Em 2014, quando o país em referência foi admitido como membro de pleno direito no seio da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), houve muitas respeitáveis e venerandas personalidades, sobretudo as do mundo da cultura e da defesa dos direitos humanos, que se insurgiram, indignadas, e fizeram ecoar a sua humana e ponderada voz de discordância contra tal decisão, que consideravam vergonhosa. As pessoas alegavam, entre outras coisas, que, não sendo um país de expressão portuguesa, a Guiné Equatorial não tinha nada que entrar para a comunidade. E com razão, julgamos nós, porque a CPLP é uma comunidade alicerçada na língua e noutros valores da cultura comum.
Foi um processo atabalhoado e mal pensado, que mexeu com a consciência de muito boa gente, mas alguns países, os ditos maiorais assim decidiram e o resto nada fez para contrariar tal pretensão. Verdade também que certos países não estavam em condições morais para levantar a gola e chamar à pedra os demandos e judiarias do presidente da Guiné Equatorial, para fundamentar a recusa a seu sórdido pedido. Responsável pela implantação de uma das mais longas e sanguinárias ditaduras de que há memória em África, Teodoro Obiang não devia beneficiar da complacência dos seus agora parceiros na CPLP.
Portugal, por exemplo, foi colocado diante de um facto consumado. Não teve cabedal suficiente para travar a avalanche da farsa em marcha ou simplesmente não quis fazer muita onda, para não ser acusado de impor a sua visão paternalista das coisas, como ex-potência colonizadora dos demais. Este tipo de complexos devia ser afastado na presença de gritante falta de respeito pelos direitos humanos, como é o caso da Guiné Equatorial. E o país-espinha dorsal da comunidade fez mal, demasiadamente mal. Quando a razão está do nosso lado, quando imbuídos de boa fé e de indubitável superioridade moral, ou seja, quando «outros valores se alevantam», como dizia o imortal Luís Vaz de Camões, não devemos corar nem titubear diante da possibilidade de desmascarar e de desmanchar certas patranhas, nem hesitar no rumo a seguir.
Portugal tinha toda a legitimidade jurídica e ética do seu lado, para travar o ímpeto fraudulento do senhor Obiang e toda a sua triste encenação, que apenas visava servir-se da boa imagem da comunidade, com o único escopo de esconder os seus horrendos crimes contra os direitos humanos e ludibriar os críticos do seu regime na arena internacional. Portugal, lamentavelmente, não teve estofo e não esteve à altura das suas responsabilidades, como um país membro da União Europeia, uma organização baseada no princípio democrático e no Estado de Direito, que se bate inexcedivelmente pelos direitos humanos e premeia os seus ingentes ativistas. Ao contrário daquilo que agora diz o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, a propósito de mais uma tentativa ou «inventona» de golpe de estado naquele país, a Guiné Equatorial do senhor Obiang nunca esteve «comprometida com a democracia e o Estado de Direito».
E nem tinha que estar, caso não quisesse, como não quis, já que encontrou cobertura legal de um grupo de Estados, que em manifesta claudicação com relação aos princípios e valores que norteiam a CPLP, estenderam-lhe o tão almejado tapete vermelho e deram boas vindas a um dos mais nojentos e obsessivos ditadores do mundo. Sim, Portugal não teve verticalidade para dizer «não, seu impostor! Institua primeiro a democracia no seu país e vá, ao menos, retirar a pena de morte daquela «coisa» que você chama Constituição e depois venha». Foi uma pena ver um Estado da União Europeia, que já aboliu a pena de morte há cento e cinquenta anos a pactuar com uma jogada tão feia. Segundo reza a história, o país de Fernando Pessoa foi o primeiro Estado moderno da Europa Ocidental a abolir a pena de morte. Isto é, o primeiro a dar esse gigantesco salto em direção à dignidade de um Estado não matador. Anterior a Portugal só mesmo o Grão-Ducado da Toscana, mas este não era um verdadeiro Estado, no sentido que hoje o concebemos.
O senhor Obiang, que chegou ao poder em 1979, por meio de violências e matanças, eliminando o próprio tio, Francisco Macias Nguema, para assumir o lugar deste à frente da chefia do Estado, é o presidente há mais tempo no poder, em todo o mundo. Do nosso ponto de vista, os Estados fundadores da CPLP não estiveram bem ao admitir no seu seio um membro cujo timoneiro promove julgamentos políticos e manda aplicar a pena de morte aos opositores, sem qualquer hesitação. Isto depois de selvaticamente torturados, numas prisões em que ninguém consegue entrar para saber o que se passa lá dentro. A Guiné Equatorial tem um longo historial da violação dos direitos humanos. O seu presidente foi recentemente endeusado e reconduzido pelos seus acólitos à condição de Chefe de Estado cujo mandato corre por tempo indeterminado e cujo exercício do poder também se cinge à visão que ele próprio tem do respetivo âmbito e corre a seu bel talante.
Curiosamente, esse alguém que pode fazer tudo e tudo faz, como se sabe, não consegue, porque não quer, desencadear um processo de revisão constitucional, para abolir a desumana pena de morte. Claro, abrir a mão do poder e do privilégio discricionário de matar, pode ser o seu fim iminente. Aceitar a Guiné Equatorial como membro de pleno direito da CPLP foi tapar o sol com a peneira e representou um evidente retrocesso, não só a nível de ganhos que os países membros já vinha tendo no campo da democracia, do Estado de Direito e dos direitos humanos, como também uma machadada no próprio progresso da civilização. Nós, pessoalmente, enquanto cidadão de um país onde, graças a Deus, não existem essas barbaridades, juntamos a nossa voz ao coro de protestos, num encontro havido, na altura, em Coimbra, porque sabíamos que a Guiné Equatorial não ia cumprir com nenhuma das falácias do seu vendedor de banha de cobra, o senhor Teodoro Obiang.
Então, vejamos: o Senhor não aboliu a pena de morte, não mandou recrutar professores para o ensino do português, não avançou com as reformas tendentes à democratização do país, não abriu o país às empresas da CPLP. Que fez ele para continuar a tomar parte nas reuniões dos chefes de Estado da organização? Nada. Absolutamente nada. Um homem que privatizou o seu país, ajoelhando-o diante dos seus interesses pessoais, do seu filho, o delfim Teodorozinho, e de alguns dos seus mais destacados colaboradores, de imprescindível lealdade canina, os sugadores implacáveis dos recursos do povo equatorial. Neste momento, de acordo com os relatos que nos chegam, as prisões em Malabo estão abarrotadas de militares e militantes de um partido da oposição, acusados da tentativa de golpe de estado, abortado, segundo dizem as autoridades desse país.
Há organizações que não deviam envergonhar os membros que delas fazem parte. A CPLP não ficará bem na fotografia, enquanto este senhor não abandonar o poder, na Guiné Equatorial. Um convicto ditador como Teodoro Obiang não costuma mudar de ideias e de práticas repugnantes, por vontade própria. E, finalmente, importa perguntar: houve tentativa de golpe de estado ou delírio de um obcecado pelo poder? Ou será que algumas pessoas irrequietas e cansadas com a decana e vergonhosa ditadura quiseram pular a cerca do quintal privado do senhor Obiang?
Domingos Landim de Barros
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