Entre a Dor e a Esperança: Como o Festival de Santa Maria pode ajudar a todos
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Entre a Dor e a Esperança: Como o Festival de Santa Maria pode ajudar a todos

"É por isso que não são os cancelamentos dos festivais, como o de Santa Maria, que vai resolver os problemas estruturais que as chuvas deixaram. Pelo contrário, o evento pode transformar-se numa oportunidade de união e solidariedade. O Festival de Santa Maria, que movimenta aproximadamente 15 a 20 mil pessoas, poderia ser um verdadeiro festival solidário, mobilizando doações, também, através da criação de uma transmissão online, onde artistas e cidadãos apelassem à generosidade em prol das comunidades afetadas. Assim, para além de manter viva a cultura e a esperança, o festival seria também um gesto concreto de partilha e apoio a quem mais precisa."

A recente tragédia que assolou a ilha de São Vicente deixou marcas profundas, com perdas irreparáveis de vidas, incluindo de crianças. Neste momento de dor, é natural e compreensível que a sociedade esteja mais sensível e solidária, e que muitas câmaras municipais tenham decidido cancelar os eventos culturais previstos, canalizando parte dos recursos para ajudar quem mais precisa. Esse gesto é digno de respeito.

Mas é importante refletirmos também sobre o papel que eventos como o Festival de Santa Maria desempenham, não apenas no plano cultural, mas também social e económico. Quando pensamos no festival, muitos imaginam apenas o palco, os artistas e o público. No entanto, por trás de cada espetáculo existe uma vasta rede de profissionais e empresas que dependem diretamente da sua realização para garantir rendimento e sustento  extras às suas famílias.

O orçamento do festival não fica concentrado numa só entidade: é repartido entre várias áreas de serviço, desde a segurança até à logística, passando por transportes, saúde e alojamento. Beneficiam diretamente a Polícia Nacional, a Delegacia de Saúde, empresas de segurança privada, empresas de produção, empresas de som, iluminação e palco, empresas de vedação, a Sociedade Cabo-Verdiana de Música, eletricistas, transportadores de contentores, aluguer de máquinas e materiais, aluguer de viaturas, agências de viagem, serviços de fronteiras e muitas outras entidades como os vários locais que servem cachupa logo cedo.

E isto sem contar com o impacto indireto: hotéis, restaurantes, bares, táxis, hiaces, vendedores ambulantes, operadores turísticos e comércio local que veem o seu rendimento multiplicar-se durante os dias do festival. Para muitas famílias, é a principal oportunidade do ano de equilibrar e melhorar as contas.

É por isso que não são os cancelamentos dos festivais, como o de Santa Maria, que vai resolver os problemas estruturais que as chuvas deixaram. Pelo contrário, o evento pode transformar-se numa oportunidade de união e solidariedade. O Festival de Santa Maria, que movimenta aproximadamente 15 a 20 mil pessoas, poderia ser um verdadeiro festival solidário, mobilizando doações, também, através da criação de uma transmissão online, onde artistas e cidadãos apelassem à generosidade em prol das comunidades afetadas. Assim, para além de manter viva a cultura e a esperança, o festival seria também um gesto concreto de partilha e apoio a quem mais precisa.

Neste momento, estamos a testemunhar o grande papel que os influenciadores digitais tiveram na angariação de fundos, especialmente para São Vicente. Seria justo e simbólico que fossem convidados a estar presentes no festival e que se tornassem a face da campanha solidária online, em agradecimento pelo contributo que já deram. Os cabo-verdianos reconheceriam esse esforço, e com certeza os influenciadores voltariam a ajudar a mobilizar mais apoios para quem mais necessita.

Outra frente que poderia ser explorada é uma campanha solidária junto dos clientes dos hotéis. Muitos turistas procuram Cabo Verde exatamente pela sua música, cultura e hospitalidade. Se fossem convidados a comprar bilhetes do festival como forma de contribuir para a causa solidária, não só estariam a participar no evento, mas também a apoiar diretamente as comunidades afetadas. Além disso, poderiam ajudar a divulgar, nos seus países de origem, as diferentes formas de apoio e angariação de fundos, ampliando o impacto da campanha e projetando Cabo Verde como um país que sabe transformar cultura em solidariedade.

Importa ainda sublinhar: nunca devemos exigir que os artistas entreguem o seu cachê ou cantem de forma gratuita. Essa é uma decisão pessoal de cada um, tal como nenhum de nós renunciou ao seu salário durante este período difícil. Todos temos contas a pagar e sonhos a alcançar. O que sim sabemos é que os artistas cabo-verdianos têm demonstrado sempre enorme solidariedade, basta recordar o projeto Unimusicabo, que muitos da nova geração talvez desconheçam. Muitos estão, neste momento, no terreno a apoiar e já houve quem tivesse doado o seu cachê de outros eventos para ajudar São Vicente.

O Festival de Santa Maria, portanto, pode ser muito mais do que música: pode ser um motor económico que garante rendimento extra para centenas de famílias e, ao mesmo tempo, um símbolo de solidariedade nacional. Cancelá-lo seria fechar uma porta de esperança para muitos. Mantê-lo, adaptando-o às circunstâncias, seria transformar a cultura em partilha, em união e em ajuda concreta para todos os que mais precisam neste momento difícil.

Por fim, é necessário que as autoridades municipais comecem a elaborar relatórios finais de cada festival, e de outros projectos, apresentando de forma transparente os números e os impactos sociais e económicos na comunidade. Só assim será possível avaliar de maneira objetiva os benefícios e os custos destes eventos. Caso contrário, o debate sobre a sua realização ou cancelamento ficará sempre preso a perceções individuais: quem defende a sua realização terá razão dentro da sua visão, e quem defende o cancelamento também, já que não existem dados concretos que sustentem nenhuma das posições.

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