Há um tempo, estava eu muito entediado. Calhou o enfado numa tarde abafada, sinistra e baça, com borrifos à mistura. Então, optei por meditar um pouco. Ainda por cima era uma aziaga sexta-feira treze. Uma perversa e tenebrosa coincidência, que me tem marcado a vida, indelevelmente. Alguns dos meus melhores anos e sonhos foram caindo e esvanecendo nas brumas desta funesta conjugação. Pode ser que o ditado popular não esteja certo nem seja digno de crédito, mas, para mim, é uma sobreposição de verdadeiro holocausto pessoal. Todos os passos que dei em falso e toda a fortuna que aferrolhei foram sempre sob efeito desse desastrado acasalamento. Servindo-me deste mote, decidi glosar uma crónica na qual pudesse espelhar todas as agruras milenares do ser humano. E onde também fosse possível caber e ressumbrar toda a incongruência inexpugnável ao longo da história, antiga e moderna. Na sequência, dei um salto para trás, para abarcar até onde a minha vista pudesse alcançar e divisar. Em seguida, veio-me à memória as deprimentes catacumbas de Massada, de Roma e Capadócia, com seus buracos infernais e fogos a lamber as vestes de infelizes cristãos de hora primeva.
Depois, dei um passo em frente, para visualizar os anos de dorido cativeiro de Mandela. Detive-me a pensar na coragem do herói e toda a sua paciência e tolerância, no decurso de uma gesta assombrosamente desigual. Um cilício que lhe custou filamentos de cabelo a esbranquiçar, de fio a pavio. Da mesma forma, enxerguei a trágica morte de Lumumba e de Sankara, o violento assassinato de Cabral. Relativamente a este, pus-me a cogitar na imagem derradeira do seu sorriso, envolto num semblante de otimismo e de agradável contemplação. A sua confiança inabalada nos camaradas, até o fim, apesar de alerta de hedionda traição em andamento. Depois, o tiro, a queda de óculos, o soerguer de herói valente e convencido das causas do povo, o apelo ao diálogo e à concertação, mesmo em momento de crispação e diante da iminência de morte. Enfim, o seu afã natural e cultivado para se bater e convencer pelo labor dos argumentos. Não pela força das armas e nunca jamais pela via de preconceitos. Foi assim que o vi nesse dia.
A triste constatação é que em todos esses assassinatos houve requintes de barbárie e malvadez, perpetrados pelos próprios nativos e colaboradores dos seus líderes patrícios. Sem pôr de lado a macabra manipulação da parte de suposta mão invisível, a manobrar e a subjugar a mente de ignorantes, gananciosos e pérfidos, os apressados de jornada, para os pôr a fazer o trabalhinho sujo, com todas as nefastas e correlativas consequências. Os algozes não foram capazes de mesurar a dimensão do biltre que tencionavam praticar. De seguida, pensei na lide de Nkrumah, que começara por ser airosa e coroada de notável conseguimento. E concluí «bem, pelo menos, ele morreu de cama, na decorrência de profunda deceção, mas não encarou os carrascos de frente, nem partiu desta para outra, com horror de trauma grudado na fronte de herói traído». De facto, não desapareceu da cena de forma tão cruel, como os outros três. Aí, naturalmente, perguntei «herói para quê e a quem serve? Será que aqueles a quem compete sequenciar os ensinamentos dos seus antigos guias estão a dar exemplo disso? Quantos discípulos não terão traído o ideal dos respetivos mestres? Não haverá por aí muito palavreado, excesso de protagonismo, conversa vazia e lassa? Não haverá proclamações a mais e ações a menos?». Bom, o leitor que responda, se quiser.
Depois, rematei «só espero que esses heróis não tenham nascido nem morrido numa sexta-feira treze, como um Jacque de Moley. Tenho para mim que os grandes homens não vieram ao mundo para serem vividos no seu tempo. E alguns, mesmo depois da morte são injustiçados e maltratados. De igual modo, julgo que raramente os povos mereceram os heróis que tiveram. Passado esse período inicial, resolvi meditar um pouco na maneira como se pode intuir e incutir na cabeça das pessoas a ideia de felicidade». De seguida, dei comigo a estar de acordo numa coisa «se cada um fizer aquilo que lhe compete, com afeição e necessário esmero, talvez seja possível vislumbrar a tão almejada dita coisa». Aproveitei para ajustar as contas comigo mesmo, murmurei «tu também podias ser feliz naquilo que fazes, não fosse o mórbido capricho de laborar em um espartilho tão arcano, confuso e misterioso, esconso e obtuso, como pontuam os teus diletos seguidores. Pois, podias fazê-lo de sorte a cativar e a chamar atenção dos vivamente interessados no brilho do teu ofício».
Chegado a este ponto, uma voz emergiu das trevas e deu-me conforto «Boa, Donato! É mesmo isso. Estás a ir no bom caminho. A felicidade é uma construção exclusivamente tua. Quer dizer: mais tua do que dependendo de qualquer ambiente favorável ou condicionante. Os anúncios oficiais são apenas um lamiré, um estímulo ao espírito empreendedor, um pé-de-arranque, e não um cheque antecipado, como alguns querem supor». Virei a cara, não vi ninguém. «Mas quem és tu, perturbador do meu sossego?», indaguei. O fantasma não quis dar a cara. Continuei nas minhas cogitações. Então, lembrei-me de uma tirada de Jorge de Sena, quando alertava «não bastam as proclamações, porque estas nunca fizeram coisa nenhuma». E acrescentava, sob a capa de crítico literário «alguns querem dizer algo, mas porque não sabem como hão de dizer, sai tudo torto, tudo trocado, tudo coxo». Portanto, sou de convir que, tal como na arte, os enunciados políticos não fazem seja o que for. O que faz um país é a vontade de avançar e a preparação que é preciso ter, a priori, antes de começar a desbaratar potencialidades. Deve colocar-se o assento tónico na preparação, porque a falta dela é a dificuldade primordial com que os africanos têm estado a lidar. Falo da África do povo e não da velha das elites alienadas e perfeitamente alinhadas com a desgraça do povo negro.
Como se sabe, a emancipação dos povos africanos chegou, mas alguns dos seus auto-eleitos transformadores estavam cheios de pressa e com muita vontade de substituir um senhor por outro senhor, descorando, na mor das vezes, as prementes necessidades do povo. Alguns dos ilustres novos reis das terras restituídas só fizeram asneiras atrás de asneiras. Entraram no poder, escolheram a mentira, o folclore e a romaria, como formas de iludir a população. Quando saíram, deixaram um enorme vácuo atrás de si. O povo africano continuou a ser escravo nas mãos dos próprios autóctones e o descalabro é de todos conhecido. A independência não se esgota num dia, o espírito da liberdade é incompatível com certas práticas e o heroísmo não deve circunscrever-se à falácia de circunstância. É preciso ir mais a fundo e «resolver os problemas do povo», como apregoava Agostinho Neto.
Os africanos devem eleger a pressa e a impreparação atrevida e prepotente como objeto central do seu combate decisivo. A não ser que se trate de uma verdadeira corrida ao ouro, como se tem dito, a azáfama de chegar ao poder a todo custo, independentemente da preparação dos pretendentes, deve acabar. África precisa de ganhar tempo e proficiência naquilo que faz. Caso contrário, a diletante mamãe-velha vai continuar a sofrer e a marcar passos. E os africanos, estes, continuarão a sucumbir a caminho do mar e a perecer no malfadado Mediterrânio. E mais: não levar isto a sério é sermos ingratos e traidores com relação aos ideais dos pais fundadores das revoluções africanas.
Com isto, chegamos ao fim desta segunda temporada de crónicas.
Domingos L. Miranda Furtado de Barros
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