1. Podemos ir direto ao ponto? Se você pensa que já viu tudo sobre os TACV, rebatizado em 2016 de Cabo Verde Airlines, está muito enganado. Vem aí um novo capítulo que, de forma dramática para o Estado, e, qual festa de arromba para uns poucos, se resume no seguinte: o Governo de Cabo Verde, que é o Estado de Cabo Verde, vai oferecer o dinheiro de todos os caboverdeanos para enriquecer meia dúzia de fulanos. Mas, que fulanos são esses? São os capitalistas que não têm um tostão para investir, também conhecidos por “capitalistas sem capital”, e que se chamam a si próprios de “privados” – mas, na verdade, o dinheiro de todo o investimento que fazem é do Estado;
2. Antes de aprofundarmos este caso específico de entrega de dinheiro através da TACV/CVA, é preciso chamar a atenção para duas artimanhas básicas, mas cruciais para se alcançarem os dois seguintes objetivos: primeiro, alimentar os fanáticos do partido no poder, o MPD, e, segundo, fazer aquilo que os “expertos” costumam chamar de criação de ambiente político para servir de almofada a determinadas decisões, entre as quais, essa de beneficiar amigos com o dinheiro do Estado. Mas, que duas artimanhas são essas? Depois da pandemia chegar a Cabo Verde, o vice-Primeiro-ministro e ministro das finanças começou, dia sim, dia sim, a partilhar nas redes sociais notícias escolhidas a dedo, dando conta da falência de empresas de transportes aéreos no mundo. É claro que não partilhou nenhum caso de sucesso! O truque é criar a ideia na cabeça das pessoas de que a pandemia é a causa de todas as companhias aéreas no mundo estarem falidas e, logo, ser natural que a TACV/CVA também esteja falida. A segunda artimanha foi aquela tentativa de enganar as pessoas de que os voos tinham sido suspensos apenas devido à covid-19;
3. Que fique claro! Essas artimanhas fazem parte de uma tentativa de passar para a opinião pública a ideia de que a situação de falência dos TACV/CVA ocorre somente com a emergência da pandemia. Contudo, há factos a comprovarem exatamente o contrário: (i) realização de voos praticamente vazios[i], até com cinco passageiros, acumulando avultados prejuízos – ainda antes da pandemia; (ii) Proibição de voar para Itália[ii], aeroportos de Roma e Malpensa, devido a erros de gestão, tendo levado a inúmeros cancelamentos que deixaram centenas de passageiros em terra – já em julho de 2018; (iii) Suspensão de voos para São Salvador da Baía[iii], no Brasil, tendo sido justificada, na altura, pela necessidade de reestruturação de novos destinos e não pela covid-19; (iv) Cancelamento de vários voos[iv] para Washington e Boston, em finais de fevereiro de 2020; (v) Atrasos sistemáticos no pagamento de salários, tendo culminado no primeiro Natal sem salário nos cinquenta anos da história da companhia, em dezembro de 2019, portanto, longe da covid-19; (vi) Suspensão da venda de bilhetes[v] pela Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA, em inglês) como consequência de um período de falha de pagamentos; e igualmente grave, o facto de ter sido vendida fiado, tendo assumido o pagamento de 48 mil contos[vi] para o mês de dezembro de 2019. Se nem os salários pagou, quanto mais ao Governo amigo, empenhado em meter dinheiro na empresa; Por fim, o fracasso da venda de ações na Bolsa de Valores de Cabo Verde[vii], operação que não evitou a companhia de continuar a pedir mais dinheiro aos cofres do Estado;
4. Revisitados as artimanhas e certos marcos desta nova gestão da TACV/CVA, há, então, três questões de fundo em relação às quais somos todos convocados a refletir e a posicionarmo-nos: (i) a avaliação da situação desta nova gestão no período antes da pandemia, para evitar que este flagelo seja utilizado como justificativa; (ii) a opção que é feita pelo Governo em apanhar milhões dos dinheiros do Estado e “dar de bandeja” a privados amigos; e, no limite, (iii) a opção quanto ao papel a ser desempenhado pelo Governo como defensor do interesse do Estado ou do interesse de privados. Sobre estas duas questões, a situação dos TACV/CVA e que interesses o Governo deve defender, há um excerto que nos pode muito bem servir de rumo na análise. Retiramo-lo de uma intervenção extraordinária do atual ministro das infraestruturas e habitação de Portugal, Pedro Nuno Santos, que tem a tutela dos transportes, onde se inclui a companhia TAP. Disse ele: “Eu cá acho que a empresa TAP antes do covid já não estava bem. Mas isto sou eu. Há quem não goste desta opinião, admito que haja gente que não goste até no meu partido. Mas é assim que eu acho. Que a empresa não estava a ser bem gerida antes do Covid”. Nós acrescentamos: o mesmo falhanço ocorreu com a Cabo Verde Airlines, muito antes da covid-19 aparecer!
5. Sobre a terceira questão, referente a que interesses deve o Governo defender, recorremos, novamente, ao ministro Pedro Nuno Santos: “Eu cá não represento nenhum acionista privado (…) Eu, no meu trabalho defendo é o povo português, defendo é o dinheiro do povo português, defendo as empresas do povo português, defendo aquilo que for do povo português. É o que me interessa. É assim que eu quero estar na vida política”;
6. Chegados a este ponto, resta-nos a pergunta final: o Governo – sem retirar nenhuma consequência – deve continuar a dar o dinheiro público a uma empresa privada que, afinal, não tem capacidade para investir? Mais uma vez recorremos ao Pedro Nuno Santos: “(…) se é o povo português que paga, é bom que seja o povo português a mandar. (…) se for só o Estado a meter dinheiro o que acha que deve acontecer? O Estado fica com o controlo da empresa. E não estou a falar de governance, estou a falar da propriedade”;
7. Considerando o falhanço da Cabo Verde Airlines, ocorrido antes da covid-19, restam duas saídas no horizonte: o Estado coloca mais dinheiro nos TACV/CVA e assume a propriedade da companhia, ou, em alternativa, o Estado coloca dinheiro público a favor de privados para acumularem lucros, sem investirem um tostão! Este segundo caminho, certamente, constitui uma “banhada” que ficará na história! Se o primeiro caminho também será uma “banhada”, isto vai depender dos montantes que o Estado oferecerá para ter a companhia de volta!
[i] CV Airlines está a perder milhões devido a voos vazios, 25 de fevereiro de 2020, Santiago Magazine, https://santiagomagazine.cv/index.php/economia/4085-cv-airlines-esta-a-perder-milhoes-devido-a-voos-vazios
[ii] Cabo Verde Airlines já não pode voar para Itália, 19 de julho de 2018, Expresso das Ilhas, https://expressodasilhas.cv/economia/2018/07/19/cabo-verde-airlines-ja-nao-pode-viajar-para-italia/59201
[iii] CV Airlines suspende voos para Salvador por tempo indeterminado, 1 de março de 2020, Santiago Magazine https://santiagomagazine.cv/index.php/economia/4112-cv-airlines-suspende-voos-para-salvador-por-tempo-indeterminado
[iv] Agências De Viagens Impedidas De Vender Bilhetes Para Voos Da Cabo Verde Airlines, 23 de abril de 2020, News Avia, https://newsavia.com/agencias-de-viagens-impedidas-de-vender-bilhetes-para-voos-da-cabo-verde-airlines/
[v] O escândalo da “privataria” fiada dos TACV, 10 de março de 2019, Santiago Magazine,
https://santiagomagazine.cv/index.php/mais/n-colunista/2597-o-escandalo-da-privataria-fiada-dos-tacv
[vi] Interesse de privados já garante venda de 39% da companhia aérea de Cabo Verde – Bolsa de Valores, 14 de janeiro de 2020, Expresso das Ilhas, https://expressodasilhas.cv/pais/2020/01/14/interesse-de-privados-ja-garante-venda-de-39-da-companhia-aerea-de-cabo-verde-bolsa/67495
[vii] Government Will Not Step In To Save Icelandair From Bankruptcy, 11 de maio de 2020, https://grapevine.is/news/2020/05/11/government-will-not-step-in-to-save-icelandair-from-bankruptcy/?fbclid=IwAR0SQjIFXkUsltThTOqX76fnYDT5otN-sNHWQDbdNAIT--LrRM0j7wPM3OA
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