1. Desde a primeira hora, ganhou evidência um cuidado fundamental que se deveria ter com a declaração do Estado de Emergência: a garantia de comida – sim, comida – para uma camada de caboverdeanos que teriam de ficar em casa e, assim, deixariam de puder sair à rua todos os dias à procura da janta de cada dia. Enganam-se aqueles que pensam somente nas “rabidantes”, pior ainda é considerar como foco de intervenção apenas as “rabidantes” de papel passado. Há as senhoras que vão lavar roupa e passar a ferro, os donos de tabuleiros na berma da estrada, as vendedeiras de pães dentro do bairro, o pedreiro com os rendimentos de biscates pontuais, a senhora na esquina que vende pastel, torresmo e peixe frito ao fim da tarde, entre muitos outros;
2. Chegados ao terceiro dia do Estado de Emergência não há nenhuma garantia de que esta parte do Estado, referida acima, entrou em emergência. Isto porque não foi ainda cumprida a criação de condições para que essa parte do Estado ficasse em casa. Logo, essa parte do Estado vai ter de sair[i], se não para vender, então para ir à procura das promessas feitas pelo Governo[ii]: os 10 mil escudos[iii] para cada família. Quantos dias mais o Governo vai precisar para cumprir com o prometido?
Rabidantes procuram informações, à porta do Parque 5 de Julho na Praia | Rabidantes em busca de receber os 10 mil escudos em Assomada |
Fotos: A Nação |
|
3. Fica difícil saber quantos dias vão se passar até as famílias receberem esse apoio. Mas, há uma certeza: o Governo andou a desperdiçar tempo que deveria ter utilizado para preparar-se. Se não, vejamos: O Presidente da República (PR) convocou o Conselho da República e começou a auscultar partidos políticos, lideres religiosos, sindicatos, individualidades, etc. desde o dia 26 de março[iv]. Portanto, o Governo deveria já nesse dia criar um plano detalhado e exequível para garantir que esses caboverdeanos mais desfavorecidos teriam forma de receber o apoio assim que o Estado de Emergência viesse a ser decretado e, desse modo, alcançar o objetivo dessa medida que é as pessoas ficarem em casa;
4. A fita do tempo diz-nos que o Estado de Emergência é declarado pelo PR no dia 28 de março para entrar em vigor a partir das 00h:00 do dia 29 de março[v]. Deste modo, depois desta declaração, o Governo já teve, no mínimo, cerca de 80 horas para montar esse plano, mas não conseguiu! O que esteve a fazer o Ministério da Família e Inclusão Social durante todo esse tempo para que, mesmo três dias depois da declaração do Estado de Emergência, perfazendo quase uma semana desde o despoletar deste processo, continue sem concretizar a distribuição dos apoios aprovados por lei? Pior ainda, o facto de já na Reunião de Concertação Social, realizada no dia 24 de março, o Primeiro-ministro ter anunciado para breve “as medidas destinadas aos trabalhadores informais”[vi] – já se passaram sete dias sem a sua concretização!
5. Mas, as dificuldades na implementação desta medida de apoiar estas classes mais desfavorecidas têm razões mais profundas. A forma como o processo está a ser conduzido é o reflexo do pensamento reinante no seio deste Governo movido pela desvalorização e perseguição do setor informal; desprezo e criminalização das associações comunitárias; e por ser contra aquilo que – no seu entendimento – chama de assistencialismo. Por isso, confrontado com a obrigação de implementar estas medidas, fica perdido e passa a viver em choque com a sua linha de governação. Não é por acaso que, primeiro definiu as medidas para as empresas e, em segundo plano, tratou destas medidas para estas classes mais desfavorecidas, comprovando deste modo que estas não fazem parte das suas primeiras prioridades, tendo por isso reservado migalhas para os menos favorecidos e milhões para as empresas!
6. É de máxima urgência pôr cobro a esta situação com duas realidades a seguirem em paralelo. Por um lado, a análise cor de rosa de que tudo está planeado, com todas as pessoas carenciadas a serem contactadas, informadas, registadas, etc. e com todas as condições criadas para ficarem em casa, análise essa pintada por antigos embaixadores, ex-membros e chefe de governo do MPD dos anos 90 e ministros do atual governo – todos com lugares longamente reservados, dia sim, dia sim, no telejornal das oito da noite na Televisão de Cabo Verde (TCV). Por outro lado, temos a realidade pintada pelas vozes das rabidantes e outras pessoas carenciadas que saem às ruas na esperança de verem essas ajudas chegarem às suas casas;
7. Para ultrapassar este enorme impasse, o Governo deve liderar junto das câmaras municipais no sentido de:
a. Criação de um mecanismo de distribuição imediata dos apoios, tendo como suporte tanto as diferentes bases de dados existentes (cadastro social único, inscritos como vendedores informais na câmara municipal, etc.), bem como as novas inscrições a serem efetuadas no momento do atendimento. Mas, tudo feito com o mínimo de burocracia, mediante a apresentação de um documento de identificação do próprio ou de um membro do agregado familiar. Deve-se excluir a exigência de se tirar o bilhete de identidade em plena pandemia;
b. Elaboração de um mapa de pontos focais por bairros ou localidades, numa proporção de equipas de três elementos por cada mil habitantes. Os locais de trabalho seriam as escolas. Um dos elementos da equipa, acompanhado pela Polícia Nacional, teria a responsabilidade de supervisionar o respeito pela distância social nas filas. Os membros das equipas seriam elementos contratados provenientes de associações, escuteiros, voluntários da Cruz Vermelha, entre outros;
c. Criação de um mecanismo rápido do registo dos beneficiados que passaria apenas pelo assentamento do nome e do telefone de contacto, sendo que todas as demais informações seriam recolhidas, posteriormente, via telefone, tendo em vista a redução ao máximo do tempo presencial gasto na concretização do apoio, que seria dado sob a forma de dinheiro para evitar novas filas nos bancos, caso se utilizassem cheques. Nesta hora, é preciso não insistir na tentação de formalização!
[i] Estado de Emergência: rabidantes revoltadas na Praia pedem solução urgente das autoridades, 30 de março de 2020, A Nação
[ii] Estado de Emergência/Assomada: Centenas de rabidantes nas ruas de Assomada para receber o subsídio de 10 mil escudos, 30 de março de 2020, A Nação
[iii] Medidas ao setor informal asseguram as necessidades básicas da alimentação, do acesso à saúde, do rendimento familiar e de cuidados – Primeiro Ministro, 27 de março de 2020, www.governo.cv
[iv] Covid-19: PR convoca reunião do Conselho da República para sexta-feira, 26 de março de 2020, Notícias Sapo
[v] Covid-19: Presidente da República declara estado de emergência com duração de 20 dias, 28 de março de 2020, Inforpress
[vi] Governo e parceiros sociais acordam medidas de apoio a empresas e empregos, 24 de março de 2020, Expresso das Ilhas
Comentários