SEGUNDAS ANOTAÇÕES EM POLÊMICO PARÊNTESE JURIDICO-CONSTITUCIONAL
Essas especificidades, acima sumariamente elencadas, conjugadas com sistemas nacionais de saúde na sua esmagadora maioria notoriamente precários, por isso incapazes de poder responder a uma eventual grande afluência de infectados pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) e de doentes da COVID19, levaram a que, em muitos desses países, e contrariamente à esmagadora maioria dos países desenvolvidos e a alguns países em vias de desenvolvimento felizmente beneficiários e dotados de meios para o apoio público aos mais carenciados e precarizados, e, por isso mesmo, muito mais assertivos na tempestividade, na oportunidade e na severidade das medidas decretadas, como Cabo Verde, Angola ou o Ruanda, a declaração do estado de emergência nem sempre tenha significado a obrigatoriedade geral do confinamento domiciliário dos cidadãos, salvaguardadas obviamente as possibilidades, legalmente garantidas, de quebra da “prisão domiciliária” para a resolução de questões essenciais, tais o abastecimento em bens alimentares, a prestação de certos serviços indispensáveis nas linhas da frente de combate à doença, o passeio do cão (isto, claro, nos países desenvolvidos e, nos países subdesenvolvidos, para os integrantes das classes médias e abastadas), etc., etc..
Na maior parte dos países africanos, a declaração do estado de emergência traz no seu bojo a inerente possibilidade de suspender direitos, liberdades e garantias, sem que isso possa alguma vez significar, do ponto de vista jurídico-constitucional, um apagão da democracia, ou uma sua mera suspensão, e do correlativo funcionamento dos órgãos de soberania, mormente daqueles de natureza política, aliás, partícipes activos de todo o processo conducente à declaração do estado de emergência e da fiscalização da sua posterior execução pelo Governo, bem como dos órgãos da comunicação social e de outros mecanismos de controlo e fiscalização do severo decurso do dia-a-dia da situação de calamidade pública na qual assenta, material e objectivamente, a declaração do estado de emergência.
A suspensão de direitos, liberdades e garantias e de outros direitos fundamentais de natureza análoga exclui do seu âmbito um relevante conjunto de direitos de personalidade também chamados direitos individuais pessoalíssimos, quais sejam os direitos à vida, à integridade física, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, à não retroactividade da lei penal, o direito de defesa do arguido, a liberdade de consciência e de religião, como expressamente estipulado, por exemplo, no artº 274º da Constituição Caboverdiana, mas também em dispositivos normativos similares das Constituições Políticas de Angola, do Brasil, da Guiné-Bissau, de Moçambique, de Portugal e de São Tomé e Príncipe.
Na actual situação de calamidade pública sanitária, a declaração do estado de emergência e a correlativa suspensão de direitos, liberdades e garantias atinge em regra, e com maior acuidade, o direito de circulação e de mobilidade, com a obrigatoriedade geral de confinamento domiciliário dos cidadãos e o estabelecimento das cercas sanitárias das ilhas, bem como o direito de entrar e sair do país e o direito de emigração com a interdição de transportes aéreos e marítimos internacionais de passageiros.
Em outros casos, como vem ocorrendo na grande maioria dos países africanos, tanto os magrebinos (norte-africanos) como os subsaarianos, a declaração do estado de emergência, e a consequente suspensão de direitos, liberdades e garantias, consubstanciou-se na decretação de um recolher obrigatório restringido ao período da noite e a um limitado período diurno, normalmente de jornada laboral, por isso mesmo, considerada indispensável na busca e angariação, por vezes desesperada, senão dramática, de recursos e meios de sobrevivência física, e contabilizada ao dia para a maior parte da população suburbana e rurbana activa, primacialmente ocupada em expedientes vários de garantia da mera subsistência nos múltiplos, difusos e, amiúde, confusos sectores da economia informal. Em muitos casos, quis o poder vigente sub-repticiamente equiparar o estado de emergência sanitário ao estado de emergência político e, até, ao estado de sítio, para os duvidosos efeitos de manutenção de uma ordem constitucional democrática vigente assaz periclitante, comportando-se as forças de ordem muitas vezes, se não em regra, de forma musculada e arbitrária, sempre muito renitentes e, até, abertamente avessas, ao respeito dos direitos humanos fundamentais elementares dos cidadãos, mormente do seu direito à integridade física e moral contra a tortura, os maus-tratos e os tratamentos desumanos, cruéis e degradantes.
Em alguns países, com destaque para Portugal e Cabo Verde, a declaração do estado de emergência, ocorrida em regra com o registo da primeira vítima mortal da COVID19 no respectivo território nacional, e, por isso, considerada como indiciadora e/ou comprovativa de uma real situação de calamidade pública sanitária, foi precedida de uma série de procedimentos relacionados com os riscos, ainda iminentes ou tão-somente potenciais, de “nativização” e posterior disseminação do novo coronavírus (SARS-CoV-2) e da COVID19, declarada que fora já a doença pela OMS como de natureza contagiosa e com repercussões globais e, por isso, tecnicamente definida como uma verdadeira pandemia, semanas depois da tomada de conhecimento da sua eclosão, em inícios de Dezembro de 2019, num mercado da cidade chinesa de Wuhan no qual se trafegava com animais selvagens, incluindo com o principal suspeito de ter sido hospedeiro do novo coronavírus e o seu transmissor directos para os seres humanos, o agora famigerado pangolim, e da sua notificação oficial à OMS pelas autoridades chinesas, em fins de Dezembro de 2019.
Tais procedimentos foram sendo paulatina e devidamente enquadrados em fases várias de desencadeamento, desenvolvimento e consolidação das medidas de prevenção, contenção e protecção em caso de ocorrência de catástrofes ou acidentes graves e legalmente previstas nas respectivas Leis de Bases da Protecção Civil, designadamente a fase de alerta, a fase de contingência e a fase de calamidade pública.
Se em Portugal a situação de calamidade pública levou à declaração, não do estado de calamidade, como inicialmente pretendia o Primeiro-Ministro, mediante o recurso e pelo socorro desta medida drástica, a mais radical e extremada prevista na Lei de Bases da Protecção Civil, mas à declaração do estado de emergência pelo Presidente da República com audição prévia e respectivo parecer positivo do Governo e a competente autorização da Assembleia da República devida e oportunamente reunida em sessão plenária, em Cabo Verde a declaração do estado de emergência pelo Presidente da República foi precedida, ainda que de um dia somente, da declaração pelo Governo do estado de calamidade pública sanitária com com consequente adopção de uma panóplia de medidas práticas e de dispositivos jurídico-legais de protecção civil sanitária, incluindo a instauração de cercas sanitárias em torno de todas e de cada uma das ilhas caboverdianas habitadas.
Ademais, a declaração do estado de emergência pelo Presidente da República foi autorizada não pelo Plenário da Assembleia Nacional, como expressa e peremptoriamente estabelece a Constituição da República, no seu artigo 273º, mas pela Comisão Permanente da Assembleia Nacional, vindo o Plenário da Casa Parlamentar caboverdiana a reunir-se posteriormente com o fito expresso de ratificar a resolução que autorizou a declação presidencial do estado de emergência emitida pela Comissão Permanente do Parlamento islenho, ficando assim sanado o vício que, muito provavelmente, (quase) feria de morte essa mesma resolução da Comissão Permanente do órgão político de soberania representativo de todos os caboverdianos e dos respectivos partidos políticos com representação parlamentar, ao qual a Constituição da República de Cabo Verde atribui no seu artº 180º, alínea e), a competência política de apreciação e fiscalização da execução pelo Governo da declaração do estado de emergência ou do estado de sítio.
Tenha-se para mais em conta a ambiência envolvente de uma desculpável situação de estado de necessidade em que pudessem estar a laborar os deputados integrantes da Comissão Permanente da Assembleia Nacional e a funcionar a Assembleia Nacional no seu conjunto, num contexto, relembre-se, marcado pela instituição por parte do Governo, e ao abrigo da Lei de Bases da Protecção Civil, de cercas sanitárias erigidas em torno de todas e de cada uma das ilhas nossas habitadas e consequente proibição do trâfego e dos transportes aéreos e marítimos inter-ilhas bem como outros correlatos circunstancialismos temporais que pudessem ter dificultado a convocação da Assembleia Nacional e a sua reunião, em tempo útil, em sessão plenária, mesmo mediante o recurso à vídeo-conferência.
Anote-se a este propósito que o artº 273º, nº 1, determina que ” na vigência do estado de sítio ou de emergência, não pode ser dissolvida a Assembleia Nacional, que fica automaticamente convocada caso não esteja em sessão”.
Ressalte-se ainda, neste concreto contexto que, nos termos do artº 273º, nº 2, da Constituição da República de Cabo Verde as competências do Plenário da Assembleia Nacional só podem ser assumidas pela sua Comissão Permanente “se a Assembleia Nacional estiver dissolvida ou no caso de ter terminado a legislatura na data da declaração do estado de emergência” ou do estado de sítio”, situações a que notoriamente não se podia subsumir o caso vertente, admitindo-se todavia a excepcional ocorrência de uma situação de estado de necessidade por mor de uma prementíssima urgência que pudesse ter obrigado a Comissão Permanente da Assembleia Nacional a, sem quaisquer delongas, emitir a autorização da declaração presidencial do estado de emergência, condição sine qua non para a sua entrada em vigor, mesmo se essa autorização emitida pelo “órgão suplente” do Plenário da Assembleia Nacional ficasse sempre sujeita à ratificação,em tempo útil e e em todas as circunstâncias, desse mesmo Plenário da Casa Parlamentar caboverdiana.
Anote-se outrossim que em Cabo Verde, para além dessas especificidades jurídico-constitucinais, quiçá emergentes da natureza arquipelágica do país, e diferentemente de Portugal, além da prerrogativa da sua audição prévia e da sua competência política “para se pronunciar sobre a execução da declaração do estado de sítio e do estado de emergência e adoptar as providências que se mostrem adequadas à situação, nos termos da Constituição e da lei (artº 203º, nº 1, alínea k), da Constituição Caboverdiana), é ao Governo que, nos termos da alínea b), do nº 2, do mesmo artº 203º da Constituição da República, “compete, no exercício de funções políticas, propor ao Presidente da República (…) a declaração do estado de emergência” (e, relembre-se, outras decisões políticas similares de carácter excepcional a emanar do Presidente da República, quais sejam a declaração do estado de sítio, a declaração da guerra e a feitura da paz), declaração essa que, por sua vez e como já se dissecou, é obrigatoriamente sujeita à autorização da Assembleia Nacional reunida em sessão plenária (e nunca da sua Comissão Permanente, a qual só está habilitada a autorizar o Presidente da República a declarar o estado de emergência (bem assim a declarar o estado de sítio, a declarar a guerra e a fazer a paz), em casos excepcionais, previstos na Constituição da República, designadamente no artº 273º, nº 2, e no artº 148º, nº 4, alínea d), isto é, no caso de Assembleia Nacional estar dissolvida e no caso de ter terminado a legislatura.
Assinale-se ainda que em ambos os países lusófonos existe uma cláusula geral constitucional (o artº 18º, na Constituição Portuguesa, e o artº 17º, na Constituição Caboverdiana) que autoriza o legislador ordinário a restringir e limitar os direitos, liberdades e garantias e outros direitos fundamentais de natureza análoga, constitucionalmente consagrados, só podendo haver lugar à suspensão de direitos, liberdades e garantias em caso de declaração de estado de sítio ou de estado de emergência (artº 19º da Constituição Portuguesa e artigos 272º e 274º da Constituição Caboverdiana.
Anote-se ademais que, em ambos os países, se determina que “só nos casos expressamente previstos na Constituição poderá a lei restringir os direitos, liberdades e garantias” (artº 27º (nº 4º, da Constituição Caboverdiana), e, no caso de Cabo Verde, há menção expressa, no artº 176º, alínea k) da sua Constituição da República, “à restrição de direitos”, como sendo uma das matérias sobre a qual recai a competência exclusiva, absolutamente reservada, da Assembleia Nacional de fazer leis.
Determina ainda o nº 5 do artº 17º da Constituição Caboverdiana, reproduzindo quase literalmente o artº 18º da Constituição Portuguesa, que “as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias serão obrigatoriamente de carácter geral e abstracto, não terão efeitos retroactivos, não poderão diminuir a extensão e o conteúdo essencial das normas constitucionais e deverão limitar-se ao necessário para a salvaguarda de outros direitos constitucionalmente protegidos”.
Tornando-se necessário não somente restringir e limitar direitos, liberdades e garantias e outros direitos fundamentais de natureza análoga, constitucional-mente consagrados, relembre-se que unicamente, “nos casos expressamente previstos na Constituição”, mas também suspendê-los, cremos ser o quadro jurídico-legal instituído pela declaração presidencial do estado de emergência o que melhores, porque juridicamente mais firmes, seguras e inquestionáveis, garantias políticas e constitucionais oferece, sendo, por isso, e salvo melhor opinião, de duvidosa constitucionalidade a instituição de cercas sanitárias em relação a municípios em Portugal ou às ilhas habitadas em Cabo Verde e prevista nas respectivas Leis de Bases da Protecção Civil, quer essa mesma instituição ocorra no período anterior ou no período posterior â declaração do estado de calamidade publica sanitária, como é o caso actual em Portugal e foi o caso em Cabo Verde no período imediatamente anterior à declaração presidencial do estado de emergência.
SEGUNDAS ANOTAÇÕES SUPLEMENTARES DESTA FEITA RETOMADAS EM POUCO POLÊMICO PARÊNTESE JURIDICO-CONSTITUCIONAL EM RAZÃO DO RESPEITO SOLICITADO E DEVIDO AO DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO DA PALAVRA E AO DIREITO AO CONTRADITÓRIO POLÍTICA E JURIDICAMENTE FUNDAMENTADOS DE EVENTUAIS ADVOGADOS DO DIABO INDÍGENA DAS ILHAS
Essas especificidades, acima sumariamente elencadas, conjugadas com sistemas nacionais de saúde na sua esmagadora maioria notoriamente precários, por isso incapazes de poder responder a uma eventual grande afluência de infectados pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) e de doentes da COVID19, levaram a que, em muitos desses países, e contrariamente à esmagadora maioria dos países desenvolvidos e a alguns países em vias de desenvolvimento felizmente beneficiários e dotados de meios para o apoio público aos mais carenciados e precarizados, e, por isso mesmo, muito mais assertivos na tempestividade, na oportunidade e na severidade das medidas decretadas, como Cabo Verde, Angola ou o Ruanda, a declaração do estado de emergência nem sempre tenha significado a obrigatoriedade geral do confinamento domiciliário dos cidadãos, salvaguardadas obviamente as possibilidades, legalmente garantidas, de quebra da “prisão domiciliária” para a resolução de questões essenciais, tais o abastecimento em bens alimentares e outros mantimentos, a prestação de certos serviços indispensáveis nas linhas da frente de combate à doença, o passeio do cão e de outros eventuais animais de companhia (isto, claro, nos países desenvolvidos e, nos países subdesenvolvidos, para os integrantes das classes médias e abastadas), etc., etc..
Na maior parte dos países africanos, a declaração do estado de emergência traz no seu bojo a inerente possibilidade de suspender direitos, liberdades e garantias, sem que isso possa de alguma forma significar, do ponto de vista jurídico-constitucional, um apagão da democracia, ou ser traduzida numa sua mera suspensão, e do correlativo funcionamento dos órgãos de soberania, mormente daqueles de natureza política, aliás, partícipes activos de todo o processo conducente à declaração do estado de emergência e da fiscalização da sua posterior execução pelo Governo, bem como dos órgãos da comunicação social e de outros mecanismos de controlo e fiscalização do severo decurso do dia-a-dia da situação de calamidade pública na qual assenta, material e objectivamente, a declaração do estado de emergência.
Essa possibilidade de suspensão de direitos, liberdades e garantias e de outros direitos fundamentais de natureza análoga exclui do seu âmbito um relevante conjunto de direitos de personalidade também chamados direitos individuais pessoalíssimos, quais sejam os direitos à vida, à integridade física, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, à não retroactividade da lei penal, o direito de defesa do arguido, a liberdade de consciência e de religião, como expressamente estipulado, por exemplo, no artº 274º da Constituição Caboverdiana, mas também em dispositivos normativos similares das Constituições Políticas de Angola, do Brasil, da Guiné-Bissau, de Moçambique, de Portugal e de São Tomé e Príncipe.
Na actual situação de calamidade pública sanitária, a declaração do estado de emergência e a correlativa suspensão de direitos, liberdades e garantias atinge em regra, e com maior acuidade, o direito de circulação e de mobilidade, com a obrigatoriedade geral de confinamento domiciliário e o estabelecimento das cercas sanitárias das ilhas, bem como o direito de entrar e sair do país e o direito de emigração com a interdição dos tráfegos e dos transportes aéreos e marítimos internacionais de passageiros.
Em outros casos, como vem ocorrendo na grande maioria dos países africanos, tanto os magrebinos (norte-africanos) como os subsaarianos, a declaração do estado de emergência, e a consequente suspensão de direitos, liberdades e garantias, consubstanciou-se na decretação de um recolher obrigatório restringido ao período da noite e a um limitado período diurno, normalmente de jornada laboral, por isso considerada indispensável na busca e angariação, desesperada, por vezes dramática, de meios de sobrevivência física, e contabilizada ao dia para a maior parte da população suburbana e rurbana activa, primacialmente ocupada em expedientes vários de garantia da mera subsistência nos múltiplos, difusos e,bastas vezes, confusos sectores da economia informal.
Em múltiplos casos, quis o poder vigente sub-repticiamente equiparar o estado de emergência sanitário ao estado de emergência político e, até, ao estado de sítio, para os duvidosos efeitos de manutenção da periclitante ordem constitucional supostamente democrática vigente, comportando-se as forças de ordem muitas vezes, se não em regra, de forma musculada e arbitrária, sempre muito renitentes e, até, abertamente avessas, ao respeito dos mais elementares direitos humanos fundamentais dos cidadãos, mormente do seu direito à integridade física e moral contra a tortura, os maus-tratos e os tratamentos desumanos, cruéis e degradantes.
Em alguns países, com destaque para Portugal e Cabo Verde, a declaração do estado de emergência, ocorrida em regra com o registo da primeira vítima mortal da COVID19 no respectivo território nacional, e, por isso, considerada como indiciadora e/ou comprovativa de uma verdadeira situação de calamidade pública sanitária, foi precedida de uma série de procedimentos relacionados com os riscos, ainda iminentes ou tão-somente potenciais, de “nativização” e posterior disseminação do novo coronavírus (SARS-CoV-2) e da COVID19, declarada que fora já a doença pela OMS como de natureza contagiosa e com repercussões globais e, por isso, definida como uma verdadeira pandemia, semanas depois da tomada de conhecimento da sua eclosão, em inícios de Dezembro de 2019, num mercado da cidade chinesa de Wuhan no qual se trafegava com animais selvagens, incluindo os dois principais suspeitos de terem sido os hospedeiros do novo coronavírus e os seus transmissores, directos e/ou indirectos, para os seres humanos, os agora famigerados morrcego e pangolim, para os seres humanos, os agora famigerados morcego e pangolim, e da sua notificação oficial à OMS pelas autoridades chinesas em fins de Dezembro de 2019.
Tais procedimentos foram sendo paulatina e devidamente enquadrados em fases várias de desencadeamento, desenvolvimento e consolidação das medidas de protecção civil em caso de ocorrência de catástrofes ou acidentes graves e legalmente previstas nas respectivas Leis de Bases da Protecção Civil, designadamente a fase de alerta, a fase de contingência e a fase de calamidade pública.
Se em Portugal a situação de calamidade pública levou à declaração, não do estado de calamidade, como inicialmente pretendia o Primeiro-Ministro, fazendo recurso e socorrendo-se dessa medida drástica, a mais extrema e radical, prevista na Lei de Bases da Protecção Civil, mas do estado de emergência pelo Presidente da República com respectiva audição positiva do Governo e competente autorização da Assembleia da República devidamente reunida em Plenário, em Cabo Verde a declaração do estado de emergência pelo Presidente da República foi precedida, ainda que de um dia somente, da declaração do estado de calamidade pública sanitária pelo Governo com a sua panóplia de medidas práticas e dispositivos jurídico-legais de protecção civil sanitária, incluindo a instauração de cercas sanitárias em torno de todas as ilhas caboverdianas habitadas. Ademais, a declaração do estado de emergência pelo Presidente da República foi autorizada não pelo Plenário da Assembleia Nacional, como expressa e peremptoriamente estabelece a Constituição da República, no seu artigo 273º, mas pela Comissão Permanente da Assembleia Nacional. Ressalte-se neste contexto que o artº 273º, nº 2, da Constituição Caboverdiana determina expressamente que as competências do Plenário da Assembleia Nacional só podem ser assumidas pela sua Comissão Permanente “se a Assembleia Nacional estiver dissolvida ou no caso de ter terminado a legislatura na data da declaração do estado de emergência” ou do estado de sítio”, o que notoriamente não era o caso.
Todavia, e em aparente contradição com o acima preceituado, determina expressamente o artº 148º, nº 4, alínea d), da Constituição Caboverdiana que, supõe-se que reunida, numa situação de excepção e/ou de estado de necessidade, “nos intervalos das sessões plenárias” da Assembleia Nacional, e para além dos casos, acima referidos, em que esta está dissolvida ou no fim da legislatura, a Comissão Permanente pode assumir as suas competências de autorização da declaração presidencial do estado de emergência e de outras declarações e actos presidenciais similares a serem emitidos em situações político-militares excepcionais ainda mais graves, compete à Comissão Pemanente da Assembleia Nacional “autorizar o Presidente da República a declarar o estado de sítio e de emergência, a declarar a guerra e a fazer a paz”.
Efectivamente, a Assembleia Nacional viria a reunir-se, poucos dias depois, em sessão plenária com o fim expresso de ratificar a deliberação da sua Comissão Permanente que autorizou o Presidente da República a declarar o estado de emergência.
Independentemente das controvérsias sobre tentativas, eventualmente escusas e encapotadas, de desvalorização dos debates parlamentares e de correlativo condicionamento dos posicionamentos políticos dos grupos parlamentares, presumidos, como é normal em democracia, como posicionados de forma crítica, alternativa ou tão-somente diferente sobre questões atinentes e/ou conexas com a proposta de declaração do estado de emergência pelo Presidente da República estamos em crer que toda a ambiência de discussões, controvérsias, réplicas e entendimentos, enfim, de dissensos e consensos democráticos que caracterizam os debates parlamentares e a serem assumidos com e na requerida ambiência de liberdade política fica mais inequivocamente e melhor assegurado e optimizado com o regular funcionamento da Assembleia Nacional em sessão plenária.
Relembre-se neste contexto que à Assembleia Nacional é, aliás, expressamente atribuída, no artº 180º, línea e) da Constituição da República de Cabo Verde, a competência política para apreciar e fiscalizar a execução da declaração do estado de emergência (e do estado de sítio, relembre-se) pelo Governo.
Nesta óptica, e como adiante melhor fundamentaremos, estamos em crer que essa eventual falha procedimental, mais circunstancial, porque adoptada numa declarada e assumida situação crísica e de declarada calamidade pública sanitária, do que, do nosso ponto de vista, deliberamente fundada em motivações político-partidárias jurídico-legalmente fundamentadas, ficou totalmente sanada e ultrapassada com a reunião da Assembleia Nacional em sessão plenária e a sequente votação, para mais por unanimidade dos deputados de todas as bancadas parlamentares, da resolução parlamentar de ratificação da precedente autorização de declaração do estado de emergência pelo Presidente da República emitida pela Comisão Permanente do Parlamento caboverdiano.
Tenha-se, ademais, em conta a ambiência envolvente de uma eventualmente desculpável situação de estado de necessidade em que eventualmente estaria a funcionar a Assembleia Nacional no seu conjunto e a laborar os deputados integrantes da sua Comissão Permanente, relembre-se que num contexto marcado pela instituição pelo Governo, e sempre ao abrigo da Lei de Bases da Protecção Civil, de cercas sanitárias erigidas em torno de todas e de cada uma das nossas ilhas habitadas com consequente interdição do trâfego e dos transportes aéreos e marítimos inter-ilhas de passageiros, bem como outros correlatos circunstancialismos temporais que, eventualmente, pudessem ter dificultado a convocação da Assembleia Nacional e a concretização da sua reunião em sessão plenária mediante a utilização das novas tecnologias, maxime por vídeo-conferência.
Anote-se neste concreto contexto que o normativo que determina a proibição da dissolução da Assembleia Nacional nas situações de estado de sítio e de estado de emergência, considerando automaticamente convocada a Assembleia Política Soberana representativa de todos os cidadãos caboverdianos e dos respectivos partidos políticos com representação parlamentar, pressupõe para a vigência dessas situações excepcionais uma declaração presidencial do estdo de emergência e do estado de sítio previamente existente, válida e vigente, por isso necessariamente autorizada pela Comissão Permanente enquanto entidade que em casos excepcionais substitui e assume as competências do Plenário da Assembleia Nacional.
Só assim se pode interpretar e compreender o dispositivo jurídico-constitucional constante do artº 175º, alínea k), da Constituição da República de Cabo Verde que preceitua que compete à Assembleia Nacional não só autorizar o Presidente da República a declarar o estado de emergência (e, relembre-se, o estado de sítio), mas também ratificar essa declaração.
Tendo sido autorizada a declaração presidencial do estado de emergência pela sua Comissão Permanente e, deste modo, estando em vigência o estado de emergência, e não estando em sessão o Plenário da Assembleia Nacional, o mesmo Plenáro ficou automaticamente convocado, como determina o artº 273º, nº 1, da Constituição da República, e como no caso vertente viria efectivamente a acontecer, reuniu-se em sessão extraordinária para, ao abrigo do artº 154º, nº 1, da Constituição da República, ratificar a anteriormente emitida autorização da declaração presidencial do estado de emergência.
Anote-se outrossim que em Cabo Verde, e diferentemente de Portugal, além da prerrogativa da sua audição prévia e da sua competência política, ao abrigo do artº 203º, nº 1, alínea k) da Constituição Caboverdiana, “para se pronunciar sobre a execução da declaração do estado de sítio e do estado de emergência e adoptar as providências que se mostrem adequadas à situação nos termos da Constituição e da lei, compete ao Governo, no exercício de funções políticas, propor ao Presidente da República (…) a declaração do estado de emergência”. (alínea b), do nº 2, do mesmo artº 203º da Constituição Caboverdiana), declaração essa que, por sua vez e como jjá se viu, é obrigatoriamente sujeita à autorização do Plenário da Assembleia Nacional (e, em circunstâncias excepcionais devidamente justificadas, da sua Comissão Permanente).
Assinale-se ainda que em ambos os países lusófonos existe uma cláusula geral constitucional (o artº 18º, na Constituição Portuguesa, e o artº 17º, na Constituição Caboverdiana) que autoriza o legislador ordinário a restringir e limitar os direitos, liberdades e garantias e outros direitos fundamentais de natureza análoga, constitucionalmente consagrados, só podendo haver lugar à suspensão de direitos, liberdades e garantias em caso de declaração de estado de sítio ou de estado de emergência (artº 19º da Constituição Portuguesa e artigos 272º e 274º da Constituição Caboverdiana.
Anote-se que, em ambos os países, se determina que “só nos casos expressamente previstos na Constituição poderá a lei restringir os direitos, liberdades e garantias” (artº 27º (nº 4º, da Constituição Caboverdiana), e, no caso de Cabo Verde, há menção expressa, no artº 176º, alínea k) da Constituição da República, “à restrição de direitos”, como sendo uma das matérias sobre a qual recai a competência exclusiva, absolutamente reservada da Assembleia Nacional de fazer leis.
Determina ainda o nº 5 do artº 17º da Constituição Caboverdiana que “as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias serão obrigatoriamente de carácter geral e abstracto, não terão efeitos retroactivos, não poderão diminuir a extensão e o conteúdo essencial das normas constitucionais e deverão limitar-se ao necessário para a salvaguarda de outros direitos constitucionalmente protegisdos”.
Tornando-se necessário não somente restringir e limitar direitos, liberdades e garantias e outros direitos fundamentais de natureza análoga, constitucional-mente consagrados, relembre-se que unicamente, “nos casos expressamente previstos na Constituição”, mas também suspendê-los, cremos ser o quadro jurídico-legal instituído pela declaração presidencial do estado de emergência o que melhores, porque juridicamente mais firmes, seguras e inquestionáveis, garantias políticas e constitucionais oferece, sendo, por isso, e salvo melhor opinião, de duvidosa constitucionalidade a instituição de cercas sanitárias em relação a municípios em Portugal ou às ilhas habitadas em Cabo Verde e prevista nas respectivas Leis de Bases da Protecção Civil, quer essa mesma instituição ocorra no período anterior ou no período posterior â declaração do estado de calamidade publica sanitária, como é o caso actual em Portugal e foi o caso em Cabo Verde no período imediatamente anterior à declaração presidencial do estado de emergência.
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