Book como Venom GT da Hennessey, Bugatti Veyron 16.4 da Super Sport, o SSC Ultimate Aero TT de 2009, até Lotec C1000 da Mercedes Benzz, que podem atingir uma velocidade de até 435,3 km por hora e de 0 aos 100 km em apenas 2,2 segundos. Veículos que podem custar a módica quantia de apenas 1.200.000 dólares.

O Cavalo é um animal muito vaidoso, da família da Zebra, Mula, Asno ou Jumento e, por incrível que pareça, tem consanguinidade com os Rinocerontes. É um animal muito lindo, o mais bazofo da família. Quando ainda não é castrado é chamado Garanhão. Depois de castrado passa a chamar-se Capão. Existe uma certa liberdade de relacionamento conjugal nessa família Équus Ferus. Pode-se acasalar um primo com uma prima, um sobrinho com uma tia e vice-versa. Uma filha nascida do cruzamento de um Jumento e a sua tia égua é chamada Mula; quando nasce um macho é chamado Burro, animal de carga que só obedece levando nas trombas, por causa de uma maldição que lhe fora infligida quando ainda era Vicente. Já o filho de um Garanhão com a sua sobrinha jumenta chama-se Bardot. Possui um corpo bem proporcionado e umas ancas robustas e musculadas. O pescoço longo sustém a cabeça que, por sua vez, suporta duas orelhas pontudas e movediças, sempre alerta ante qualquer sonoridade periclitante. Os olhos situados na parte mais alta da cabeça e bem separado um do outro permitem-lhe uma visão quase circular. As narinas farejam imediatamente qualquer sinal ou iminência de perigo. É um animal de longevidade média, com o tempo de vida entre 25 a 40 anos.

O eleito representante dos outros Cavalos estacionou a um canto do abrangente anfiteatro, bastante comprometido por ter chegado demasiado atrasado. Pois, esse facto contrariava o prestígio e a tão propalada ligeireza que como marca todos lhe imprimiam. As enormes orelhas estavam hirtas, direcionadas e preparadas para captar qualquer zunzum de crítica desagradável que contra ele os outros pudessem desferir. Todavia, não deram tanta importância à tardia chegada dele porque era useiro e vezeiro em não cumprir com as suas obrigações. Por pouco o seu difeito não se fez Lei com base nos direitos consuetidinários, ou seja, ábitos e costumes, por força da Lei da Boa-Razão, melhor dito, a lei do Marquês de Bombal, promulgado no Diploma legislativo em 1769 como fonte subsidiário do direito. Não se deram tanto pelo seu atraso, se calhar, nem tampouco pela sua chegada, porque toda a atenção havia sido desviada e concentrada no pobre Vicente que estava na iminência de receber uma indecorosa alcunha em substituição do verdadeiro nome que Deus lhe pôs desde o início da criação. E todos cochichavam em seu desabono. Outrossim, sabiam que o deputado Cavalo nunca respondia a tempo aos seus compromissos e que se marimbava pelo decoro e por tudo quanto fosse decência. Levantava-se sempre tarde da cama, só quando os raios do Hélio lhe penetrassem pelas frestas da porta e o incomodassem no interior da cocheira. Não gostava de sair da cocheira sem se arranjar conveniente e pôr-se exageradamente bonito. Para fazer as necessidades, aparar a barba, cortar as unhas, escovar os dentes, tomar um duche, limpar cera dos ouvidos, tratar as cutículas, untar vaselina nos pêlos e escovar-se, lubrificar a pele com espuma de sabão, perfumar-se com água da colónia e ficar cheiroso para impressionar as eguazinhas com as quais se poderá cruzar pelo caminho ou numa esquina de qualquer beco, não demorava nunca menos de 2:00h na casa de banho. Por fim, deu nas vistas quando olhou para o semblante do Vicente e disse:

– Tenho um tio que se chama Vicente, mas ele é espetacular. É inteligente, trabalhador, honesto e respeitador. Não é como este megalomaníaco que só sabe zurrar e dar peidos.

Daí, o Leão e os demais aperceberam-se da sua presença. E de uma maneira descontraída, quase até chacoteando, Leão perguntou-lhe:

– Já chegaste, deputado Cavalo?

A descontração do Leão esmoreceu imediatamente após a estúpida e irreverenciosa resposta do garboso e atlético eleito dos Équus Ferus. Este respondeu-lhe num tom devasso, peculiar característica de um cómico bem-disposto, não fosse disparate de um miserável Cavalo, tacanho e mal-educado:

– Não. Ainda estou a sair da cocheira.

O Leão todo se inteiriçou e, de repente, a sua brandura deu lugar a uma hecatonqueira fúria. O sibilo da sua respiração entuchou o recinto. Fitou o Cavalo com um olhar escaldante, prenhe de uma infestante cólera. E dos seus felinos olhos pareciam irromper escarlates e fulminantes raios do fogo, brotando labaredas que nem forja do coxo Hefesto, o deus marido da deusa do panteão grego, a citérea Afrodite ou, do Vulcano, o dono da mão da deusa Vénus no panteão romano. Afrodite ou Vénus, é a deusa que simboliza o amor, a beleza e o comércio local. E como que projetado por uma mola ou prancha de um trampolim, o Leão levantou-se, atroou um estridente berro e espancou três potentíssimos murros na mesa:

– Mas que insolência é esta? – Cavalo murmurou qualquer coisa inaudível e baixou a cabeça, muito triste. – Como te atreves? Como ousas falar comigo desta maneira?

Temendo provocar reações mais intempestivas, consideravelmente mais inflamadas da parte do rei da selva, o Cavalo disse com uma voz cansada e num tom bastante insípido.

– Desculpe-me.

O Rei soergueu-se furibundo. Nunca Bicho algum o vira espelhando raiva tão profunda.

– Ou julgas que somos colegas?

– Na-na-na-não – O Cavalo acabara de ficar acometido pela gaguez.

– Por este teu acriançado atrevimento, sabes qual era a minha vontade?

Estranhamente, aquele faustoso Cavalo de outrora, desceu ao nível de um cão medroso e vacilante perante um rival campeão. Encolheu o rabo e fê-lo entrar por entre as pernas, tremeluzindo a voz como se ordenado por uma deliberada crise de gaguez.

– Dá-me vontade de pegar nesta oportunidade e transformar-te numa refeição Fast food.

Concluiu o felino, deixando emergir daqueles mesmos olhos, negros e faiscantes, sinais indiciadores da perigosidade em que poderia tornar, de súbito, a ameaça em agressão. O deputado Cavalo apercebeu-se que, perante aquela situação, mais valeria o tino do que a presunção. Constatou que estava a colher a tempestade do vento que ele mesmo semeara. Via-se no semblante do felino que sem uma plausível justificação, ele seria incapaz de, doravante, pronunciar o nome Cavalo sem cuspir de nojo. E esta justificação só poderia ser um profundo silêncio da parte do Cavalo. Não podia mugir nem tugir, a não ser para responder as indeclináveis perguntas do Leão:

– E porque é que só chegaste agora e cheio de atrevimento?

Aquele belo Garanhão, de uma alvura absoluta e com uns olhos verdejados, a cabeça colubrejando num barbicacho aleonado, não conseguia pensar noutra coisa que não achar como desculpar a sua irreverente conduta. E comutou a presunção pela sensatez.

– É que saí da cocheira já com um bocadinho de atraso.

– Com um bocadinho de atraso?! De quanto tempo, mais ou menos?

Perante a embrulhada, o representante equestre pôs uma expressão plangente, retraiu os miríficos ombros e respondeu timidamente:

– Talvez umas três horas.

– Umas três horas?!

O Leão ficou surpreendido e cada vez mais birrento.

– Sim. Umas três horas e poucos minutos.

– E achas normal? Achas que foi um bocadinho de atraso… uma demora de mais de três horas?

O deputado Cavalo emproou os ombros, parecendo até um certo desaforo:

– Costumo nem aparecer – entretanto, amedrontou-se após o Leão lhe ter dado uma mirada muito felina. – Desculpe. Só consegui apanhar o segundo avião.

– E o que é que eu tenho a ver com o teu 1º, 2º ou 3º avião?

– Peço desculpa.

– Não te pedi para pedir desculpa. Quero saber porque é que demoraste tanto a chegar?

– Fatores mil estiveram envoltos nesse mistério.

– Mistério?! Tu és filho de algum dos portentosos Deuses do promontório Olimpo?

– Não…

– Não?!

– É que quando vínhamos a meio do caminho, quer dizer, da altura, o combustível secou num dos depósitos do avião e o aviador teve que desviar para uma bomba de gasolina mais próxima. E já no aeroporto, quando ia a sair, fui abordado por um Policial de Alfândega que, de forma bastante autocrática me mandou abrir a mala. E a minha boa educação ordenou-me a satisfiz-lhe a vontade. Quando ele viu a quantidade de guito [dinheiro] que trazia, apreendeu-me as bagagens e disse que o dinheiro não podia sair sem que primeiro passasse pelas Alfândegas e fosse submetido ao despacho como sendo carga. Tive que mandar uma mensagem por e-mail a pedir à minha Égua que me mandasse dinheiro por Western Union ou Money Gramm para pagar a taxa aduaneira e sair do aeroporto com a minha mala de dinheiro.

Dito isto, na expressão do Leão notaram-se traços da avareza que na ciência teológica se configura como pecado original, não venial, mas sim, mortal. E na linguagem política moderna diz-se que está possuído pelo espírito corruptivo, espírito próprio de gatunos, aldrabãozecos e falsificadores de processos no sistema judiciário. E tudo isso, passível de ser criticado como desapiedado subserviência, egoísmo, concupiscência e vergonhoso acometimento aos supérfluos bens materiais. E com as agravantes de ser praticado sob argúcia e bajulação, efeito digno de um comissário do Partido cuja competência se traduz simplesmente em prepotência, arrogância, intrigas e descabida mentira.

– Por isso é que leio, algures nos seus olhos, alguma preocupação. Já percebi por que é que você está contrariado. Esses Policias são abusados e malvados. Mais uma vez, da minha parte, reitero o meu pedido de desculpas. Não queria que a minha Excelência ofendesse vossa Excelência. Nunca foi e nem será essa a minha intenção.

– Mas isso do aeroporto foi o menos. É que já me vinha contrariado desde o início da semana.

My Dog! – bradou Leão, querendo dizer «My God», um pouco assustado. – Whay, Cavalo?

E o cavalo continuou:

– Como já sabia que vinha para este encontro, fui depositar um dinheirinho no Banco. Como podem imaginar, a minha égua já não me imprime confiança. Fui na sexta-feira, e acreditem que o Banco só me deu o recibo do depósito na segunda?!

– Mas porquê? – Perguntou Leão.

– Acharam que o dinheiro era muito e que não dispunham de funcionários suficientes para o contar e verificar dentro das horas normais de expedientes. Imediatamente, o Gerente mandou encerrar todas as outras atividades e, toda a atenção ficou focalizada na contagem do meu dinheiro. Durante o fim-de-semana foram pagos aos funcionários horas extras para poderem dar atenção ao meu depósito. Por isso, prometi-lhes, que mal chego a Cabo Verde, ia até Achada Leitão mandar fazer uma máquina de contar dinheiro para lhes oferecer.

– Máquina de contar o dinheiro?! – estranhou Leão. – Em Achada Leitão… nos Picos São Salvador do Mundo?

– Exatamente. Ouvi dizer que os rapazes de Achada Leitão são bons em fabricar pistolas Bóka Bedju… acho que quem fabrica pistola, que até lhe pode matar, também é capaz de fabricar uma máquina que conte o dinheiro.

O Leão não deixou perder a oportunidade:

– E eu me ofereço, voluntário, para o acompanhar.

– Agradeço-lhe muito penhoradamente – congratulou Cavalo. – Mas o caricato foi quando vinha a caminho, a correr porque estava atrasado, e fui autuado por um Polícia que me deu multa por excesso de velocidade e por ter mudado de faixa de rodagem sem que tenha ligado os piscas.

– Só por isso? – interrogou Leão.

– Só por isso – confirmou deputado Cavalo.

– Esses Polícias já não sabem o que fazem – redarguiu Leão. – envergonham a nação. Pensam que para serem bons Polícias precisam de andar a perseguir cidadãos e contribuintes honestos, caçando multas.

– Conforme lhe estava a dizer, como vinha com pressa, dei-lhe a mala com todo o dinheiro e disse-lhe: – Tire o seu e deixe o meu – O desgraçado, nunca vira tanto dinheiro, sentiu-se ofendido, injuriado e humilhado inclusive, prendeu-me, com a acusação de corrupção ativa, por lhe estar a subornar. E sob custódia levou-me para uma Esquadra tão velha, mas tão velhinha que me recusei a entrar. Não foi então, que acabei por dar dinheiro ao Chefe para mandar arranjar a Esquadra e depois me mandar notificar?

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