Atingida a idade pós-colonial, muitos literatos caboverdianos continuaram a disseminar a sua escrita por várias áreas culturais, chegando tais desígnios e desideratos até às gerações literárias reveladas nos anos setenta, oitenta e noventa do século XX e na primeira e segunda décadas do século XXI, destacando-se de entre os seus integrantes os nomes de Onésimo Silveira (politólogo, autarca e ensaísta, neste caso exclusivamente por causa do livro A Democracia em Cabo Verde e outros textos avulsamente publicados), David Hopffer Almada (jurisconsulto, poeta, ficcionista, ensaísta), Jorge Carlos Fonseca (jurisconsulto, professor universitário, poeta, cronista e ensaísta), Vera Duarte (magistrada, poeta, romancista, contista e ensaísta), Ondina Ferreira (professora liceal e universitária, novelista, contista, ensaísta, crítica literária e antologizadora), Dina Salústio (professora do ensino primário, poeta, romancista, contista, cronista e radialista, tendo sido autora do primeiro romance caboverdiano de criação feminina), Fátima Bettencourt (professora do ensino primário, contista, cronista e radialista), Germano Almeida (romancista, ensaísta, cronista e editor, segundo Prémio Camões caboverdiano depois de Arménio Vieira), Manuel Veiga (linguista, ensaísta e académico bilingue, considerado a maior autoridade actual na área da crioulística caboverdiana, sendo ademais romancista também bilingue e autor do primeiro romance em língua caboverdiana), Eutrópio Lima da Cruz (ensaísta, musicólogo, estudioso da música caboverdiana e romancista bilingue, tendo sido o autor do segundo e do terceiro romances em língua caboverdiana), Leão Lopes (professor universitário, artista plástico e gráfico, ficcionista e editor), Tomé Varelas da Silva (poeta e ensaísta bilingue em português e em crioulo, ficcionista e cronista em língua caboverdiana, tradicionalista e autor/organizador de algumas importantes obras de recolha de tradições orais), Vasco Martins (músico erudito, romancista, poeta, ensaísta e estudioso da música caboverdiana), Tchalé Figueira (pintor de referência, romancista, contista, poeta e músico), José Vicente Lopes (jornalista, poeta, contista, ensaísta e editor), José Luís Hopffer C. Almada (jurisconsulto, poeta, ensaísta, editor e comentador radiofónico), Jorge Tolentino (jurista, diplomata, jornalista, contista, poeta e ensaísta), Daniel Euricles Rodrigues Spínola (o Danny Spínola jornalista, contista, poeta e jornalista bilingue, cronista, ensaísta e editor, e o Euricles Rodrigues artista plástico), Fernando Monteiro (jornalista, contista e cronista), Valdemar Valentino Velhinho Rodrigues (o cronista Vadinho Velhinho e o poeta Valentinous Velhinho), Filinto Elísio Correia e Silva (bibliotecário, editor, poeta, romancista, cronista, crítico literário), Carlota de Barros (professora do ensino secundário, poeta, contista, romancista e cronista), Joaquim Arena (jurista, jornalista, romancista e ensaísta), Mário Lúcio Sousa (advogado, poeta, romancista, dramaturgo, músico, artista plástico e ensaísta que mais recentemente se vem assumindo como pensador da crioulidade caboverdianidade), José Luiz Tavares (poeta bilingue em português e em crioulo, ensaísta e polemista também bilingue, o mais premiado escritor caboverdiano da actualidade), Eurídice Monteiro (professora universitária, ensaísta, cronista e romancista), Mana Guta/Augusta Évora Tavares Teixeira (professora universitária, contista, ensaísta e cronista)...
PRIMEIRA PARTE
I
CONSIDERAÇÕES GERAIS A PROPÓSITO DO TRADICIONAL OLHAR POLICLÍNICO DOS LETRADOS CABOVERDIANOS SEGUNDO BALTASAR LOPES DA SILVA
Referindo-se às diferentes vertentes da intervenção escrita dos claridosos, nomeadamente na poesia, na prosa de ficção, na crónica, na crítica literária, em entrevista, na reportagem e na prosa cientifica (em especial na linguística do idioma crioulo e na antropologia da mestiçagem cultural e biológica ocorrida nas nossas ilhas), dizia Baltasar Lopes da Silva que, nas condições de Cabo Verde, os mesmos escritores claridosos eram, de algum modo, obrigados a ser policlínicos no exercício do seu ofício de letrados.
Com efeito, se se atentar bem, verifica-se o seguinte:
a) Jorge Barbosa (Jorge Vera-Cruz Barbosa de seu nome completo), funcionário alfandegário deambulante por várias ilhas de Cabo Verde, quiçá o menos policlínico (no sentido de intelectualmente polivalente) dos escritores claridosos-fundadores, inicia o modernismo poético caboverdiano imprimindo-lhe um forte cariz telúrico com a publicação, em 1935, do seu caderno de poemas intitulado Arquipélago, na senda da sua reviravolta estética e da ruptura com a sua poesia anterior publicada de forma avulsa em vários periódicos portugueses e caboverdianos. Como se sabe, essa reviravolta estético-formal e estético-ideológica verifica-se de forma paulatina e irreversível na sequência da publicação, na cidade da Praia, no ano de 1929, com capa de Jaime de Figueiredo e edição de João Lopes, do inusitado e explosivo livro de poemas intitulado Diário, de António Pedro Costa, o qual constitui inegavelmente o marco inaugural do modernismo poético caboverdiano.
A edição de Arquipélago, de Jorge Barbosa, precede a publicação, a 22 de Março de 1936, do primeiro número da revista Claridade, tendo todavia esse primeiro livro do grande vate praiense sido sintomaticamente editado com a chancela das Edições Claridade, cujo grupo fundador estava já constituído. O mesmo livro inaugural do modernismo poético telúrico caboverdiano traz na sua badana um texto de Jaime de Figueiredo, indiciador das opções desse autor pela denominação de uma futura revista do grupo modernista iniciado na cidade da Praia e, depois, transferido e sediado na cidade do Mindelo, e que seria Atlanta (do nome do grupo constituído a partir do magistério modernista de Jaime de Figueiredo, então residente na cidade da Praia e integrado por Jorge Barbosa, Manuel Lopes e João Lopes). Para além de ser autor de um romance intitulado Bia Graça (estranhamente ainda mantido inédito, decorridos mais de cinquenta anos sobre o falecimento em 1971 na Cova da Piedade (concelho de Almada, região da grande Lisboa) do sacrossanto poeta-mor claridoso nascido em 1901 na cidade da Praia, e falecido que é o seu depositário, o filho Jorge Pedro Barbosa, radicado até à sua morte nos Estados Unidos da América), e de inúmeras crónicas e entrevistas sobre as mais variadas questões relativas a Cabo Verde (quase todas, ou, pelo menos, a maior delas, compilada, segundo creio, na tese de doutoramento de Hilarino da Luz), Jorge Barbosa é certamente o mais completo e complexo dos poetas claridosos, ostentando, segundo a malograda Elsa Rodrigues dos Santos, várias máscaras identificadoras e (des)veladoras da sua escrita poética, postumamente reunida na sua Obra Poética, organizada por Arnaldo França, prefaciada por Elsa Rodrigues dos Santos, editada pela Imprensa Nacional/ Casa da Moeda de Portugal e reunindo os seus três livros editados em vida, designadamente Arquipélago (1935), Ambiente (1941) e Caderno de Um Ilhéu (1956), acrescidos de outros três livros inéditos, designadamente Expectativa, Romanceiro dos Pescadores e Outros Poemas, sendo que desse conjunto póstumo constam alguns poemas em crioulo do grande vate claridoso, subscritos pelo seu pseudónimo Iago da Nóbrega.
b) Baltasar Lopes (de seu nome completo Baltasar Lopes da Silva), licenciado em Direito e em Filologia Românica, advogado, professor liceal, reitor do Liceu Gil Eanes e, segundo atesta Leão Lopes na sua tese de doutoramento, suspeito de ter sido antifascista e chefe clandestino da resistência anticolonial em Cabo Verde, por isso mesmo, com direito a um dossier de centenas de páginas elaborado pela famigerada polícia política portuguesa, a PIDE-DGS; avesso à unidade Guiné-Cabo Verde e mentor intelectual da UDC (União Democrática de Cabo Verde) no período pós-25 de Abril de 1974 imediatamente anterior à instalação do governo de transição política para a independência, constituído de forma paritária pelo Estado português e pelo PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde) na sequência do Acordo de Lisboa, de 19 de Dezembro de 1974, e da instauração de facto do regime de partido único em Cabo Verde com o encarceramento pelo MFA (Movimento das Forças Armadas) no presídio político do Tarrafal de proeminentes militantes dos partidos políticos adversários do PAIGC, designadamente da UDC e da UPICV (União do Povo das Ilhas de Cabo Verde), ambos retirados de facto do cenário político caboverdiano nesses conturbados tempos históricos de rotura política; no período pós-colonial e na vigência de jure do regime de partido único, juiz (depois demissionário) do Conselho Nacional da Justiça (denominação do Supremo Tribunal de Justiça na vigência da LOPE - Lei da Organização Política do Estado), Presidente Honorário da clandestina UCID (União Cabo-Verdiana Independente e Democrática) fundada em Roterdão, a 13 de Maio de 1978, na sequência dos eventos repressivos ocorridos em 1977 na ilha de São Vicente, colaborador assíduo da revista Ponto & Vírgula (1984-1987) com a coluna “Varia Quaedam”, foi, além de autor de Chiquinho, o primeiro romance modernista caboverdiano editado pela primeira vez em 1947 com a chancela das Edições Claridade e que assinou, como, aliás, toda a sua narrativa ficcional, com o nome Baltasar Lopes, foi também autor da monumental obra O Dialecto Crioulo de Cabo Verde, editado em 1957 pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda de Portugal, do célebre ensaio Cabo Verde Visto por Gilberto Freyre, publicado em 1956, e de vários outros ensaios (que assinava com o seu nome completo), de contos (também assinados com o nome Baltasar Lopes) e poemas (sendo estes assinados pelo seu pseudónimo Osvaldo Alcântara) publicados na revista Claridade de que foi o principal mentor e um dos mais assíduos e completos colaboradores, enquanto poeta, ensaísta, ficcionista e único colaborador/fundador residente na ilha de São Vicente a partir da segunda fase (1947-1949) da icónica e intermitente revista modernista, onde era impressa na tipografia de Manuel (Leça) Ribeiro de Almeida, de cujo jornal Notícias de Cabo Verde Baltasar Lopes da Silva foi também colaborador assíduo. Organizou a Antologia da Ficção Cabo-Verdiana, editada por ocasião das celebração do Meio-Milénio do Achamento de Cabo Verde, tendo a sua obra poética sido recolhida no volume Cântico da Manhã Futura (com organização de Arnaldo França e edição do Banco de Cabo Verde), e os seus contos no livro Os Trabalhos e os Dias (com prefácio de Arménio Vieira, um antigo aluno de Baltasar Lopes da Silva, curiosamente também tido por responsável máximo da organização clandestina do PAIGC em Cabo Verde (na verdade dirigida por Jorge Querido, depois de este ter exercido função similar em Portugal, tendo sido substituído na metrópole colonial por Amaro da Luz) e um poeta bilingue em português e em crioulo, para além de ficcionista, notória e assumidamente anti-(ou, se se quiser, pós-)claridoso revelado no Boletim Cabo Verde e colaborador de Seló, o suplemento literário do jornal Notícias de Cabo Verde publicado por duas vezes em 1962 e no qual constituiu um excelente trio de poetas com Oswaldo Osório (também contista, romancista, ensaísta, editor e tradicionalista) e Mário Fonseca (poeta bilingue em francês e em português, cronista e crítico literário).
c) Manuel Lopes (Manuel dos Santos Lopes de seu nome completo) funcionário da Italcable e, depois, da sua congénere inglesa Western Telegraph na ilha de São Vicente, na ilha do Faial (nos Açores) e em Lisboa, pintor nas horas vagas, foi o mais produtivo, premiado e traduzido dos poetas, contistas, romancistas, ensaístas e cronistas claridosos-fundadores, tendo sido autor dos romances Flagelados do Vento Leste (1956) e Chuva Braba (1959), do livro de contos O Galo Que Cantou na Baía e Outros Contos Cabo-Verdianos (1959), dos livros de poesia Horas Vagas (1934), Poemas de Quem Ficou (1949), Folha Caída (1960), Crioulo e Outros Poemas (1964) e Falucho Ancorado (1997, compilação da sua poesia mais relevante, com um estudo-prefácio de Alberto Carvalho) bem como dos ensaios Monografia Descritiva Regional (1932), Paúl (1932), Temas Cabo - Verdianos (1950), Os Meios Pequenos e a Cultura (1951), Reflexões Sobre a Literatura Cabo -Verdiana (1959) e As Personagens de Ficção e Seus Modelos (1973).
Manuel Lopes foi ademais o mais longevo dos claridosos-fundadores, tendo vivido tempo suficiente para, tal como Baltasar Lopes da Silva, assistir à realização, em 1986, do Simpósio Internacional sobre a Literatura e a Cultura Cabo-Verdianas (mais conhecido por Simpósio Claridade) e à concomitante reconciliação pública entre os proclamadores da independência literária de Cabo Verde que foram os claridosos e os cabouqueiros e os proclamadores da independência política do nosso país que foram os integrantes da Geração da Nova Largada (com Manuel Duarte, o verdadeiro autor do célebre ensaio anti-claridoso Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana, editado, em 1963, pela Casa dos Estudantes do Império (CEI), apropriado e publicamente assumido por Onésimo Silveira e denominado livrinho maldito por Gabriel Mariano) e os demais camaradas e companheiros nacionalistas africanos de Amílcar Cabral.
d) João Lopes, o único não literato e não escritor dos claridosos-fundadores, foi todavia autor de dois paradigmáticos ensaios de teor marxista e feição assumidamente luso-tropicalista publicados nos números 1 e 2 da revista Claridade sobre a antropologia cultural do povo caboverdiano e que vêm marcando (quase) todas as reflexões posteriores sobre a identidade cultural do povo caboverdiano, incluindo as empreendidas pelo afro-crioulista e pan-africanista Amílcar Cabral.
e) Jaime de Figueiredo, um verdadeiro escritor de ideias, artista plástico introdutor em Cabo Verde do modernismo na área das artes plásticas que primacialmente cultivava e agitador modernista irreverente das então assaz pantanosas águas culturais caboverdianas, integrou o grupo modernista inicialmente chamado Atlanta, depois denominado claridoso (do nome da revista Claridade, assim intitulada muito provavelmente por iniciativa de Baltasar Lopes da Silva), diga-se que contra a sua vontade, daí resultando a sua desvinculação do mesmo grupo e o não envio da colaboração gráfica que lhe cabia e que foi substituída à última da hora pela crónica intitulada “Tomada de Vista”, assinada por Manuel Lopes, sendo disso prova o facto de a revista Claridade continuar a ser caracterizada no seu cabeçalho e durante toda a sua intermitente existência como Revista de Arte e Letras. Ensaísta de mérito, bibliotecário e autor de inúmeros artigos sobre as mais variadas questões relativas a Cabo Verde, com destaque para a economia, organizou a muita meritória e influente antologia intitulada Modernos Poetas Cabo-Verdianos, com um suculento e marcante prefácio seu, por ocasião das celebrações do Meio-Milénio do Achamento de Cabo Verde.
f) Pedro Corsino de Azevedo, empregado comercial, poeta telúrico-existencialista, prematuramente falecido por doença, em 1941, com apenas trinta e sete anos de idade, em Lisboa, deixou uma obra assaz escassa (pelo menos, do que se conhece), mas de grande qualidade, publicada na revista Claridade.
g) António Aurélio Gonçalves (popularizado pelo seu nominho Nho Roque), universitário com frequência do Curso de Medicina e de Belas Artes e licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras de Lisboa, onde viveu por um longo período de tempo (de 1917 a 1939), colaborou em publicações periódicas pan-africanistas e publicou o opúsculo A Ironia em Eça de Queirós, tendo sido, depois do seu regresso a Cabo Verde no ano de 1939, professor liceal de História e Filosofia e colaborador da revista Claridade a partir da sua segunda fase, a qual se prolongou de 1947 a 1948, mas não integrando o já consolidado grupo dos claridosos/fundadores constituído, como já referido e geralmente aceite, por Jorge Vera-Cruz Barbosa, Baltasar Lopes da Silva, Manuel dos Santos Lopes e João Lopes. Evidenciou-se pela sua escrita de textos de narrativa ficcional por ele designados noveletas e muito viradas para as vivências das gentes da cidade do Mindelo e, em especial, dos seus rostos femininos, mas também - quiçá em razão da sua formação académica - pelas suas muito pertinentes considerações opinativas sobre a literatura caboverdiana (por exemplo, no seu texto de introdução à Antologia de Ficção Cabo-Verdiana Contemporânea, organizada por Baltasar Lopes da Silva), a literatura universal, com destaque para as obras de Eça de Queirós e Érico Veríssimo e a cultura caboverdiana, depois reunidos num livro de ensaios póstumo intitulado Ensaios e Outros Escritos, organizado, tal como a sua obra ficcional póstuma, por Arnaldo França.
h) Para além dos claridosos-fundadores e dos claridosos literatos, gostaria de destacar o nome de um letrado que embora não tenha colaborado em nenhuma das três fases da revista Claridade, teve uma excepcional influência intelectual na sociedade do seu tempo. Trata-se do caso indubitável de António Carreira, quiçá o mais produtivo e célebre historiador caboverdiano de todos os tempos. Embora autodidacta, foi autor de uma obra historiográfica de grande relevância e de inquestionável influência até à actualidade e na qual se destacam a monumental Cabo Verde (1460-1878) - Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata, publicada em 1972, bem como o muito informado O Crioulo de Cabo Verde-Surto e Expansão. Contemporâneo e certamente amigo dos claridosos, contudo não colaborou em nenhum dos números da revista Claridade, tendo sido todavia colaborador habitual do revista Cabo Verde (mais conhecida por Boletim Cabo Verde, do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa (colónia/província ultramarina portuguesa onde desempenhou altos cargos como funcionário da administração colonial e empregado comercial), de publicações portuguesas na área da história e da antropologia, bem assim de publicações periódicas caboverdianas pós-coloniais, com destaque para a revista Ponto & Vírgula.
II
A CONSTRUÇÃO DE UM CAMPO ACADÉMICO PÓS-COLONIAL E A RADICAL MUDANÇA NOS ESTUDOS DA LITERATURA E DA CULTURA CABOVERDIANAS
1. Tendo sido herdada dos chamados escritores nativistas, também impropriamente chamados pré-claridosos, consabidamente também multifacetados como articulistas, redactores e colaboradores de jornais e de outras publicações periódicas sobre as mais variadas e candentes questões relativas a Cabo Verde e ao mundo do seu tempo histórico, além de poetas e, alguns deles, dramaturgos e prosadores ficcionais, a natureza policlínica, no sentido de multifacetada, da escrita dos letrados caboverdianos aplica-se igualmente a muitos escritores neo-claridosos de grande relevância, como os certezistas Henrique Teixeira de Sousa (médico, contista, romancista, cronista e ensaísta), Nuno Miranda (poeta, ficcionista, cronista e ensaísta) e Arnaldo França (poeta e ensaísta de mérito, além de professor de literatura), bem como a intelectuais nova-largadistas, com grande destaque para o jurista de mérito Manuel Duarte (devido ao seu papel pioneiro na chamada reafricanização dos espíritos desempenhado pelos ensaios “Cabo- Verdianidade e Africanidade” e “Cabo Verde e a Revolução Africana”, assinado pelo seu pseudónimo A. Punói, para além do celebrizado livrinho maldito intitulado Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana, sendo que a sua obra poética continua extraviada) e para o jurista Gabriel Mariano (poeta bilingue, contista e ensaísta de grande mérito, com grande influência nos estudos caboverdianos devido à ininterrupta influência até à actualidade dos seus ensaios “Do Funco ao Sobrado ou o Mundo que o Mulato Criou” e “A Mestiçagem: O Seu Papel na Formação da Sociedade Cabo-Verdiana” e do seu poema épico-telúrico “Capitão Ambrósio”).
Como já referido para o historiador António Carreira, e para além dos literatos colaboradores da segunda fase e/ou da terceira fase da revista Claridade, distinguem-se ainda os nomes de dois ensaístas e estudiosos caboverdianos, quer porque, mesmo não sendo escritores no sentido estrito do termo, colaboraram na segunda fase e/ou na segunda fase da revista Claridade, quer porque no terceiro caso abaixo referido se trata de alguém que, tendo sido ficcionista, jornalista e cronista, teve uma importante influência intelectual na sociedade do seu tempo, apesar de não ter tido qualquer colaboração na revista Claridade.
Trata-se dos seguintes nomes:
a) Félix Monteiro, alto funcionário das Finanças, tanto no tempo colonial, como no tempo pós-colonial, colaborou na segunda fase e na terceira fase da revista Claridade, na qual publicou os seus estudos sobre a tabanca da ilha de São Tiago e as festas das bandeiras da ilha do Fogo, tendo sido ademais um regular colaborador da revista Cabo Verde (mais conhecida por Boletim Cabo Verde) fundada em 1949 e subsistente até 1966, e no tempo pós-colonial, da revista Raízes (de que foi um dos co-fundadores em 1977) e da revista Ponto & Vírgula (1984/1987).
b) Pedro de Sousa Lobo, alto funcionário alfandegário em Cabo Verde e em Angola, colaborou no nº 9 (o derradeiro, de 1960) da revista Claridade, tendo-se evidenciado em razão do seu entendimento no meu entender exacerbadamente eurocêntrico da crioulidade caboverdiana, por isso, considerando como tendo levado até às últimas consequências a tese da diluição de África formulada por Baltasar Lopes da Silva no ensaio Cabo Verde Visto por Gilberto Freyre.
c) Maria Helena Spencer, redactora e colunista da revista Cabo Verde (popularizada, como já referido, como Boletim Cabo Verde), foi a primeira autora caboverdiana de prosa narrativa de ficção de feição modernista e telúrica, tendo os seus contos e crónicas sido reunidos e publicados por Ondina Ferreira ainda em vida dela. Nos seus textos publicados (creio que quase que exclusivamente) na revista Cabo Verde abordava as mais variadas questões atinentes às mulheres, à cidade da Praia e a Cabo Verde, destacando-se neste contexto as suas entrevistas a Jorge Barbosa e Henrique Teixeira de Sousa. Contemporânea da segunda vaga dos claridosos (também chamados neo-claridosos), porém nunca colaborou com a revista Claridade, uma revista literária e cultural marcadamente masculina, como é sabido e foi inequivocamente expresso, por exemplo, numa entrevista de Orlanda Amarilis (aliás, única mulher com artigo publicado na revista Certeza e companheira de Manuel Ferreira) a Michel Laban e publicada no primeiro tomo da obra em dois volumes intitulada Cabo Verde - Encontro com Escritores. Curiosamente, Maria Helena Spencer também não colaborou no Suplemento Cultural ao Boletim Cabo Verde, revista identificada com a geração da Nova Largada da literatura caboverdiana, formada, segundo José Leitão da Graça, no ano de 1953, em Lisboa, e assumida e insofismavelmente nacionalista e contestatária do sistema político-social então vigente (tendo por isso o seu segundo número sido vítima da censura colonial-fascista) e que teve o privilégio de revelar a verve poética de Iolanda Morazzo, a primeira poetisa modernista caboverdiana. Curiosamente, foi na revista Claridade da terceira fase (de 1958 a 1960) que se revelaram alguns poetas já naquela altura integrados na Nova Largada, por isso, politicamente resistentes ao sistema colonial-fascista vigente, como, por exemplo, Ovídio Martins, que, assim, veio juntar-se a outros poetas da Nova Largada revelados na segunda fase (de 1947 a 1949) da revista Claridade e colaboradores habituais do Boletim Cabo Verde, como Aguinaldo Fonseca e Gabriel Mariano.
2. Atingida a idade pós-colonial, muitos literatos caboverdianos continuaram a disseminar a sua escrita por várias áreas culturais, chegando tais desígnios e desideratos até às gerações literárias reveladas nos anos setenta, oitenta e noventa do século XX e na primeira e segunda décadas do século XXI, destacando-se de entre os seus integrantes os nomes de Onésimo Silveira (politólogo, autarca e ensaísta, neste caso exclusivamente por causa do livro A Democracia em Cabo Verde e outros textos avulsamente publicados), David Hopffer Almada (jurisconsulto, poeta, ficcionista, ensaísta), Jorge Carlos Fonseca (jurisconsulto, professor universitário, poeta, cronista e ensaísta), Vera Duarte (magistrada, poeta, romancista, contista e ensaísta), Ondina Ferreira (professora liceal e universitária, novelista, contista, ensaísta, crítica literária e antologizadora), Dina Salústio (professora do ensino primário, poeta, romancista, contista, cronista e radialista, tendo sido autora do primeiro romance caboverdiano de criação feminina), Fátima Bettencourt (professora do ensino primário, contista, cronista e radialista), Germano Almeida (romancista, ensaísta, cronista e editor, segundo Prémio Camões caboverdiano depois de Arménio Vieira), Manuel Veiga (linguista, ensaísta e académico bilingue, considerado a maior autoridade actual na área da crioulística caboverdiana, sendo ademais romancista também bilingue e autor do primeiro romance em língua caboverdiana), Eutrópio Lima da Cruz (ensaísta, musicólogo, estudioso da música caboverdiana e romancista bilingue, tendo sido o autor do segundo e do terceiro romances em língua caboverdiana), Leão Lopes (professor universitário, artista plástico e gráfico, ficcionista e editor), Tomé Varelas da Silva (poeta e ensaísta bilingue em português e em crioulo, ficcionista e cronista em língua caboverdiana, tradicionalista e autor/organizador de algumas importantes obras de recolha de tradições orais), Vasco Martins (músico erudito, romancista, poeta, ensaísta e estudioso da música caboverdiana), Tchalé Figueira (pintor de referência, romancista, contista, poeta e músico), José Vicente Lopes (jornalista, poeta, contista, ensaísta e editor), José Luís Hopffer C. Almada (jurisconsulto, poeta, ensaísta, editor e comentador radiofónico), Jorge Tolentino (jurista, diplomata, jornalista, contista, poeta e ensaísta), Daniel Euricles Rodrigues Spínola (o Danny Spínola jornalista, contista, poeta e jornalista bilingue, cronista, ensaísta e editor, e o Euricles Rodrigues artista plástico), Fernando Monteiro (jornalista, contista e cronista), Valdemar Valentino Velhinho Rodrigues (o cronista Vadinho Velhinho e o poeta Valentinous Velhinho), Filinto Elísio Correia e Silva (bibliotecário, editor, poeta, romancista, cronista, crítico literário), Carlota de Barros (professora do ensino secundário, poeta, contista, romancista e cronista), Joaquim Arena (jurista, jornalista, romancista e ensaísta), Mário Lúcio Sousa (advogado, poeta, romancista, dramaturgo, músico, artista plástico e ensaísta que mais recentemente se vem assumindo como pensador da crioulidade caboverdianidade), José Luiz Tavares (poeta bilingue em português e em crioulo, ensaísta e polemista também bilingue, o mais premiado escritor caboverdiano da actualidade), Eurídice Monteiro (professora universitária, ensaísta, cronista e romancista), Mana Guta/Augusta Évora Tavares Teixeira (professora universitária, contista, ensaísta e cronista)...
3. É precisamente sobre uma das facetas da actividade cultural de um dos mais proeminentes e premiados integrantes dessas novas gerações literárias que se debruça a obra ora em apresentação e intitulada A Utopia no Romance Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa.
Que assim ocorra, deve-se ao encadeamento de uma série de circunstâncias históricas de feição nitidamente pós-colonial e que a seguir se explana:
Por obra de Manuel Ferreira foram inaugurados na Universidade de Lisboa os Estudos das Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa/de Língua Portuguesa, facto pioneiro que, depois, se disseminou para outras universidades portuguesas e brasileiras, até chegar à Escola de Formação de Professores do Ensino Secundário de Cabo Verde e, a partir do início do século XXI, à Universidade Pública de Cabo Verde e a outras universidades caboverdianas. Relembre-se neste preciso contexto que Manuel Ferreira foi e continua quiçá a ser o mais conhecido estudioso português das literaturas africanas de língua portuguesa, tendo publicado vários volumes relativos à poesia dos vários países afro-lusófonos e intitulados No Reino de Caliban, sendo que o primeiro volume relativo a Cabo Verde e a um único poeta da Guiné-Bissau foi editado em 1975, bem como estudos diversos constantes dos dois volumes da obra Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. Para além de ter contribuído decisivamente para a configuração neo-realista da revista Certeza (dois números impressos e publicados em 1944 na cidade do Mindelo e um terceiro número impresso na cidade da Praia e retido pela censura colonial-fascista) e da obra literária dos seus mais importantes colaboradores, de entre os quais ele próprio com o pseudónimo Manuel Alvarez, Manuel Ferreira foi um reconhecido, emérito e dedicado promotor da literatura caboverdiana, de que são testemunhos o icónico livro intitulado A Aventura Crioula (primeira edição de 1967, com prefácio de Baltasar Lopes da Silva), os seus trabalhos de (re)edição de obras assaz relevantes para a história da literatura e da cultura caboverdianas, como o romance O Escravo, de José Evaristo de Almeida, e a edição fac-similada da revista Claridade (todos com a chancela da ALAC - África, Literatura, Arte e Cultura-, a editora por ele fundada e também responsável pela edição da muito influente revista África), tendo sido outrossim um romancista detentor legítimo de bi-nacionalidade literária luso-caboverdiana por mor da sua condição de autor das obras neo-realistas portuguesas Grei e A Casa dos Motas e das temáticas tratadas com raro esmero linguístico-literário nos seus romances e contos caboverdianos, designadamente nos romances Hora di Bai e Terra Trazida e nas colectâneas de contos Morna e Morabeza.
Deste modo e em resultado da acção pioneira de Manuel Ferreira, formou-se um campo académico dotado das metodologias e dos instrumentos técnicos necessários para a análise fundamentada e aprofundada das obras literárias produzidas pelos escritores e intelectuais caboverdianos e, em geral, da obra cultural, identitária e linguística produzida pelo povo caboverdiano das ilhas e diásporas.
Assim, e a despeito das propensões multi-funcionais e poli-instrumentistas de vários criadores caboverdianos (incluindo daqueles com elevada formação académica nas áreas da literatura e da cultura caboverdianas), vai-se tornando cada vez menos indispensável a ainda útil e necessária figura do escritor e do intelectual policlínicos caboverdianos.
É, pois, neste contexto de pronunciada especialização académica na área das literaturas de língua portuguesa dos novos intelectuais caboverdianos que se enquadra o presente livro, enquanto obra resultante de um trabalho académico produzido no âmbito de um curso para a obtenção de um título académico (o mestrado) na Universidade Nova de Lisboa, depois de o então candidato a Mestre em Estudos Portugueses, o agora autor João Paulo Tavares de Oliveira, ter concluído a sua licenciatura exactamente na Faculdade onde aprouve ao saudoso Manuel Ferreira inaugurar os Estudos das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.
* Nota do autor: constitui o presente texto uma versão desenvolvida do texto de apresentação pública do livro de João Paulo Tavares de Oliveira intitulado A Utopia no Romance Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa (Editorial Novembro, 1ª edição de Outubro de 2021), ocorrida no Centro Cultural Cabo Verde (Rua de São Bento, nº 640, Lisboa) a 6 de Outubro de 2022.
No acto de apresentação pública do livro acima referido, tive a oportunidade de reiterar os nomes de escritores caboverdianos referidos na sessão de lançamento em Lisboa do livro A Última Lua de Homem Grande, de Mário Lúcio Sousa, que, segundo penso, são legítimos postulantes/candidatos ao Prémio Camões, o maior galardão literário de língua portuguesa, em razão da qualidade e da dimensão da obra até agora produzida, designadamente e por ordem de idade: Oswaldo Osório, Dina Salústio, Jorge Carlos Fonseca, Valdemar Velhinho Rodrigues, Mário Lúcio Sousa e José Luiz Tavares, para além e sem farsa modéstia do autor do presente ensaio, na altura referido como poeta épico-telúrico, existencialista e lírico sem concreta nomeação do seu nome literário, do seu pseudónimo e dos seus muitos pseudoheterónimos. Na versão publicada do texto de apresentação pública do mais recente romance de Mário Lúcio Sousa foram ainda acrescentados os nomes dos escritores Joaquim Arena, Filinto Elísio Correia e Silva como futuros candidatos/postulantes a considerar em razão da sua importante obra literária em consolidação bem como dos investigadores e escritores de ideias Gabriel Fernandes, António Leão Correia e Silva e José Vicente Lopes. A esses nomes ousei aditar por ocasião da apresentação pública do livro de João Paulo Tavares de Oliveira intitulado A Utopia no Romance Biografia do Língua de Mário Lúcio Sousa e agora, na elaboração da versão final do presente ensaio, os nomes das seguintes personalidades do nosso panorama literário e cultural:
i. O professor universitário jubilado Manuel Veiga, em razão não só da sua condição de escritor bilingue com importante obra ficcional vazada nas línguas portuguesa e caboverdiana, mas também como o linguista considerado a maior autoridade actual na crioulística caboverdiana e ensaísta com uma vasta obra publicada no domínio dos estudos da literatura, da cultura e do bilinguismo caboverdianos e escrita nas línguas portuguesa, caboverdiana e francesa.
ii. A poetisa, contista, romancista e cronista Carlota de Barros, autora de uma relevante e vasta obra e cuja escrita se distingue daquelas cultivadas pelas demais autoras caboverdianas por uma exuberante e cativante leveza lírica, a qual, aliás, perpassa toda a sua obra ainda em consolidação, com destaque para a sua poesia, mesmo aquela de teor mais trágico.
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