A justiça cabo-verdiana está neste momento enfiada numa saia justa, por causa do julgamento de Amadeu Oliveira: se o absolve, o Tribunal está a admitir, na prática, que esse advogado tem razão e a justiça não funciona neste país. Se o condena, está a dar sinais de que o corporativismo está acima da transparência judicial, uma ameaça clara à liberdade de opinião.
Vai haver, doravante, um antes e um depois do julgamento de Amadeu Oliveira, advogado que está a ser julgado por 14 crimes de injúria e difamação – intentados pelos juízes do Supremo Tribunal, Benfeito Mosso Ramos e Fátima Coronel – simplesmente por denunciar casos em que houve denegação da justiça e interferências de juízes e procuradores em processos nos quais terão introduzido falsas provas para incriminar cidadãos.
Mas antes, um pequeno preâmbulo: em toda a parte do mundo, aquilo a que se chama equipamento estatal “Justiça”, é imprescindível ao aperfeiçoamento da República. Não pode, portanto, haver quem negue a opção por um Estado de Direito de índole democrática, com um Poder Judiciário forte e consistente.
Todavia, saber direito não significa ser justo. Há uma diferença fundamental entre a ciência jurídica e a obtenção da Justiça. Aliás, como defende o jurista brasileiro Renato Nalini, para “alguém ser juiz precisaria ser sensível, humano, gostar de pessoas, ter bom senso. Se soubesse um pouquinho, apenas um pouquinho, de Direito, ajudaria bastante no desempenho de sua missão de pacificar o convívio”.
Em Cabo Verde, a percepção da sociedade é de que não há justiça. Ou, havendo, é injusta, parcial, obtusa e irresponsável, em último caso. O julgamento de Amadeu Oliveira é prova disso: todo o mundo diz em privado o que ele diz em público. A luta deste jurista a favor da transparência na Justiça deveria e deve ser uma luta de todos os cabo-verdianos. Porque independentemente de eventuais injúrias que terá cometido, Amadeu Oliveira, no fundo, tocou na ferida do sistema judicial e está a pagar por isso de forma vergonhosa.
Com efeito, se é verdade que difamou e injuriou os juízes do Supremo (assim entenderam Mosso Ramos e Coronel), também não deixa de ser vero as questões da falta de transparência e alegada corrupção na Justiça made in Cabo Verde. De resto, e sem entrar nos pormenores vários que ele mencionou e que o levou às barras do Tribunal, basta ver como o Tribunal Constitucional lhe deu razão e mandou soltar cidadãos que foram presos ilegalmente por incúria do STJ.
Num artigo publicado no jornal A Nação, Benfeito Mosso Ramos, anunciou que um dos processos de que Oliveira estava a reclamar a demora da justiça, já tinha sido despachado. Acontece que esse processo, afinal, só um mês depois desse texto foi efectivamente despachado. Para quem tem responsabilidade nacional, enquanto juiz-conselheiro do STJ, escrever um artigo num jornal de amplitude nacional, lido por todos os quadrantes da sociedade, a anunciar um falso despacho é de uma irresponsabilidade tremenda. Porque enganou toda a gente, o que, trocando por miúdos, se tratou de um golpe institucional.
Bem, Mosso Ramos haverá de contrapor alegando que não o fez para defender este ou aquele, mas impunha uma postura diferente daquele magistrado. Quantos outros casos não terão sido falsamente anunciados como resolvidos, quando, na verdade, ainda mofam nas secretarias e nos armários dos tribunais por este país afora? Muitos, com certeza.
O decano dos juízes cabo-verdianos, Raul Varela (primeiro presidente do STJ), havia dito numa entrevista ao extinto jornal A Voz, que a Justiça em Cabo Verde está condicionada por causa da máfia. Isso mesmo, máfia, ele dissera então – “os endinheirados é que mandam… (…) E o Tribunal Constitucional é mais uma instância criada para protelar decisões, apenas serve aos endinheirados”. E Amadeu Oliveira, certa vez, afirmou que neste país “a Justiça não funciona nem com batota!” Eu também penso desta forma. Se o afirmar se calhar terei outro processo às costas. Ainda assim, arrisco: não há justiça, como deveria, em Cabo Verde.
Daí que há uma necessidade urgente de se reformar o sistema judicial para, efectivamente, servir a sociedade. Porque hoje a Justiça está numa encruzilhada. Está há muito a defraudar os cabo-verdianos, com a faxina junto aos que confundiram a coisa pública, os interesses do povo com os seus próprios. Mais, a Justiça precisa enfrentar a demanda crescente por eficiência, princípio incidente sobre toda a Administração Pública, inclusive e principalmente o Judiciário.
E é por isso que os quadros de funcionários e de juízes precisam de outras habilidades e aptidões. Os tempos presentes e futuros são prenhes de incerteza e de inéditos reptos. Há que expurgar os carrascos da Justiça.
Retomo então o móbil deste texto: se o tribunal condenar Amadeu Oliveira cerceará a liberdade e, arrogantemente, estará a dizer que não aceita ser criticado – mero corporativismo – e continuará a haver aldrabices na Justiça. Se absolver Amadeu Oliveira, o Tribunal da Praia, que o está a julgar, estará a admitir que esse advogado tem razão, porquanto não há transparência na justiça que se faz em Cabo Verde. A saia é justa, a linha ténue.
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