Estórias e comportamentos dos bichos 11
Cultura

Estórias e comportamentos dos bichos 11

CAPÍTULO QUINTO A LÍNGUA PORTUGESA NA PERSPETIVA DE UM CHINÊS

(Segunda parte)

Nas duas das quatro ruas longitudinais do Platô, ou seja, na Avenida Amílcar Cabral e na Rua Pedonal, antiga Rua 5 de Julho, bem como na travessa que dá à Pracinha da Escola Grande, circunjacente ao Café Sofia, mocinhas demasiado jovens, trajadas com camisolas que lhes identificam com a marca Unitel T+ ou CVMóvel, numa verdadeira disputa ou maratona publicitária, vendem saldo e ativam Megas aos transeuntes.

– T+, freguês? Queres saldo? Qual é o pacote que queres? Normal ou Player?

Mais além, uma outra ainda com aspeto mais charmoso remata:

– Saldo CVMóvel? Queres ativar o Domingão? An! És Swag?

Mais acolá, uma outra pergunta já preparando o código no seu telemóvel emissor dos saldos:

– Com quantos Megas queres que te ative?

Aproxima-se uma outra concorrente de repente e desafia:

– Por que não ativas o Pacotão? Assim falas para todos os números da tua rede, mais 15 minutos para outras redes e ainda tens 7.000 Megas para usares na Internet durante 30 dias. São só 1.000$00.

– Mil escudos não são só, minha amiga – interpelou uma empregada da loja de um Chinês. – São quase três dias do meu trabalho, que entro às 8H00 e saio às 20H00.

E na maioria das vezes as respostas vinham dos que não pagavam para terem saldo nos seus cartões ou para verem ativadas as suas Megas de Internet. Respondiam sempre:

– Eu sou M-Konekta.

E são quase sempre deputados da Selva e da Savana; Agentes Reguladores da Economia e funcionários públicos, na sua maioria Selvagens. Alguns professores que pré-estabelecem um contrato fidelizado com as operadoras na altura da aquisição do telemóvel e pagam mensalmente pelo consumo através do Banco que lhes desconta do ordenado. E perante essas reações, as vendedeiras dos saldos ficavam em polvoroso. Pois, recebem comissão pelo volume de Megas que conseguem transacionar.

E os cambistas?! Comodamente encostados à parede, como se não fosse ilícito o que fazem, perguntam sem se importarem se a um Juiz, um Procurador, um Polícia da Selva ou dos Bichos, o Governador do Banco, um Guarda Selvático, um Ministro, um Traficante ou um «sépa» [grande, famoso] Thug.

– Não tens nada para trocar? Por cada 100€ dou-te onze contos.

Nas bermas da antiga Rua Sá da Bandeira no Platô, do lado contiguo ao Pelourinho Selvático, a situação é deplorante, deveras constrangedora. A cada menos de 20 metros que se percorre é surpreendido por uma mão estendida, muitas delas de jovens andrajosos e consumidos pelas drogas que consomem, implorando por uma caridosa esmola de algum Bicho benevolente. Um compacto e emaranhado formigueiro de Bicho interseta-se nos passeios, pisando-se uns aos outros e, nalguns casos, provocando chinfrim ou discussão por vezes azeda. Em vez de pedir desculpas, diz-se um ao outro em tom de desaforo: «mete o pé no bolso» ou, «o que tu tens na cara não é ferida». Nalgumas ruas ou becos, se se descuidar é quase certo que leva um caço-bode. E geralmente, as carteiras, os telemóveis, os Tabletes e computadores portáteis são alvos eletivos dos Thugs, antes conhecidos por Netinhos de Vovó. Até as religiões se incluem no rol dessa escabrosa e stressante chatice. As seitas evangélicas como Testemunhas de Jeová, Hélder, os fiéis da CRASDT - Congregação Reformada dos Adventistas do Sétimo Dia das Tendas, os Nazarenos, os Batista e Adventistas, quase que obrigam a escutá-los a ler a Bíblia e revistas como Sentinela, Plenitude, IURD News, Ester, Universal, etc. Os seguidores da Igreja do brasileiro Edir Macedo, vulgarmente conhecido por Templo Maior, convencem os fiéis a entregarem tudo o que têm, sob promessa de que Deus lhes devolverá 10 ou 100 vezes mais. E nesta mesma linha da IURD, vem a Igreja do First Love ou Primeiro Amor, com sede em Palmarejo e liderado por um jovem Pastor ganês, que apregoa em como faz milagres e garante a vida eterna aos fiéis que depuserem em sacrifício todos os bens de que dispõem. E sustenta a sua tese de que Jesus sacrificou a sua vida para nos salvar, como se já não se morra, não se adoeça e nem se padeça. Em suma, como se o terrorismo e as atrocidades do DAESH não fossem reais, a corrupção na governação uma quimera e o Inferno vendido ao David Show, o magnata Chinês, para operar como Casino. E pedem o dinheiro em notas, argumentando que quando Deus está a orar pelos fiéis, não gosta de ser incomodado com o barulho das moedas. Que sente-se melhor ao silêncio das notas e, melhor ainda, se for pela transferência bancária nos números das contas que passam nos rodapés de algumas televisões da Selva, mormente, no canal da Record. E em quase todas as Igrejas já dispões de Caixa-Multibanco o 24 para levantarem as notas.

As coisas banalizaram-se tanto, o desrespeito incrementou-se de tal forma que a palavra Vergonha deixou de significar Pudor. Até altas figuras da justiça e da governança passaram a sentir-se bazafos quando lhes cobam de Gatunos e aldrabãozecos. E deixam as suas próprias queixas prescreverem-se nos trafulhas das gavetas de suas secretárias. Por isso, nem o deputado Cão, nem nenhum outro Bicho seria capaz de aguentar a monstruosidade dessas balbúrdias. E fingiu-se de tolo. Regressou ao parlamento, mas fê-lo em grande. Com a cara arrufada e beiços repuxados, apesar de ser um Pitbull e possuir uns lábios curtos, semelhantes aos do odisseu Aquiles, filho da mítica deusa Tétis e do mortal Peleu, o rei da Ftia na região da Tessália. Manteve o rabo hirto, as orelhas levantadas e ombreiras emproadas. Com impressionante naturalidade, dirigiu-se à plateia, onde foi recebido com risos, escárnios e muita chacota. Mas não se importou, nem se intimidou. Quis surpreender o hemiciclo com um discurso que poderia culminar em fracasso ou transformar-se num verdadeiro fiasco, não fosse a oportuna entrada de um Emissário logo após um incidente que fez com que o discurso fosse bastante sinótico. Terá começado assim:

– Mister Leão, caros deportados…

O discurso foi interrompido por vaias de todas as bancadas. A reação foi unânime, mas o Leão mandou-os acalmar e advertiu o deputado Cão, como é da praxe, com simples censura:

– Deportados não, senhor deputado Cão. De-pu-ta-dos. Faço apelo a contenção na linguagem neste parlamento. Desta vez ficas com esta simples repreensão, por não seres reincidente. Concedo-te uma atenuante desta vez, mas para a próxima será agravada.

Um Bichinho que viera da longínqua Ásia, lá do Díli, capital do Timor Lorosae, olhou para o Leão e, querendo ser-lhe agradável, com esgar muxukeru [Bajulador, lisonjeiro], disse para o deputado Cão:

– Não tens é vergonha na cara! Fuzento de não sei o quê! Sem respeito!

Mas o deputado Cão fingiu que não ouviu. E já ia preparar-se para continuar, quando olhou para a porta e viu um Chico a transpor a cancela da entrada principal, envolto numa empolgante beca, figurino de juristas, neste caso, de um causídico. E por incrível que pareça, aquele Bicho era um ex-Bastonário da Ordem dos Advogados Macacos. Fora indigitado pela Amnistia Internacional e pela Comissão Nacional Para os Direitos dos Bichos para os representar, enquanto Emissário Especial. O seu charme profissional havia sido reconhecido pelo mais alto Magistrado da Bicharada, que o condecorou por ter conseguido litigar contra uma Savana, tendo usado a sua suis generis habilidade para arrancar folhas do livro de matriz da Selva e inserir novas folhas com registos de que todas as florestas daquela Savana pertenciam a ele e aos demais Bichos que ele representava. Por isso foi escolhido para representar os Bichos naquele Sinédrio. Posicionou-se no centro da arena, abriu uma pasta, empunhou de uma credencial e fez chegar à mesa presidida pelo Leão. E de seguida fez a sua apresentação:

– Boa tarde a todos. Caros deputados, sua majestade Sr. Rei Leão…

O Leão interrompeu-o, dando uma achega quanto à pomposidade da sua própria identificação.

– Eu sou Professor/Doutor e Pós-Doutor em História e Geografia Selvática, Científica ou Savânica, com um diploma exibido num faustoso quadro feito de marfim, colocado na parede do meu gabinete. Sou Primeiro-ministro da Selva, Presidente da Assembleia dos Bicharocos neste momento e Presidente da Selva em exercício ou interino, senhor Bestonário.

– Muito obrigado por essa achega e pela sua valiosa colaboração no esclarecimento desta verdade… se é que realmente é verdade – anuiu Chico.

– De nada.

Congratulou Leão, não com a humildade que se poderá dizer razoável, mas sim, com a sua já costumeira vaidade mórbida, que por pouco não se traduziu numa petulante arrogância. E antes que o enviado defensor prosseguisse, este fez um pequeno reparo ou correção num gafe que, pelo excesso e arrebiques discursivos, escapuliu ao Sr. Professor/Doutor, Pós-Doutor, Primeiro-ministro, Presidente da Selva e da Assembleia dos Bicharocos, Dr. Prof. Leão:

– Peço desculpas, mas eu não sou «Bestonário», mister Leão…

O Leão não o deixou acabar, tentando corrigir imediatamente o involuntário erro. Entretanto, piorou ainda mais com a explicação que deu:

– Me enganei, Sr. «Bestanário», pelo que peço desculpa mais uma vez, por ter-lhe dito «Bestonário».

– Eu sou ex-Bastonário da Ordem dos Advogados Macacos – tentou causídico ignorar as trampulhices do Leão –, fui nomeado pela Amnistia Internacional e pela Comissão Nacional Para os Direitos dos Bichos, na qualidade de Emissário Especial, para vir aqui patrocinar alguns clientes que se consideram injustiçados perante a lei. Sim, denunciaram terríveis atrocidades na aplicação da vossa autoridade.

O Cão levantou-se imediatamente, bastante fulo e, sem esperar pela devida permissão, ladrou:

– Eu sou uma das vítimas dessas atrocidades e um dos injustiçados quase que permanente. Há bocado deram fus e disseram que era eu, como se o único cu cá dentro fosse meu. Há dias um puto deu-me uma pedrada na boca. Ainda há bocado, depois de me terem levantado «alebi» [calúnia] de ter dado fus, fui ao kobon [retrete] e dois pirralhos insolentes não me deixaram dar-de-corpo [cagar].

O Leão teve que elevar a voz para frear o eleito Cão e mandar o ex-Bastonário continuar.

– Muito obrigado – agradeceu Emissário. – Fui mandatado para me vir inteirar das questões ligadas ao bichismo e a bichofobia. Conforme foi denunciado, nesta pequena e miserável Savana, nenhuma Fauna se sente segura. Pois, é unânime a opinião de que na capital, naquela cidadezinha de apenas quatro ruelas, o que não faltam são os motivos de insatisfação, instigadora do stress e causadora da doideira generalizada. Acontecem roubos, assaltos e caço-bode em plena luz do dia. Traficam drogas e praticam lavagem de capitais sem tréguas e sen djobe pa lado [sem olhar para o lado]. Nas televisões, nas rádios, nos jornais e nas redes sociais noticia-se a toda a hora o desaparecimento absurdo de crianças, sob olhar impune, quiçá, cúmplice das autoridades.

Arpoado nessas denúncias, o orador começou a emocionar-se, enfatizando assim o discurso, tornando-o bastante cativante. A capacidade discursiva daquele Advogado, sendo ele Macaco, deixou a todos embasbacados. O Leão ficou afónico e, o bichinho asiático viu que ele estava impressionado, com lágrimas a querer soltar-lhe daqueles dois felinos olhos, disse-lhe:

– Muito bem-dito. Ele é Macaco, mas desta vez estudou bem a lição.

O Advogado sorveu um gole de água da Trindade de uma garrafa pequena que se encontrava ao lado do seu microfone, água cuja marca estava registada para o consumo em cerimónias oficiais, nos gabinetes e departamentos públicos. Era produzida por um influente membro do governo, que havia aplicado uma exorbitante taxa aduaneira sobre todos os produtos importados, que poderiam ser «made» na sua empresa, como iogurtes e sumos refrigerantes. Por isso, a água da «Trindade» era muito mais barata do que a da «Luso», por exemplo. E depois de molhar a garganta o causídico prosseguiu:

– Por toda Selva são perpetrados crimes hediondos, sob total conivência e anuência de altas figuras da investigação e promotoria processual, mesclado num misterioso secretismo ardilosamente orquestrado pelo sistema. As jovens são sequestradas, violentadas e estupradas, enquanto queixas prescrevem nas Esquadras da Polícia Selvagem ou nas prateleiras das Procuradorias Bichadas. Há mais que três anos, foi encontrado numa lixeira, o cadáver de um Selvão, com sinais evidentes de tortura. Tinha a cara totalmente queimada, um pé serrado e uma parte deste sumida misteriosamente. Tinha os olhos vazados, a língua amputada, os dentes arrancados e os testículos esmagados. Pintaram-lhe a cara de negro com o propósito firme de dissimular e confundir os olhares curiosos de que o era um preto nigeriano, denominado pejorativamente de Manjaco. E por pensarem que era Manjaco a Médica-Legista não efetuou a autópsia e as investigações sumiram-se, quiçá, terá sido sepultada na mesma urna com o morto. E todos os demais ónus de prova foram intencionalmente ignorados e, a posteriori destruídos. Pois, agindo contrariamente, poder-se-iam comprometer figuras de proa da hierarquia judicial, sanitária e governativa da Selva, neste caso, representado por um autêntico Trio Criminoso: Médica-Legista, Procurador da Selva e Polícia do Bichos.

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