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Santiago, uma ilha em coma profundo
Colunista

Santiago, uma ilha em coma profundo

Como entender que Santiago, a maior ilha do país, onde está sedeada a capital, não ter nem melhor porto nem melhor aeroporto do país. Em que país do mundo é que as piores infraestruturas ficam na capital? Ou que as melhores estão fora da capital? A propósito do porto, há dias ouvi da boca de um alto responsável da Enapor que a ilha do Maio vai ter brevemente uma gare marítima de 3ª geração. Fiquei orgulhoso e aplaudi, mas interroguei: e Santiago que a sua gare ainda está longe da 1ª geração? Não vou falar da ausência de um Instituto para a formação em ciências marítimas em Santiago, porque estaria a provocar as autoridades. Aliás, o santiaguense, Dr. José Jorge de Pina, que aparece como um corredor solitário por Santiago, bastas vezes tem mostrado com números a discriminação desta ilha. Estamos a precisar de pelo menos quatro Dr. José Jorge de Pina.

A ilha de Santiago foi a primeira a ser descoberta em 1460. O seu povoamento começou dois anos depois, em 1462.  Passados vinte anos, a segunda ilha de Cabo Verde, Fogo, começou a ser povoada. Ribeira Grande foi a primeira cidade edificada pelos portugueses em África. Santiago é a maior ilha de Cabo Verde, com 991km2 e a mais populosa, com 266.161 (duzentos e sessenta e seis mil cento e sessenta um) habitantes de acordo com o último senso, o que equivale a 50% da população residente em Cabo Verde. Possui nove dos vinte e dois municípios do país, alberga a capital de Cabo Verde, Praia, em substituição da Ribeira Grande de Santiago, desde 1770 e é a que mais contribui para o PIB nacional.

Esta ilha adormecida, berço da cabo-verdianidade, é onde se encontra o único sítio Património Mundial da Unesco de Cabo Verde, Ribeira Grande de Santiago, sede clerical do país, onde nos longínquos anos de 1652 o padre português António Vieira, na sua escala para o Brasil, encontrou “clérigos e cônegos tão doutos que faziam inveja aos melhores do Reino”, acolhe pessoas de Santo Antão a Brava e de todos os continentes de braços abertos. Paradoxalmente, foi no passado e mesmo no presente, mal amada por uma franja considerável de cabo-verdianos, apesar de ser a  que já deu à nação mais homens ilustres nas diversas áreas: na política, Juvenal António Lopes da Costa Cabral, pai Amílcar Cabral (fundador do PAIGC, arquiteto da Independência da Guiné e Cabo Verde) e de Luís Cabral ( cofundador de PAIGC e primeiro Presidente da Guiné Bissau), Porfírio Pereira Tavares, Padre, compositor e instrumentalista, pai de Aristides Maria Pereira (combatente da liberdade da Pátria, cofundador do PAIGC, e primeiro Presidente de Cabo Verde independente), António Mascarenhas Monteiro (primeiro Presidente da República de Cabo Verde após o multipartidarismo),  Mário Ivo de Almeida Fonseca (pai  do Presidente da República cessante, Jorge Carlos de Almeida Fonseca), José Maria Neves (atual Presidente da República), Abílio Monteiro Duarte (diplomata, compositor, combatente da liberdade da pátria e 1º presidente da Assembleia Nacional de Cabo Verde e 1º ministro dos negócios estrangeiros depois da independência), é berço ainda do atual Presidente da Assembleia, Austelino Correia, do pai do antigo primeiro-ministro Carlos Veiga e do atual primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva. No campo religioso, deu ao país o primeiro bispo após a independência, o Reverendíssimo D. Paulino de Livramento Évora e 1º Cardeal cabo-verdiano, sua Eminência D. Arlindo Furtado.

Na cultura, Santiago é muito fértil tanto no domínio das letras, como no teatro, na música e no artesanato.  Por economia de espaço, cito apenas duas personalidades no campo das letras: o fundador da revista Claridade, poeta e ensaísta, Jorge Barbosa, e o prémio Camões (de 2009), o primeiro a ser atribuído a um cabo-verdiano, o poeta Arménio Vieira.

Como dizia antes, apesar de Santiago e Praia capital terem fornecido a Cabo Verde pessoas valorosas, influentes na política, na cultura e nos desportos, apesar de ainda acolher com sorriso todos os seus visitantes, existe uma certa animosidade em relação a Santiago e a santiaguenses - “badius” -   que começou desde o tempo colonial com o povoamento e ascensão de algumas ilhas que entenderam que a capital não devia estar situada em Santiago. Essa rivalidade já perdura há séculos e tem prejudicado imensamente esta ilha.

Esta ilha que no passado teve homens e mulheres valentes que não se vergavam perante as autoridades coloniais, com forças de segurança armadas até aos dentes, foi a que mais revoltas protagonizou como a de Ribeira Grande de Santiago, em 1811; a dos Engenhos, em 1822; a de Monte Agarro, na Praia, em 1835; a de Achada Falcão, em 1841 e a de Ribeirão Manuel, em 1910.

Essa geração desapareceu e Santiago agora ficou com os cordeirinhos mansinhos que não protestam, não exigem e fingem não ver discriminações e que, consequentemente, como se diz num bom crioulo mininu que ka ka txora ka ta mama.

Sou pacifista, espero que entendam a palavra revolta não no sentido de confronto físico, mas sim verbal, isto é, exigindo a gota de água a que Santiago tem direito como contribuinte para o PIB.

É por deixar as coisas correrem ao sabor dos ventos que Santiago que já tinha um liceu em 1860, esperou 100 anos para voltar a ter um novo liceu, Adriano Moreira, o atual Domingos Ramos. Curiosamente, um cabo-verdiano com muita cultura, influência e responsabilidade que hoje não pertence ao mundo dos vivos, tinha defendido fervorosamente que Santiago não precisava de um liceu, mas apenas uma escola para formar agricultores.

O meu saudoso e falecido pai que fez a 4ª classe no início dos anos 40 juntamente com o ex-deputado e já falecido Engenheiro Cipriano Tavares e Antoninho Txontxa, não prosseguiu os estudos em S. Vicente ao contrário desses dois irmãos cujo pai era Manuel de Caiumbra que era um grande proprietário de Santiago.

Alguém ainda se lembra que até muito recentemente quem quisesse estudar contabilidade ou finanças tinha que se mudar para S. Vicente, porque entenderam que as contas não eram coisas para badius? É essa animosidade que impera a oficialização do crioulo. Excluam a variante de Santiago da equação que 24 horas depois, teremos língua crioula oficializada.   

Como entender que Santiago, a maior ilha do país, onde está sedeada a capital, não ter nem melhor porto nem melhor aeroporto do país. Em que país do mundo é que as piores infraestruturas ficam na capital? Ou que as melhores estão fora da capital? A propósito do porto, há dias ouvi da boca de um alto responsável da Enapor que a ilha do Maio vai ter brevemente uma gare marítima de 3ª geração. Fiquei orgulhoso e aplaudi, mas interroguei: e Santiago que a sua gare ainda está longe da 1ª geração? Não vou falar da ausência de um Instituto para a formação em ciências marítimas em Santiago, porque estaria a provocar as autoridades. Aliás, o santiaguense, Dr. José Jorge de Pina, que aparece como um corredor solitário por Santiago, bastas vezes tem mostrado com números a discriminação desta ilha. Estamos a precisar de pelo menos quatro Dr. José Jorge de Pina.

É compreensível Santiago, ilha que maior oferta turística pode proporcionar aos visitantes, ter uma promoção tão deficiente (as consequências estão à vista, a debandada dos jovens para Sal e Boavista com todas as consequências advenientes), porque se entendeu que o desenvolvimento do turismo em Santiago é concorrência desleal com outras ilhas? Dizem que quando uma porta se fecha, outras se abrem e é com satisfação que se vislumbra uma luz no fundo do túnel para os jovens desempregados e abandonados de Santiago. À semelhança do que aconteceu há séculos quando os nossos avós e bisavós foram forçados a embarcar para não perecerem, agora com a facilitação de vistos na CPLP, não devem pensar duas vezes e nem pôr a esperança no porto do Maio como tábua de salvação como disse o Sr. primeiro-ministro. O porto de Dakar, no Senegal, de Leixões, de Sines, de Setúbal, de Lisboa que são superiores e mais bem equipados que todos os portos de Cabo Verde juntos não foram suficientes para impedir os jovens desses países de ir à procura de uma vida melhor noutras paragens.

A Santiago e Praia capital são vedados o monopólio de coisas boas. A ilha é campeã apenas em thags e assaltos por falta de vontade política e de estratégia para o seu combate. Alguém me disse que o deficiente combate a esse fenómeno é propositado como forma de promover negativamente o turismo nesta ilha, mas que se às entidades com responsabilidade direta na matéria forem suspensos os guarda-costas, por trinta dias, a situação voltará aos níveis aceitáveis.  Nesse aspeto, apesar de ser uma análise com certa lógica não a subscrevo, porque ter entidades na Praia sem guarda-costas é demasiado arriscado.

É absurdo que as obras emblemáticas da capital, passados 47 anos após a saída dos portugueses, continuam a ser igreja paroquial, o cinema, a escola central, o liceu Adriano Moreira, o hospital da Praia, a sede do Banco de Cabo Verde agora Comercial do Atlântico, antiga Imprensa Nacional, Alfândega da Praia, agora Arquivo histórico, bairro Craveiro Lopes e Palácio da Justiça. A propósito do bairro Craveiro Lopes e do Palácio da Justiça, é reveladora a nossa incompetência ou má vontade de dotar a ilha de infraestruturas modernas e concebidas de raiz à dimensão da capital.

 Sessenta e três anos após a edificação desse bairro, ainda não se conseguiu erguer um único bairro como o Craveiro Lopes com uma linda praça, unidade de saúde, escolas e capela, estradas e passeios, com um projeto arquitetónico de fazer inveja aos nossos projetistas.

Quanto ao lindo palácio de justiça que já serviu por muitas dezenas de anos, como tudo o que é para Santiago é pensado para desenrascar, em vez da edificação de um edifício projetado de raiz, resolveram aproveitar o velho edifício do ex campus da UNICV para furarem algumas portas e janelas, fecharem outras para no final denominarem Campus da Justiça. Faço votos que o esse Campus perdure pelo menos metade do tempo que o atual palácio erigido pelos colonos.

Ouço alguns emigrantes que deixaram o país há vários anos e pessoas de outras ilhas, quando vão ao Palmarejo e se deparam com aquela floresta de betão, dizerem que Praia está desenvolvida; só não percebem que a maioria dos bairros da Praia, inclusive nessa floresta de betão, as crianças e os velhos estão engaiolados nos prédios por falta de espaços sociais como praças, espaços verdes, desportivos e culturais.

O arranque do prometido hospital de referência nacional e a via rápida Praia/Tarrafal pelo litoral continuam apenas como promessas de campanha.

Praia é a única capital do mundo que tem uma Delegacia de Saúde improvisada num prédio habitacional do século passado, sem rampa interna para cadeirantes, com corredores e escadas estreitas onde cabe uma pessoa de cada vez e que para ir até ao laboratório de análises clínicas uma pessoa tem que subir 36 (trinta e seis) degraus. Os decisores deste país não a conhecem, porque as colheitas para as suas análises são feitas nos sofás das suas casas e as respostas são levadas no gabinete.

Sinto dor na alma quando vejo deputados de Santiago a exigirem algo de bom para esta Ilha, mas surgem imediatamente deputadas e deputados de Santiago a contestar, a dizer que tudo está bem e a perguntar, porque que não foi feito antes.

O chumbo do estatuto especial para a capital só foi possível por causa dos deputados de Santiago, os das outras ilhas deram apenas o seu contributo. Julgo que faz sentido repensar a manutenção do ponto 2 do artigo 10º da nossa Constituição. Se fosse um estatuto que tirava à Praia 30% do orçamento já teria sido aprovado há anos.

É dessa gente que Santiago não precisa. Como disse no início, Santiago é fértil em pessoas com formação sólida, mas é um paradoxo estar neste momento a precisar fazer adoções de outros filhos para a salvar. Cabo Verde é (o conjunto de todas) as ilhas. O desenvolvimento de Santiago não é empecilho para o desenvolvimento das outras ilhas. Alegrava ver a forma como o falecido Dr. Onésimo Silveira defendia a sua ilha com fervor, o meu ex-colega militar, Dr. Augusto Neves, segue as pisadas de Onésimo com mestria, por isso tiro-lhe o chapéu. O Engenheiro Jorge Santos defendeu com unhas e dentes a criação da universidade e aeroporto para Santo Antão, a Dra. Joana Rosa está de parabéns na sua luta pelo novo porto do Maio. É assim que cada filho de cada ilha deve batalhar em prol do seu torrão.

Nesse quesito não há nada de regionalismo. É uma pena que Santiago com tantos filhos, tantos ministros, tantos secretários de estado e tantos deputados tenha necessidade de adotar filhos que lutem por ela.

Santiago e Praia, já tiveram no passado recente filhos adotivos que deram uma grande contribuição para o seu desenvolvimento. Refiro-me a Nelson Atanásio Ferreira Santos, que enquanto delegado do governo da Praia, na década de oitenta, deixou obras estruturantes no seu curto mandato e o arquiteto António Jorge Delgado, defensor acérrimo de S. Vicente e de Mindelo, que soube com mestria, separar as águas de santantonense adotado por Mindelo e de ministro de cultura de estado, deixou em Santiago marcas ainda inigualáveis. Espero que um dia Praia e Santiago saibam retribuir o merecido reconhecimento a essas personalidades.

Para finalizar, gostaria de recorrer a um post do Facebook, do Professor Universitário Dr. Geraldo Almeida, que dizia há dias, julgo que a propósito da inauguração do porto do Maio que “o desenvolvimento tem que ser integrado e inclusivo. Integrado para abranger todas as Regiões e inclusivo para abranger todas as pessoas”. Fica o recado.

Santiago precisa de uma reanimação cardiopulmonar urgente sob pena de lhe ser declarada morte encefálica.

Praia, 13 de Setembro de 2022

 

 

 

   

 

 

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